Selo Mundaréu Paulista apresenta talentos do samba de São Paulo
O Música em Letras entrevistou o cantor, compositor e violonista paulistano Marco Mattoli, 56, que é vocalista e violonista do grupo de samba-rock Clube do Balanço. Atualmente, ele ainda divide essa função com a de produtor do selo de discos de samba Mundaréu Paulista.
Entre os artistas do selo estão a cantora e compositora Roberta Gomes e a banda Nova Malandragem, que lança na próxima sexta-feira (11), nas plataformas digitais, um EP da banda com quatro faixas e mais um bonus track.
Formada por rapazes da periferia da capital paulista, com idades entre 22 a 31 anos, a Nova Malandragem conta 13 integrantes: Luan Charles e Atila Silva (trompetes); Everton Martins e Ian de Souza Arruda (trombones); Danilo Rocha (sax alto); Léo Brandão (sax tenor); Wellington Souza (sax baritono); Mateus José (baixo elétrico); Gabriel Cartocci (guitarra); Matheus Marinho (bateria); Lucas Souza, Danilo Rodrigues e Clency Santana (percussão).
Leia, a seguir, sobre o selo, seus artistas e as razões que fizeram com que Mattoli fundasse o selo em parceria com o estúdio e gravadora YB, em São Paulo.
Como você tem enfrentado o período da pandemia com relação ao trabalho?
Sou mais um músico tentando não ficar louco. Sem show, sem o contato com o público, que é o axé básico de qualquer artista, buscando viabilidade financeira com muito menos grana, reduzindo ao mínimo as despesas, tentando manter ligação com minha família e meus amigos. Li muito, estudei, escrevi, fiz cursos sobre música negra brasileira, tentei não beber muito e pensei muito no sentido desse selo, em como fazer diferença além do meu trabalho no Clube. Fora o kit sanidade mental pandêmica, a yoga, meditação e a ginástica.
O que você aprendeu por conta da pandemia?
O mínimo que é preciso, o centro, o que realmente importa na vida. O quanto é fácil enlouquecer, como é frágil nossa vida, nossa sociedade.
O que é o selo Mundaréu Paulista? O que motivou você a concebê-lo?
O Mundaréu Paulista é um selo que está dentro da YB, gravadora onde lançamos a maioria dos discos do Clube [Clube do Balanço], o meu disco de samba, além de ser uma gravadora que lançou dezenas de artistas da MPB e da música alternativa e independente brasileira. O Maurício Tagliari, um dos proprietários que virou um grande amigo, me disse antes da pandemia que ele acreditava que a YB deveria olhar mais para a produção da música negra brasileira: samba, hip hop, e funk. E me convidou pra pensar num departamento, numa curadoria, num selo de samba lá dentro.
O convite veio numa época ótima, na qual eu estava parando com um trabalho de mais de 20 anos na área técnica de uma produtora de áudio publicitário, a Sound Design, que junto com meu trabalho artístico com o Clube do Balanço me consumia o dia e a semana inteiros. Eu estava com mais tempo, com minha filha criada e, apesar das dificuldades de sempre, sem enormes pressões financeiras. Queria achar novas fronteiras e desafios onde eu pudesse trabalhar, usando o que havia aprendido até aqui, e fazendo algo com potencial de transformar, mesmo que um pouco, a música e os músicos ao meu redor.
Sempre amei a área técnica e de produção, e só tinha tempo de produzir, organizar e pensar no Clube do Balanço. Nos últimos 10 anos, até por conta do respeito e carinho que o pessoal do samba tem pelo Clube, tenho andado bastante pelo mundo do samba de Sampa, indo para além das pontes, onde ninguém olha e tudo acontece. Diversas vezes, vendo rodas, cantores, compositores eu me encantava com a verdade, com a força artística do que estava que eu estava vendo. Muitas ideias surgiram nessas andanças. Ali fica nítido que, por conta de um racismo estrutural, que atravessa a sociedade brasileira como um todo, essa produção rica é pouquíssimo vista, nunca está na pauta, para além das dificuldades que a produção musical brasileira por si só já enfrenta.
Qual a maior dificuldade que você encontrou para a criação do selo?
Sempre pensei na música como uma ferramenta política, entre outras coisas, que tem força para fazer mudanças sutis mas decisivas. Quando digo ferramenta política, não é fazer lindas canções de protesto, que dizem querer mudar o mundo, mas que acontecem e fazem sucesso dentro dessas estruturas de poder e exclusão sólidas e muito bem definidas. É mais profundo que isso. É tentar subverter, na medida do possível, no que dá pra subverter sendo um selo minúsculo dentro duma gravadora minúscula, detalhes sutis neste jogo de cartas marcadas.
