Conheça a brasileira Dom La Nena e seu som universal

Se você procurar saber sobre a violoncelista, cantora, percussionista, produtora e compositora brasileira Dom La Nena, 32, vai encontrar inúmeras informações. Entre elas, a que Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Dorival Caymmi (1914-2008), Jorge Ben Jor e Novos Baianos, além de Tom Jobim (1927-1994) e Vinicius de Moraes (1913-1980), podem ser considerados suas principais influências na música popular brasileira. Embora a artista não considere haver uma relação direta desses artistas brasileiros em sua obra.

Quanto a cantores e compositores de música popular estrangeiros, Dom La Nena aponta como influência a cantora norte-americana, radicada no Canadá, Lhasa de Sela (1972-2010), que cantava em espanhol, francês e inglês.

A música francesa e a música clássica também inspiram a obra de Dom La Nena. São referências para a artista as obras de Fréderic Chopin (1810-1849), Antonio Vivaldi (1678-1741) e as performances da violoncelista Jacqueline Du Pré (1945-1987). 

Há ainda uma infinidade de informações que dizem ser ela um daqueles talentos únicos, com feitos inesperados. Aos 13 anos deixou Porto Alegre, sua cidade natal, e foi sozinha para Buenos Aires atrás de uma professora de violoncelo norte-americana. Depois de estudar com a professora, retornou para Porto Alegre e de lá foi para França, onde vive atualmente.

Dominique Pinto é o nome de batismo de Dom La Nena, que já realizou entre vários concertos, turnês com Jane Birkin e Jeanne Moreau (1928-1017); fez discos solos; e criou o duo Birds on a Wire, com a cantora franco-americana Rosemary Standley, com quem gravou recentemente a música “Filhos de Gandhi”, de Gilberto Gil (ouça em https://open.spotify.com/track/28fMEy9NPjigQnYK3WEsko?si=02YLL0hRTu6U9HgBu_EYTQ&dl_branch=1) .

A música “Batuque”, de Dom La Nena, causou no Tik-Tok da Rússia e em outros países do Leste europeu e na Itália. O clube Paris St Germain fez um vídeo ao som de “Batuque”, estrelado por ninguém mais do que Neymar.

O jornal The New YorkTimes coloca Dom La Nena no hall das sussurrantes cantoras Juana Molina, Hope Sandoval e Jane Birkin, enquanto o El País afirma:  “Uma jovem artista cheia de talento, com um longo caminho pela frente e muita beleza para oferecer”.

Dom La Nena está com a agenda repleta de concertos até 2022, num ritmo intenso de 10 a 15 shows por mês. Ah, e só para constar, Jaques Morelenbaum -que é muito do ramo- é fã dela.

Acesse qualquer plataforma digital, escreva Dom La Nena, e ouça-a enquanto lê, a seguir, a entrevista repleta de informações que ela concedeu exclusivamente ao Música em Letras.

Dom La Nena (Foto: Divulgação/Jeremiah)

Música em Letras -Você está com 32 anos de idade e nasceu em Porto Alegre (RS). Quando completará 33? Em que dia e mês você nasceu?

Dom La Nena – Acabei de fazer 32! Nasci dia 28 de Julho de 1989.

Por que, quando e de que maneira você foi motivada seguir o caminho da música ao iniciar seus estudos de piano aos 5 anos?

Num primeiro momento, meus pais me inscreveram na escola de música porque eu queria tocar piano. Não lembro bem como surgiu a vontade, mas como sempre ouvimos muita música em casa foi algo bastante natural. Minha relação com a música era muito lúdica. Tive a sorte de começar muito pequena, com um método japonês chamado Suzuki, numa escola de música muito legal em Porto Alegre. Lembro de momentos extremamente felizes, do grande prazer de compartilhar a música com amigos. Guardo até hoje uma relação muito próxima com os professores que tive lá. Meus pais nunca me obrigaram ou me pediram para estudar um instrumento, mas sempre me ajudaram como podiam a seguir adiante com o que me entusiasmasse.

