Edgard Escandurra e seu álbum feito no smartphone
O Música em Letras entrevistou o guitarrista e compositor paulistano Edgard Escandurra, 58, que lançou em todas as plataformas digitais “Jogo das Semelhanças, Gravações de Celular”, disco feito no sofá de sua casa, entre abril e setembro de 2020, usando um smartphone.
“Todas as músicas têm seus vídeos no Instagram, de onde tirei os áudios, levei-os para um estúdio e senti que as interpretações em caixas de som profissionais tinham um belo som. Masterizei por um processo que incluía até gravadores de fitas magnéticas para dar mais ‘calor’, além de um grave aveludado, ao som das músicas”, disse o artista.
São onze músicas-dez instrumentais-, nas quais Scandurra toca guitarra em apenas uma faixa, violão e teclados, além de cantar em “Contente”, canção de parceria dele com Juliana R. Essa é a única música do álbum com letra, além também de se diferenciar no repertório por ter sido composta antes do isolamento social imposto pela Covid-19.
Além da entrevista, o artista fez, com exclusividade para o blog, um faixa a faixa do disco, acompanhado de links de vídeos para você assistir ele tocando.
Leia, a seguir, o que Edgard Scandurra disse sobre a pandemia, entre outros assuntos, além desse trabalho que, segundo ele, “não pode passar batido, porque tem belas músicas e um som peculiar”.
MÚSICA EM LETRAS Como você tem trabalhado durante a pandemia?
EDGARD SCANDURRA Como eu não tenho trabalhado na pandemia seria melhor… Estou brincando. Procurei respeitar a quarentena nos primeiros seis meses de 2020, e me senti muito inspirado a voltar ao primeiro instrumento musical que tive contato na minha infância, o violão, com cordas de nylon. Além de criar novos temas, li bastante, procurei ver filmes de arte e acertar a minha vida particular que estava um caos emocional. Traduzi isso tudo em novas composições, através do meu grande companheiro-creio que o grande companheiro de todo mundo, o celular. Isso tudo, sem esquecer da louça que brotava na cozinha de casa de maneira ininterrupta.
O que mudou em sua vida passar por esse momento?
O silêncio do meu lar, meu contato com os afazeres de casa, as minhas experiências musicais e o tempo que tive para o ócio definitivamente criativo, que é você parar por duas ou três horas para ler um livro, ou ouvir um antigo disco, enquanto eu via que a morte estava tão próxima, levando diariamente algum amigo, um parente, uma pessoa querida, tudo me fez pensar no quanto a vida burguesa não vale tanto assim. Viver para consumir pode ser extremante inútil. A partida de minha mãe foi muito difícil pra mim, mas uniu a minha pequena família de filhos, sobrinhos, irmã e irmão. O amor e a amizade realmente são valores dignos.
Musicalmente você passou a produzir mais ou menos durante esse período?
Produzi cerca de 15 musicas inéditas e fiz diversas releituras de alguns clássicos populares, que sempre sonhei tocar. Muito em especial, me encantei com os discos de Victor Jara [músico, compositor, diretor de teatro e ativista político chileno Víctor Lidio Jara Martínez (1932-1973)] e com a sonoridade desses álbuns, gravados nos anos 1960 pela indústria fonográfica chilena. Tanto esses discos como os discos dos blueseiros americanos dos anos 1930. Essas gravações muito simples, espontâneas, e esses sons me inspiraram a gravar esse disco. Pensei: esse meu álbum não vai precisar de alta qualidade tecnológica para ser registrado, assim como no princípio colocavam um microfone na frente desses artistas e eles mandavam ver. Vou tentar isso, à minha maneira, em baixa resolução, mas em alta inspiração. Vamos ver o que vai dar.
De quantas lives participou, e o que elas trouxeram de bom?
Participei de várias lives que me aproximaram do meu público de maneira muito despretensiosa, assim como me inspirou a tocar meus instrumentos sozinho. Eu estou adorando as lives, e sei que elas podem estar desgastadas pela grande quantidade de lives existentes, mas são formas muito honestas de você se expressar tanto artisticamente quanto para exercer a cidadania e manifestar suas impressões sobre esse momento maluco que estamos vivendo.
O que as lives trouxeram de ruim?