Primeiro fui atrás de artistas que, apesar do talento, ainda não se encaixavam num mercado maior. Depois, busquei produzir esse artista olhando a comunidade, a turma e os coadjuvantes que construíram a história dele até ali, para tentar trazer esta alma, esta família musical junto. Quantas vezes a gente não viu artistas que são incríveis no seu circuito natal, mas que quando recebem o “banho de loja” da produção perdem boa parte do que é interessante, da alma, do que faz diferença? Pensando assim fica mais difícil produzir. Não dá pra produzir a Roberta Gomes do mesmo jeito que eu produzi a Banda Nova Malandragem, ou que vou produzir o Jonatas Petróleo. Cada artista é um caso, um processo, um jeito diferente de gravar. É mais lento, é mais difícil, mas eu acredito que abre portas para o surpreendente, para o diferente, para o único. Esse respeito pela essência do artista pra mim já é um bom começo. Aí vem a parte realmente difícil.
O difícil é achar novos artistas que foram gestados dentro desta tradição, encontrar sonoridades e maneiras de produzir que apesar de serem inspiradas no que já foi feito sejam diferentes do que já foi feito, e que resultem numa música que continue conversando com a alma e o corpo cultural do samba, que seja percebido por quem é do samba como um samba de fato, que seja sucesso e seja bem recebido por quem gosta e vive o samba. Este é o grande desafio. É ir pra frente sem perder a conexão, a ancestralidade.
E isso tudo, está sendo feito sem uma injeção séria de capital; por enquanto sem nenhum projeto de captação, só na base de parcerias, e por um ou outro dinheiro saindo do bolso de todo mundo pra custear coisas muito básicas, como alimentação, transporte, uma pequena assessoria de imprensa. É um começo difícil, mas ao mesmo tempo muito empolgante.
Qual a razão do nome Mundaréu Paulista?
Vem de um texto maravilhoso que o Plínio Marcos recita no disco “Em Prosa e Samba”, da década de 70, que ele produziu trazendo artistas do samba paulista, o Geraldo Filme, o Toniquinho Batuqueiro, o Zeca da Casa Verde, um dos pouquíssimos registros fonográficos daquela geração brilhante. Ele fala num certo momento “nas quebradas do mundaréu”. Me impactou demais este disco, a ousadia dele, e sempre pensei na cegueira do mercado fonográfico da época, que não olhou pra esses artistas incríveis. Se a gente não tomar cuidado, vamos deixar passar mais uma geração de talentos, pela mesma cegueira, pelos mesmos motivos. Bora gravar esse mundaréu de sambistas incríveis.
Há racismo e machismo no samba?
Eu entendo que o machismo e o racismo atravessam nossa sociedade em todos os lugares. Eles estão no samba na mesma medida que estão como um todo na nossa sociedade. É algo estrutural, e por isso é tão dolorosa e difícil a desconstrução dessas estruturas de exclusão. A gente demora a entender, a perceber, por que somos criados, construídos desde pequenos dentro desses preconceitos. Eles resistem nos lugares mais íntimos, nas entrelinhas, no subentendido social.
Não se trata de falar que “eles são racistas”, nós, eu e você, todo mundo, somos racistas e machistas, em maior ou menor grau, em algum lugar. Penso na minha atuação como músico e produtor, como uma desconstrução pessoal, dentro de mim, desses preconceitos, algo diário, fazendo minha parte mesmo que pequena na desconstrução dessas estruturas centenárias e perversas. Tem que ver isso, senão a gente vai perder o bonde da evolução da humanidade. Eu diria que esses são temas centrais na filosofia por trás da construção deste selo.
Entre fazer shows e ser produtor musical, qual atividade mais o satisfaz? Por quê?
Encontro grande prazer nos dois papéis, nas duas funções. Aliás, prazer tem que ser o grande motivo que me move, porque o dinheiro por enquanto é pouco.
Ser produtor de um selo de samba é um trabalho extenuante?
Sim. Não pelo trabalho em si, mas pelo desafio das mudanças pessoais que envolvem essas discussões profundas que o selo está trazendo. São as pílulas amargas do autoconhecimento, do entender as relações sociais de uma forma mais profunda. Algo muito lindo, mas confesso, muito difícil.
O que deixa um produtor musical realizado?
Ver no resultado final a alma do artista brilhando, igual ou mais do que quando você viu essa alma brilhar ali no circuito natal dele. A evolução e a identificação da pessoa com sua persona de artista, de um jeito bacana e verdadeiro, trazendo toda sua família musical, sua história. É lindo demais.
Quais são as particularidades da banda Nova Malandragem e o que as pessoas devem ter em mente quando ouvirem a banda?
É uma banda altamente improvável. Meninos dessa idade encontram caminho para se expressar artisticamente, especialmente os que têm uma força transgressora, nas linguagens mais afeitas a idade deles, como o funk, eletrônicos, hip hop, ou o samba, dentro dos moldes mais jovens. É belíssimo ver esses meninos fazerem algo tão subversivo e transgressor dentro de uma linguagem mais formal, acústica, sofisticada, jazzística, aparentemente careta como a da música instrumental. É música instrumental sofisticada, com pé nas tradições das orquestras brasileiras. Inusitada e linda. Aliado a isso, uma forte preocupação na questão de reconectar essas linguagens a uma tradição da música negra instrumental brasileira. Não podemos esquecer que aqui tivemos Pixinguinha, Paulo Moura, Erlon Chaves, Walter Branco, Moacir Santos. Ouço tudo isso neles. Eles trazerem essa ancestralidade ao universo do jovem negro periférico que é inusitado, ousado e necessário.