Aos 8 anos você mudou de instrumento, passando do piano para o violoncelo. O que a motivou a realizar tal mudança?

Eu comecei a estudar violoncelo, com 7 anos, em Porto Alegre. Já conhecia um pouco o instrumento, tinha algumas amigas que estudavam violoncelo na escola de música, e eu achava o professor de violoncelo muito legal! Numa ocasião fomos a um encontro de escolas Suzuki em Florianópolis e no ônibus, por acaso, sentei perto da turma do violoncelo. A vontade de estudar o instrumento partiu dessa afinidade com o professor e a turma de alunos, com quem me entendi muito bem.

Continuei por mais 2 anos com os dois instrumentos, mas infelizmente ficou um pouco complicado porque em Paris não tínhamos piano em casa, havia muita demanda, e não conseguimos vaga em piano no conservatório… Acabei naturalmente ficando muito envolvida com o violoncelo e deixando o piano um pouco de lado.

Ainda aos 8 anos, você mudou para Paris, durante o inverno europeu, por conta de um doutorado que seu pai foi fazer em filosofia medieval. Naquela ocasião, musicalmente, o que lhe aquecia o coração?

Com certeza de um ponto de vista musical o que me aquecia mais era a música brasileira. Foi muito difícil a chegada aqui [na França], deixar os amigos, a escola, a família, o modo de vida brasileiro, encontrar aqui um mundo muito mais austero do que eu estava acostumada. A música brasileira sempre me ajudou a me sentir mais próxima do meu país, da família e dos amigos, a encurtar um pouco as distâncias.

A música clássica, naquele momento, também serviu como colete salva-vidas. Acho que só comecei a me sentir mesmo em casa aqui [na França] quando aos 9 anos me apaixonei completamente pelo violoncelo e resolvi que queria ser violoncelista. A partir daí a música clássica virou uma obsessão, uma paixão muito grande, e talvez tenha conseguido deixar a saudade do Brasil um pouco de lado, focalizando no violoncelo. Ouvia música clássica dia e noite (lembro de dormir com um discman todas as noites), e tinha uma meta muito clara que era a de me tornar violoncelista.

Com 13 anos você retornou ao Brasil, para Porto Alegre, e seis meses depois decidiu estudar violoncelo com a norte-americana Christine Walevska, mudando-se sozinha para Buenos Aires, na Argentina. Por que escolheu ser pupila de Christine Walevska?

Quando a gente voltou para Porto Alegre havia poucas opçōes para seguir estudando violoncelo como eu queria. Lembrei que a Christine Walevska, que é considerada uma deusa do violoncelo, tinha uma relação com Buenos Aires. Pensei que talvez ela pudesse me ajudar de alguma maneira, me aconselhando algum professor em São Paulo ou no Rio, ou mesmo em Buenos Aires. Eu era muito fã dela (e continuo sendo), mas jamais pensei que ela mesma fosse aceitar me dar aulas. Comecei a pesquisar e achei uma matéria na qual ela contava que havia vivido muitos anos em Buenos Aires, mas que havia voltado aos Estados Unidos (para Nova York). Procurei então o telefone no guia telefônico de Nova York e liguei para ela. Tive a sorte de ser acolhida muito calorosamente, e de ela estar indo para Buenos Aires poucos dias depois. Ela propôs de nos encontrarmos lá e pensarmos juntas em uma solução para eu continuar estudando. Ela, na verdade, morava entre Buenos Aires e Nova York, e acabou me apresentando a um professor francês que ensinava no Conservatório de Buenos Aires. Foi assim que poucos meses depois me mudei para lá, estudando com ele no conservatório e com a Christine durante as temporadas dela por lá.

Como foi essa experiência?

Foram anos incríveis! Foi difícil porque meus pais não tinham como vir comigo para Buenos Aires, portanto obviamente houve momentos em que não foi fácil. Foi uma aventura e um grande desafio que vivemos juntos. Mas a confiança que eles depositaram em mim foi tamanha que acabou me dando muita coragem e força, o que tornou aqueles anos lindos. Encontrei professores e amigos muito generosos, com quem acabei tendo relações muito fortes. O modo de vida de Buenos Aires é muito legal, há muita oferta de vida cultural, é uma cidade na qual há muito o que se fazer. Acabei terminando o colégio a distância, me dedicando ao máximo à música.