Creio que elas expõem um pouco a fragilidade de certos artistas, que em um concerto, com todo o calor do espetáculo, se superam como artistas. Em uma live as fragilidades são destaques e podem ser comprometedoras. Por exemplo, um artista pode tomar todas e fazer um show razoável, mas não pode fazer isso numa live, porque ficará para sempre lá, com aquele registro. Acho que o grande número de lives trouxe um certo desgaste para um formato que eu acho interessante. Na verdade, não vi muita coisa ruim nas lives. De fato é um veículo democrático, que está ao alcance de todos. Podem ter cinco pessoa vendo ou milhares de fãs. Estão valendo!
Qual o conceito de “Jogo das Semelhanças, Gravações de Celular”?
O conceito foi registrar o momento da criação das músicas. Nenhuma delas, exceto a canção “Contente”, existia até o momento de seus registros. Foram dez faixas intuitivas que eu gravei. Creio que se eu parasse, pegasse um viés microfone, olhando o nível dos áudios, e começasse a executá-las, elas não teriam a espontaneidade que tiveram. Há também um sentimento de perda e de ganho nas músicas. Erros, tons menores, flertes com o erudito, um certo humor em algumas faixas, são muito da minha personalidade. O álbum tem esse nome em alusão aos jogos das revistas infantis, nos quais se procuravam as diferenças entre dois desenhos, a princípio iguais, e [faz] também a algumas imperfeições em minhas execuções. Mas o mundo já está tão cheio de diferenças e erros tão evidentes que preferi buscar as semelhanças.
O álbum “Jogo das Semelhanças, Gravações de Celular” traz no nome como foi gravado. O que o levou a registrar essas músicas dessa maneira?
Notei que o smartphone estava tomando conta do meu dia para fazer pedidos, para falar com meus amigos, amigas, filhos e minha namorada. Para pagar contas, para postar fotos, para fazer as lives etc. Quis dar mais uma função para ele. Ele se tornou, além de uma câmera de vídeo, um gravador. Um cara muito legal no Instagram fez uma crítica muito boa sobre esse trabalho, comentando que as gravações davam a impressão de que eu estava na sala das pessoas tocando violão ou teclado. Acho que era isso que eu queria passar. A intuitividade e a honestidade de ter um som que não fosse processado, sampleado, afinado artificialmente como muitos trabalhos são. Parecia, no começo, uma ideia louca, mas acreditei muito nas interpretações e achei o som muito original. Quis também somar a outros projetos de 2020, como o disco do Ira!, meu projeto francês/português com a querida Virginie Boutaud, em que lançamos um clipe com uma canção de Boris Vian. Acho que ficar parado e esperando chegar a vacina não estava nos meu planos.
Quem participa do disco?
Todas as faixas são tocadas por mim. Tenho uma parceria com a minha amiga e artista Juliana R, que fez a letra de “Contente”, a única canção do álbum que já existia antes da pandemia e também a única com uma letra. É importante registrar que o álbum teve o auxílio luxuosíssimo de Vinícius Patrial [artista visual e músico] na arte da capa, de Taciana Barros [cantora e compositora] como designer gráfica, do Rogério Alonso, fazendo as fotografias e de meu filho, o guitarrista Daniel Scandurra, responsável pela edição do clipe da música “Contente”.
Quanto tempo demorou para concluir e lançar esse trabalho?
Comecei em abril e fui gravando, principalmente nas madrugadas, até o mês de setembro. Todas as músicas têm seus vídeos no Instagram, de onde tirei os áudios, levei ao estúdio Wha Wha, de meu amigo Michel Kuaker [onde gravou, em 1996, o disco “Benzina”; e em 2013, o disco “Est”, com Silvia Tape] e comecei a sentir que as interpretações em caixas de som profissionais tinham um belo som. Masterizei [as gravações] por um processo que incluía até gravadores de fitas magnéticas para dar mais “calor”, além de um grave aveludado, ao som das músicas. Depois, entrei em contato com a Tratore, que é uma distribuidora independente que leva sua música a todas as plataformas digitais, possibilitando que as pessoas conheçam meu projeto.
Qual a maior dificuldade encontrada para realizar um disco pelo celular?