Quais são as músicas que estão no EP da banda Nova Malandragem e onde ele poderá ser encontrado?
O EP, com as quatro músicas, poderá ser acessado em https://found.ee/bandanovamalandragem_bandanovamalandragem.
A música “Seu Quinócio”, uma composição de Luan Charles, fala sobre a experiência de uma masculinidade negra, no agora, e em outros futuros possíveis, estampando o homem negro num outro território imaginável: num afro-futuro possível. Na introdução temos a participação especial do sambista Jonatas Petróleo, recitando o texto “Canções de Dor”, um texto livremente inspirado no capítulo 14 do livro “As Almas da Gente Negra”, do sociólogo e historiador W.E.B. Du Bois. Uma versão mixada especialmente para o baile, será lançada como bônus track também do EP.
Já “Sampa Rock”, composição de Léo Brandão, nasce como clássico de pista, uma homenagem a Sampa, ao samba-rock, e aos temas instrumentais vibrantes que fizeram história no mundo dos bailes paulistas.
“Gravidade”, composição de Roberta Gomes e minha, onde a banda exercita e reconecta o papel histórico das grandes orquestras enquanto apoio para o canto e o cancioneiro popular. A inspiração da concepção musical dessa música vem dos arranjos que Edson Alves fez para os discos de Branca di Neve, ícone do samba-rock paulista.
“Moanin”, composição do jazzista Bobby Timmons, foi o single de lançamento. É uma surpreendente releitura de um clássico do jazz do final dos anos 50, pensado como samba-rock instrumental. Esse arranjo mostra a forte conexão entre as culturas afro-diaspóricas. O samba, elemento ancestral de manifestação, se encontra com o jazz, como num reencontro de velhos amigos.
Quais são as particularidades da cantora e compositora Roberta Gomes, cujo trabalho também sai pelo selo Mundaréu Paulista?
Antes de mais nada, temos que perceber que a Roberta é uma grande compositora. Todas as músicas do EP “No Caminho do Samba” [lançado dia 4 de junho], são de autoria dela. Quando começamos a escolha do repertório, apesar de ela ter parceria com outras pessoas (comigo, com o Yvison Pessoa, e com o Flávio Renegado), fizemos questão de colocar músicas somente dela, para que ficasse claro a independência e a sua força como compositora.
Conheço-a há mais de 20 anos, e sempre a achei uma grande melodista. Ela consegue sintetizar nos seus sambas toda a vivência musical que ela teve como cantora profissional, pois ela cantou literalmente de tudo. Nascida em Taboão da Serra, teve uma vivência no samba desde cedo, o irmão dela era violonista, arrastava-a pra todos os sambas. E a mãe quase foi cantora, mas o avô não deixou. Samba e música eram dia a dia na casa dela.
Sempre achei incompreensível ela não ter espaço e destaque na música. As composições são fortes, e ela é uma grande cantora. Mas percebo hoje em dia que a trajetória dela não é muito diferente das de outras mulheres do samba, que conseguiram furar o machismo do meio numa idade mais avançada. A temática do feminismo negro nasce nela como um desabafo, como um grito, que surge ao meu ver como resposta às dificuldades que ela encontrou na dura e insistente trajetória de mulher que canta, compõe e quer ser independente na sua arte.
No dia 4 de junho houve o lançamento do EP “No Caminho do samba”. O que há nesse EP?
O EP pode ser acessado em https://smarturl.it/RobertaGomes.
A canção tema deste EP é a necessária “Mulheres no Samba”, um hino atual falando sobre um inevitável e urgente protagonismo feminino no samba, território onde o machismo ainda anda solto.
“Em Qualquer Bar” é um samba-canção desses que ninguém mais faz, que parece ter sido feito há algumas décadas, por um daqueles compositores que o molde quebrou e não existem mais. Mas tá aí, é nova, ela que fez, e é um dos pontos altos do EP.
“Pingo é Letra” é uma tese de pós-graduação em papo reto e malandragem. Partido pesado, de ouvir uma vez e sair cantando o dia inteiro.
“Batuque” fala de tambores e ancestralidade, uma evocação à grande África da paulicéia, um samba guerreiro e potente.
“Esculachada” é um cartão de visitas, uma foto do jeitão da Roberta, essa Yansã mostrando a que veio, independente, pronta para o sucesso, sem papas na língua, nem ai se está incomodando ou agradando, se divertindo e rindo muito, e bem alto.
Onde encontrar os trabalhos dos artistas do selo Mundaréu Paulista?
Em todas as plataformas digitais, e nas redes sociais do mundaréu e dos artistas dos selo:
https://found.ee/bandanovamalandragem_bandanovamalandragem
https://smarturl.it/RobertaGomes
https://www.instagram.com/mundareupaulista/