Qual a maior lição que aprendeu com ela?

A Christine é uma pessoa muito generosa, e com um talento muito raro. Não era sempre fácil ser sua aluna porque ela sempre teve uma facilidade fora do comum! Aprendi muitíssimo com ela, mas talvez a maior lição que tenha tido tenha sido a da generosidade. De ser generoso com a música, com os músicos, com os ouvintes e consigo mesmo. Muitas vezes, na música clássica, recebemos um ensino muito duro e muito rigoroso, o que pode acabar sendo bastante angustiante. Muitas vezes nos cobramos, achamos que não somos virtuosos o suficiente, não estudamos o suficiente. A Christine sempre me levou para o caminho do prazer e da generosidade: lembro que da primeira vez que nos encontramos em Buenos Aires por dez dias, ela pedia para eu tirar as tardes para passear pela cidade, que isso ajudaria muito mais a progredir com o instrumento do que ficar trancada o dia inteiro estudando sem parar. E de fato acho que ela tem razão: às vezes é preciso ser feliz e ficar de bem consigo mesma;  isso acaba consequentemente repercutindo na música que fazemos.

Com quais outros professores, além de Christine Walevska , você teve aulas nesse período, e com o que cada um deles contribuiu para sua formação musical?

Foram vários além da Walevska. Comecei estudando com um professor francês que dava aula no Conservatório, o André Mouroux. Ele tocava na Orquestra do Teatro Colón, era um grande professor. Foi extremamente generoso, me dava aulas sem limite de tempo, às vezes podiam durar três ou quatro horas. O clima no conservatório era muito legal, os professores como sabiam que eu estava sozinha, num país estrangeiro, me ajudavam muito e eram extremamente acolhedores. Também estudei vários anos com uma argentina que havia morado e estudado muitos anos nos Estados Unidos, a Myriam Santucci. Ela acabou se tornando uma das minhas melhores amigas.

Como era sua prática orquestral no Teatro Colón?

Também tive a sorte de ser selecionada para a Orquesta Academica do Teatro Colón, uma academia orquestral que dura dois anos. Foi maravilhoso porque eram ensaios três dias por semana, trabalhamos um repertório orquestral enorme, tivemos experiências com grandes músicos como Charles Dutoit, Martha Argerich, Antonio Lysy, descobrimos a vida em orquestra, além de realizarmos um concerto mensal no maravilhoso Teatro Colón.

Dom La Nena (Foto: Divulgação/Jeremiah)

Você permaneceu cinco anos na Argentina e com 18 anos de idade retornou a Paris. Por quê?

Acabei voltando para Paris para terminar meus estudos. O nível acadêmico, na música clássica, aqui na França é de grande excelência. E como havia terminado o percurso do conservatório em Buenos Aires, queria voltar a Paris para seguir estudando.

A música popular passou a tomar o lugar da música clássica quando você retornou a Paris e realizou seu primeiro concerto de música popular tocando, sem partitura ou maestro, ao lado da atriz e cantora Jane Birkin. Como foi esse momento?

Após a apresentação com Jane Birkin, em 2008, uma das produtoras da artista me convidou para tocar violoncelo no álbum “Enfants d’Hiver”.

Como foi essa experiência e o que é esse disco?

Quando eu cheguei aqui em Paris, conheci por amigos em comum uma produtora musical bastante reconhecida aqui na França. Nos tornamos amigas e ela me propôs gravar violoncelos no disco da Jane Birkin, que ela estava produzindo na época, “Enfants d’Hiver”. Até então eu só tocava música clássica (apesar de escutar muitíssimo música popular); nunca tinha improvisado, nunca tinha tocado sem partitura. Foi uma revelação para mim, porque construímos os arranjos juntas e, de repente encontrei uma liberdade imensa que não havia encontrado ainda na música clássica.