Não creio que existam dificuldades. Creio que você deve ter autocrítica acentuada para saber se realmente o áudio está bom o suficiente para assumi-lo como um projeto digno de entrar em sua discografia.
Do que se livrou gravando em um celular?
Me livrei das etapas que existem entre a criação das músicas até a gravação. Essas etapas sempre acabam modificando a ideia original. Dessa vez, a ideia original está no áudio que todos podem ouvir.
Como garantir a boa qualidade no áudio captado pelo celular?
Creio que seja uma mistura entre interpretação e captação. E também é importante valorizar a construção melódica das músicas, pois não é um projeto que vai priorizar a qualidade tecnológica de um estúdio, mas sim a imaginação de quem está expondo as suas criações.
Qual a maior lição que teve realizando esse trabalho?
A de que acreditar numa ideia e levá-la à frente é um grande passo para a sua realização. Acreditar no que está fazendo e contar com pessoas amigas e competentes para te auxiliar, também é algo que aprendi num projeto como esse, evidentemente anticomercial.
Qual modelo de smartphone você utilizou?
Usei meu iPhone 8.
Quais outros instrumentos utilizou, além da voz, violão e teclados?
Usei, em uma única música, a bateria eletrônica e timbres do Groovebox, meu antigo companheiro do Benzina [projeto eletrônico do artista], guitarra, pedais, violão Rozzini e meu novo/velho teclado Thomas Organ.
Quais ferramentas são imprescindíveis para gravar um disco pelo celular?
O silêncio na casa e a inspiração. É bom saber onde deixar o aparelho, perto ou longe de onde você vai tocar. Eu gravei quase todas no sofá de casa, próximo ao pôster de minha banda favorita, The Aphrodite’s Child. A distância entre mim e meu celular são notadas em alguma faixas. As mais afastadas dão uma sensação de que a música vem de outra casa, algo bem viajante.
Qual a importância de “Jogo das Semelhanças, Gravações de Celular” em sua discografia?
Acho que ele terá um lugar especial e histórico como registro de um momento marcante para a humanidade, em que tantas mudanças vieram à tona.
O que as pessoas devem ter em mente quando forem escutar as 11 faixas de “Jogo das Semelhanças, Gravações de Celular”?
Que ele é um registro sincero e inspirado de um músico autodidata, que tem na música a sua melhor ferramenta de expressão.
Complete
Este é meu disco mais… barato e prático de gravar.
Este é meu disco menos… overdubs de todos que gravei.
Preste atenção na faixa…“Domingo”
FAIXA A FAIXA DE ‘JOGO DAS SEMELHANÇAS, GRAVAÇÕES DE CELULAR’ POR EDGARD SCANDURRA
1- “Neninha”, de Edgard Scandurra
Esse era o apelido de minha mãe. Dona Neninha morreu de Alzheimer e passou os últimos anos sem falar ou expressar algum reconhecimento das pessoas, ou apenas algumas manifestações que foram se perdendo com o tempo. A música que fiz pra ela saiu espontaneamente, cada acorde nunca antes tocado por mim, assim como todas as outras músicas do álbum. Ela vai evoluindo com certa tristeza e melancolia até ralentar e chegar ao fim num tom maior, o sol maior.
Assista ao músico interpretando-a em https://www.instagram.com/tv/CEGAOTchoY4/?igshid=1o7ydybra92ij
2- “Morocco”, de Edgard Scandurra
Essa música fiz no meu novo e velho teclado Thomas Organ. Talvez o único no Brasil. Usei as suas ferramentas rústicas de bateria rítmica interna e, com o pouco conhecimento que tenho no teclado, criei um clima místico com um fraseado arabesco, sugerindo uma paisagem desértica, quente, do doente e seus mistérios.
Assista ao músico interpretando-a em https://www.instagram.com/tv/CBZQeWVj2oo/?igshid=12tj0tn9t0sg4
3- “Devaneio dos 3 erros”, de Edgard Scandurra
Essa música veio a mim de forma totalmente inesperada; brotou de meus dedos enquanto a fazia para o IGTV [aplicativo de vídeo] do Instagram, assim como todas as outras. Eu me inspirei no desespero das centenas de mortes diárias por conta da Covid-19 e pela sensação de impotência que isso nos causa. O fato dela ser um flerte com o erudito ao mesmo tempo que improvisada levou-me a cometer alguns erros de digitação, algumas notas falhas, que anotei no meio daquele devaneio, três pequenos erros.