O disco é muito lindo, pela primeira vez a Jane tinha escrito as letras – e chamado vários compositores para musicar os textos. É muito pessoal, fala da infância dela, da relação com as filhas, das suas relações amorosas. Tenho um carinho muito grande por este disco.

A Jane me acolheu com um carinho imenso. Eu tinha somente 18 anos e realmente parecia viver um sonho. Com o lançamento do disco veio dois anos de turnê no mundo inteiro, mais de 300 shows em salas maravilhosas, acompanhando a Jane Birkin, num repertório que misturava o disco com canções do Gainsbourg [Serge Gainsbourg]. Era uma banda muito pequena, somente violoncelo, piano, violão e contrabaixo. Dificilmente poderia ter sido melhor.

Durante dois anos você também tocou ao lado da cantora e atriz francesa Jeanne Moreau. Comente, por favor, essa experiência.

Sim, no final da turnê com a Birkin fui convidada para um projeto do cantor Etienne Daho, com a Jeanne Moreau. Era uma colocação em música de um poema do Jean Genet “O Condenado à Morte”. Gravamos um disco e fizemos uma turnê pela Europa. Jeanne Moreau era das minhas atrizes preferidas. Foi muito impressionante para mim, na época, dividir o palco com ela. Tinha uma personalidade extremamente doce, mas ao mesmo tempo forte, tenho lembranças lindas deste projeto. Em setembro deste ano vão lançar um DVD da turnê, estou bem ansiosa para ver este lançamento.

Atualmente, você canta em português, espanhol, francês e inglês. Toca violoncelo, ukulele, guitarra elétrica, teclado e instrumentos de percussão. É produtora, arranjadora e compositora. Em que função mais se realiza?

Para mim não há realmente barreira entre as três línguas nas quais canto e escrevo -francês, português e espanhol.  Tenho uma relação muito forte com as três por elas fazerem parte da minha vida há muito tempo. Quando escrevo, quando canto, acabo usando cada uma de maneira musical diferente: cada uma tem seu ritmo, sua cadência, e encaixe melhor com uma melodia.

Hoje sou violoncelista, cantora, compositora, produtora, arranjadora. A linha que separa essas funções é muito fina ou quase inexistente: todas acabam se misturando, coabitando dentro do meu universo musical.

Como nasceu seu primeiro disco, “Ela” (2013)? Qual o conceito deste álbum?

No final da turnê com a Jane Birkin tive vontade de me concentrar na composição. Pensava num primeiro momento que iria mais pelo caminho da música instrumental, por ser instrumentista. De uma maneira bastante inesperada as composições vieram em forma de canção. Foi assim que comecei a cantar. Num primeiro momento minha ideia era somente gravar as canções para mim, por prazer, por diversão. Não havia nenhuma pretensão de lançar disco ou fazer shows. Era algo muito intimo, às vezes, quase terapêutico.  

Muitas canções são reflexões sobre minha relação com o Brasil e o sentimento de pertencer a várias culturas diferentes, a saudade do meu país e da família. Acontece que eu acabei mostrando as músicas para um amigo meu, cantor e compositor inglês radicado na França, o Piers Faccini, com quem estava também em turnê na época. Ele adorou e me propôs gravar no seu estúdio no Sul da França. Acabei ficando um certo tempo lá, trabalhando nas músicas.

Produzimos o disco juntos e assim que ficou pronto ele mandou para a Six Degrees Records, com a qual ele trabalhava. É uma gravadora em São Francisco, na California que lançou os primeiros discos da Bebel Gilberto, da Céu, e que tem um catálogo de world music muito legal. Para minha grande surpresa e alegria, eles quiseram lançar o disco e assim as coisas foram acontecendo.

“Golondrina”, um EP que você lançou no mesmo ano de “Ela” tem qual característica? Defina esse trabalho.

Foi um EP que decidi gravar no meio da turnê do “Ela”, na qual me apresentava sozinha num formato violoncelo e voz. Costumava tocar durante os shows alguns covers. Havia uma canção do The National, uma da cantora mexicana Lhasa e uma do suíço Stephan Eicher e decidi gravar junto com uma canção que acabei compondo para a turnê “Golondrina”. O EP foi todo construído em torno do violoncelo e da voz, com arranjos bastante minimalistas, tais como os arranjos das versões ao vivo.

No ano seguinte, em 2014, você lançou “Ela por Eles”, com remixes de “Ela”. O que você tinha em mente quando produziu este trabalho?

A proposta veio da minha gravadora, a Six Degrees, e achei divertida. Quando fazemos um disco nos apegamos muito aos arranjos, o equilíbrio entre cada instrumento, cada pequeno detalhe. É como construir um castelo de cartas! Achei um desafio interessante ter outras pessoas propondo uma versão diferente da que fizemos, bagunçando, trazendo uma visão nova da música. Deu resultados muito legais como o remix do “Batuque” feito pelo Jeremy Sole, e o Atropolis, que recentemente viralizou através do Tik-Tok na Russia, na maioria dos países da Europa do Leste e na Itália.

Como nasceu sua parceria com a cantora franco-americana Rosemary Standley ao formarem o duo Birds on a Wire? Descreva, em termos musicais, o que é o Birds on a Wire.

Nos conhecemos em 2012 porque trabalhávamos, na época, com a mesma produtora de espetáculos. Eu estava começando a fazer shows sozinha, me acompanhando com o meu violoncelo. A Rosemary é a cantora de uma banda muito conhecida aqui na Europa, chamada Moriarty. Eles tem um som muito legal, folk com um pouco de rock e blues. Ela estava com vontade de armar um projeto em torno do violoncelo e da voz, um songbook, e propôs fazermos isso juntas. Num primeiro momento, criamos um espetáculo com um repertório que ia do barroco italiano a Tom Waits, passando por Leonard Cohen, Violeta Parra, Gilberto Gil e canções tradicionais. São todas canções que nos acompanham desde nossa infância. Muitas delas tínhamos em comum, algumas apresentamos uma à outra. Nossa ideia era valorizar os textos e as melodias, com arranjos minimalistas, e colocar lado a lado músicas de épocas, estilos e origens muito diferentes e que acabaram combinando e ecoando muito bem juntas.

O projeto foi muito bem recebido aqui na França e, após dois anos de muitos shows, acabamos gravando um disco, que saiu em 2014, e que também teve uma acolhida muito positiva. A partir daí estamos quase constantemente em turnê, alternando com nossos projetos solos. Lançamos um segundo disco em fevereiro de 2020, “Ramages”, que vinha com uma turnê de quase 80 shows que vêm sendo adiados, mas que retomaremos se tudo correr como previsto a partir de setembro deste ano.

Dom La Nena (Foto: Divulgação/Jeremiah)

Recentemente o duo lançou, nas plataformas digitais, a música “Filhos de Gandhi”, de Gilberto Gil. Por que escolheram essa música e como a versão do duo pode ser descrita?

Eu tenho uma relação muito íntima com esta música pois faz parte do disco “Gil e Jorge”, que é talvez um dos que mais ouvi na minha vida. Lembro bem do ritual cotidiano que tínhamos em casa de ouvir aquele vinil todos os dias, durante minha infância. “Filhos de Gandhi” é até hoje a trilha sonora dos finais de ano na minha casa. Começamos todos os anos ao som desta música uma espécie de meditação, uma maneira de começar o ano com uma energia boa. É uma canção que evidentemente não podia faltar no meu songbook. Tocamos ela nos shows há muitos anos, desde 2017. Gravamos uma primeira versão durante as gravações de “Ramages”, mas não tínhamos ficado completamente satisfeitas, pois às vezes os arranjos, ao vivo, funcionam bem com a energia do momento, mas na hora de gravar a alquimia não funciona.

Recentemente ouvimos muita música indiana e surgiu a ideia de fazer um arranjo com tablas (instrumento de percussão indiano) e harmonium (instrumento indiano que se parece a um orgão ou um acordeom). Gostamos dessa mistura de ritmos brasileiros e indianos.