Assista ao músico interpretando-a em https://www.instagram.com/tv/CAMdrfbB0A2/?igshid=1a99trow06yfh
4- “Domingo”, de Edgard Scandurra
Como uma continuação de “Devaneio”, [a música] segue como um lamento pelos tristes momentos que vivemos. Ainda segue como um improviso composto como uma melodia pensada. Essa música eu deixei o celular mais afastado, o que criou um timbre mais rústico com cara de anos 60. Uma das minhas favoritas.
Assista ao músico interpretando-a em https://www.instagram.com/tv/CAkugVknK1I/?igshid=1kjajefucujp7
5- “Contente”, de Edgard Scandurra e Juliana R.
Única canção do disco, letra de Juliana R, tem uma tristeza e uma nostalgia em música e letra. Uma linda letra da Ju, que na época que a compôs não tinha sequer 30 anos. A música estava abandonada numa gravação de 2010 quando eu, remexendo em minhas coisas, a encontrei. Cantei-a no Instagram e notei que as pessoas gostaram dela, assim como eu também a adorei!
Assista ao músico interpretando-a em https://youtu.be/LO6u0fsUuk0
6- “Amigo Violão”, de Edgard Scandurra
A melodia foi inspirada pelos instrumentais de Victor Jara [músico, compositor, diretor de teatro e ativista político chileno Víctor Lidio Jara Martínez (1932-1973)], saiu instantaneamente do nada, do silêncio de minha sala, enquanto eu preparava um IGTV de mais um instrumental.
Assista ao músico interpretando-a em https://www.instagram.com/tv/CBX81uxjJ2s/?igshid=155vmoaa8gg2h
7- “Samba do Apressado”, de Edgard Scandurra
Talvez pela pressa, ela apresente alguns erros de digitação, coisa que num estúdio eu jamais deixaria passar. Tem um certo humor e uma certa melancolia em seus acordes, alguns atropelos, certa ansiedade, e ela é importante por incluir tons maiores e dar uma certa esperança ao aspecto emocional do álbum.
Assista ao músico interpretando-a em https://www.instagram.com/tv/CDXkYtMBv9J/?igshid=qqrkubq3yuvq
8- “Crianças de Aphrodite”, de Edgard Scandurra
Homenagem à banda Aphrodite’s Child, que sempre me emocionou com as melodias de Demis Russous e Vangelis, embalou minha infância, nos tempos do tobogã [escorregador gigante dos anos 1970], com canções como “Rain and Tears” e “Marie Julie”, entre outras.
Assista ao músico interpretando-a em https://www.instagram.com/tv/CCcCyl0BqKc/?igshid=31ar9z15lj7d
9- “Paciência e Tolerância”, de Edgard Scandurra
Mais uma tocando órgão; vou aqui repetir o comentário de Marília Gabriela no IGTV do meu Instagram quando postei o vídeo dessa música: “Uma longa e graciosa caminhada do jovem casal protagonista de um filme da Nouvelle Vague dos anos 60… Juro que vi!”.
Assista ao músico interpretando-a em https://www.instagram.com/tv/CB0v7KvBj1j/?igshid=9x1jnkljch00
10- “Segunda-feira”, de Edgard Scandurra
Música instrumental que passa algo subliminar que explica o porquê do nome. Ela vai se acelerando e ralenta no final, como costumam ser as segundas-feiras para mim, que de manhã têm um ritmo, à tarde ele acelera e à noite se acalma.”
Assista ao músico interpretando-a em https://www.instagram.com/tv/CDbgkdzBEhP/?igshid=41wj09szsizq
11- “Tempus Insidis”, de Edgard Scandurra
“Tempus insidis”, em latim, significa tempo de espera. É a única música com guitarra do disco. Uma espécie de trance com uma memória cantada pela guitarra. Encerra o álbum com um certo ar de esperança, como se dissesse: vai passar.
Assista ao músico interpretando-a em https://www.instagram.com/tv/CAqFMi8H4Y5/?igshid=1q4n2sqabljvx