Em 2015 a mesma gravadora que lançou “Ela”, a Six Degrees Records, lançou seu disco “Soyo”. Descreva o que é esse álbum coproduzido com o músico brasileiro Marcelo Camelo, integrante dos Los Hermanos.

“Soyo” foi meu segundo disco. Tinha vontade de fazer um disco solar, luminoso, para cima. Escrevi as canções durante a turnê do “Ela”. Foi um período de muita alegria porque foi minha primeira turnê solo, aconteceu de uma maneira completamente inesperada, viajei por muitos países fazendo shows em teatros e festivais incríveis.

Experimentei durante três anos não ter casa fixa, eu e meu marido deixamos nosso apartamento em Paris e ficamos vivendo uma vida meio de aventuras durante aquele período, passando temporadas longas no Brasil, no Mexico, nos Estados Unidos.

Tinha muita vontade de convidar o Marcelo [Camelo]para produzir o disco comigo e para minha alegria ele aceitou. Marcelo trouxe justamente o lado mais solar, mais tropical para o disco. Juntos tocamos todos os instrumentos do disco, que além de violoncelo tem piano, violão, guitarra, bateria, baixo, percussões. Foram dias muito leves e divertidos de gravação, em Lisboa, durante os quais aprendi muito e dos quais lembro com muito carinho.

Você tem um EP, “Arco”, com o grupo musical Danças Ocultas. O que é esse trabalho e como você define esse grupo?

Danças Ocultas é um quarteto português de concertinas (acordeons). A música deles é maravilhosa, muito cinematográfica, com melodias fortes, que lembram às vezes a Europa do Leste e, às vezes, Portugal. É muito nostálgica, mas ao mesmo tempo consegue ser dançante e alegre. O grupo tem mais de 25 anos de carreira e tocam muito aqui pela Europa inteira.

Colaboramos desde 2012, quando me convidaram para participar de uma turnê que faziam por Portugal com uma dezena de shows. Foi uma experiência muito legal onde misturamos meu repertório com o deles. Decidimos gravar algumas dessas músicas, que acabou dando no EP “Arco”, que eles lançaram.

Até hoje tocamos juntos regularmente, e é sempre um prazer muito grande também porque me permite mergulhar num repertório de música instrumental, que eu adoro.

Em 2016 você lançou o EP “Cantando”. O que é este trabalho?

Da mesma maneira que o “Golondrina”, “Cantando” são covers que vinha tocando ao vivo há um certo tempo, e que no final da turnê do “Soyo” quis deixar registrados. Traz uma canção do Jacques Brel, uma do Beirut, uma da Violeta Parra e uma do Lupicínio Rodrigues. Gravei e mixei junto a um dos maiores técnicos de som que há na França hoje em dia, Maxime Le Guil, com quem procuramos muito o melhor som possível para o violoncelo e a voz.

Dom La Nena (Foto: Divulgação/Jeremiah)

Em 2021 foi lançado seu terceiro álbum, “Tempo”. Defina-o e comente três músicas dele.

Escrevi este disco praticamente inteiro durante minha gravidez. Eu tinha acabado um período muito intenso de cinco anos de turnês, e pela primeira vez em muito tempo me encontrei num momento mais calmo, mais solitário, de reflexão e de espera. Foi bastante natural começar a trabalhar no álbum  naquele contexto, mas não foi nem um pouco calculado.

As canções surgiram e na hora eu nem me dei conta de que a temática em comum, entre todas elas, era a passagem do tempo, os ciclos da vida. Para mim o processo de escrita é algo inconsciente: raramente me sento para escrever uma canção já tendo um tema, querendo falar de algo em específico. É um pouco misterioso, as canções surgem por elas mesmas, como se o eu colocasse em pausa o meu lado consciente e deixasse o inconsciente operar.

Eu fui compondo as canções do disco e foi só quando todas ficaram prontas que me dei conta de que havia uma linha narrativa entre todas elas através do tempo. Há canções sobre as etapas da vida, sobre o envelhecer, sobre a morte, o nascimento, a solidão, o medo do futuro, a espera. Todos esses assuntos tinham como fio condutor o tempo.

Tempo, em italiano e na linguagem musical, é a respiração, é o que faz com que todas as partes soem harmoniosamente, é fundamental para a música existir.

Pela primeira vez assumi a produção completamente sozinha. Desta vez eu queria me concentrar em torno do violoncelo e da minha voz. São elementos muito meus, que eu conheço intimamente portanto foi natural fazê-lo sozinha! Minha vontade era fazer com o violoncelo um som novo, moderno. O processo em estúdio foi quase como de um laboratório sonoro. Estávamos só eu e o técnico de som, e para cada elemento musical gravado no violoncelo passávamos muito tempo encontrando o som certo e mais interessante. Já tinha feito vários trabalhos somente com violoncelo e voz, como nos discos do Birds on a Wire e os EPs “Golondrina” e “Cantando”, mas sempre buscando uma certa pureza no som, tentando transcrever ao máximo o som acústico do instrumento. Desta vez a ideia era outra, era transformá-lo, ver até onde conseguiria levá-lo a uma estética mais pop. Chamei o Noah Georgeson, um técnico de som americano do qual admiro muito o trabalho. Ele mixou e produziu discos para o Devendra Banhart, os Strokes, o Rodrigo Amarante. Juntos, trabalhamos à distância para encontrar os efeitos e o som certo para cada pequeno elemento.

Qual a lição que o músico brasileiro deve aprender para edificar uma carreira?

Não tenho lição a dar para ninguém, acho que cada percurso é diferente, cada músico faz seu caminho da sua maneira. Não há uma regra ou uma formula mágica. Acho que o mais importante é seguir seu instinto e fazer música da maneira mais sincera e pura possível. Fazer algo que seja mesmo parecido com a gente. E ter consciência de que é preciso muitíssimo trabalho e uma dedicação imensa.

Como você enfrentou o período da pandemia com relação ao trabalho?

Para todos nós, vem sendo um período particular em todos os sentidos. Em relação ao trabalho, obviamente vem sendo bastante frustrante porque eu sempre viajei muito e com a pandemia tive mais de 80 shows cancelados ou adiados constantemente.

Por sorte surgiram vários outros projetos: a trilha sonora de um longa metragem, um convite do Musée d’Orsay para compor música para filmes dos anos 20, vários projetos de música e audiovisual para crianças para um espaço maravilhoso que a Philharmonie de Paris está por inaugurar (chamado La Philharmonie des Enfants), além do lançamento do “Tempo” que acabou também me ocupando bastante.

Você está com a agenda repleta de concertos marcados até dia 22 de dezembro de 2021. Como está sendo esse retorno aos palcos?

Sim, minha agenda já está bem cheia até  abril de 2022, num ritmo muito intenso de 10 a 15 shows por mês. Aqui na França os teatros reabriram em maio, com medidas sanitárias bem fortes: passe sanitário (prova de vacinação ou PCR negativo), máscara, capacidade das salas reduzida, distanciamento social.

Tem sido um alívio e uma alegria muito grande poder reencontrar o público, e poder finalmente apresentar as músicas do “Tempo” ao vivo.

Atualmente, onde você mantém residência fixa, em Paris? Sente falta do Brasil? Do quê?

Sim, moro em Paris e obviamente sinto muitíssima falta do Brasil. Antes da pandemia costumava ir uma ou duas vezes por ano no mínimo, mas infelizmente agora já vai fazer quase dois anos que não consigo ir. Meus pais e toda minha família segue morando em Porto Alegre, portanto do que sinto principalmente falta é deles! Mas a verdade é que sinto falta de tudo no Brasil: das pessoas, das cidades e suas ruas, do clima, da comida, da música, do modo de vida.

Há planos para retornar ao Brasil no intuito de realizar um concerto? Quando e onde?

Pela situação sanitária infelizmente ainda não, mas espero poder vir para realizar shows no Brasil assim que for possível.

Dom La Nena (Foto: Divulgação/Jeremiah)