Conheça e assista Lia Paris

Conheça e Assista é a seção do Música em Letras dedicada a perfis de artistas e profissionais relacionados à música. Muitos deles, embora com carreiras estabelecidas e reconhecidas por seus pares, não têm seus nomes identificados imediatamente pelo público.

Mesmo para quem milita na área, como é o meu caso, histórias e trajetórias de personagens que contribuem de modo relevante para nosso universo sonoro podem passar despercebidas. Por isso, aproveito para contar aqui como acontecem esses encontros, misto de atenção, acasos felizes, contatos e um pouco de sorte.

Neste relato, conheça a artista multimídia Lia Paris, 34, que entrou em contato com o blog para falarmos sobre a dupla DALI, duo formado por ela com o compositor e produtor Daniel Carlomagno.

O Música em Letras conversou pelo telefone com essa pisciana e mezzo soprano paulistana que adotou um estilo de vida nômade para mostrar sua arte pelo planeta e descobriu uma variedade de fatos que direcionaram o relato da artista para esta seção.

Vivendo atualmente, na Sicília, Itália, Lia Paris prepara alguns eventos que serão realizados no Brasil. Após serem confirmados, serão noticiados pelo blog.

Enquanto isso, leia a seguir a entrevista que a artista concedeu com exclusividade ao Música em Letras e conheça um pouco da carreira de Lia Paris, que já demonstrou seu talento em uma série de atividades, de estilista a compositora, além de cuspir fogo, dançar, compor, cantar e encantar quem a assiste.

MÚSICA EM LETRAS-Qual é sua formação musical?

LIA PARIS-Minha formação musical foi mais autodidata, aprendi a apreciar todos os tipos de músicas que saíam da vitrola dos meus pais [a mãe é a estilista Suely Galdino, e o pai, o pesquisador de arte Carlos Buzolin, donos do descolado espaço de arte, moda e café Feira Moderna, na Vila Madalena, em São Paulo], de modas de viola ao funk norte-americano, bossa nova, tropicália, do samba ao rock inglês. Meu pai sempre tocou violão e encontros musicais em casa eram frequentes.

Na adolescência tive alguns grupos de diferentes gêneros musicais e assim fui entendendo minha voz e as emoções em cada um deles até encontrar a minha própria linha de composição, onde meu coração bateu mais forte. Apesar dessa formação experimental, tive uma importante passagem pelo conservatório Groove, na rua Oscar Freire, no bairro de Pinheiros [São Paulo], onde estudei canto, teoria e prática, entre 2005 a 2008, com o fundador e professor linha duríssima Levy. Gênio da música e exímio violonista, ele esperava nada menos que a perfeição de seus alunos. Assim como eu, acredito que qualquer um que tenha passado por lá mantém por ele grande admiração, mas apesar de ter aprendido muito, em um certo momento senti minha criatividade tolhida e decidi sair.

Sendo uma artista multimídia, qual característica você considera a mais marcante em si?

Eu nunca tive a intenção de ser uma artista multimídia e nem mesmo imaginava esse conceito até pouco tempo atrás. Por ter uma construção de carreira independente, na escassez de recurso financeiro para poder ter uma estrutura, eu acabei colocando a mão na massa de verdade, em tudo o que fui fazendo. Essa era a única maneira de fazer acontecer e só após realizar diversos formatos, na hora de creditar algum projeto ou mesmo em entrevistas eu fui percebendo: “Poxa eu escrevi esse roteiro, orientei a equipe, pensei essa iluminação, desenhei esse cenário, figurino, esse arranjo etc”.

Um momento marcante para mim, foi o lançamento do EP “Lva Vermelha” no CCRV [Centro Cultural Rio Verde, em São Paulo], que a princípio chamei de show, só que fizemos um cenário móvel, com luzes, chuva de papel pintado, projeções 3D em tela rosca, com performers nus pintados de prateado. Eu queria tanto entregar, em todas as formas possíveis, a mensagem daquele trabalho, que só me dei conta de que aquilo era uma performance quando me vi nua fazendo o único ensaio real, na correria da equipe de montagem. Foi então que me toquei: caramba, eu vou fazer isso mesmo, sou eu aqui, né?

Então eu acho que, no meu caso, a definição de artista multimídia é essa, a do fazer multicoisas, explorar caminhos, plataformas e sentidos do comunicar e interagir. A arte multimídia para mim está viva; ela é ilimitada, por isso me fascina tanto.

Você se realiza mais cantando, compondo ou em performances artísticas? Você é soprano?

Sou mezzo soprano, mas confesso que só soube disso em uma audição na Itália, quando tive a sorte de conhecer o maestro Teo Ciavarella, na minha primeira aventura como artista circense e viajante fora do Brasil. Ele me chamou para cantar em Bolonha [Itália], na Piazza Verde, cantei “Garota de Ipanema” e outros clássicos do Brasil, com sua big band, em uma espécie de arena a céu aberto, lotada. Foi um dia inesquecível para mim. Eu me realizo criando, seja lá o que for, mas acho que nada se compara à emoção que é estar em um palco, com toda a troca com o público. Para mim são sempre os momentos mais especiais.

Lia Paris (Foto: Divulgação/ Christian Bittencourt)

Você já sofreu algum acidente realizando pirofagia ou trapézio? Tem alguma história curiosa que inclua essas duas artes?

Logo quando estava aprendendo a pirofagia queimei uma mecha de cabelo, mas no circo era comum as quedas e machucados. Lembro até hoje do que meu treinador falava: “Faz parte, é a arte entrando no corpo”. Em 2016, eu tive a imprudente ideia de fazer pirofagia em um videoclipe. Eu estava morando em Los Angeles na época, há anos sem treinar e sem os equipamentos corretos acabei sofrendo em um acidente feio. Foi o maior susto da minha vida, ambulância, internação, precisei voar de emergência para o Brasil e passei dois meses no escuro com a pele do rosto em carne viva. Foi realmente um milagre ter me recuperado sem marcas. Na época eu só agradecia por estar viva, foi por um triz que o produto não queimou minhas vias respiratórias, no dia [do acidente] eu só pensava no resultado e da filmagem, esqueci de mim.

Qual a maior contribuição que o circo deu para você?

Eu era apaixonada pelo enredo do circo feito de coisas extraordinárias, que recriam a atmosfera de sonhos, isso foi o que me atraiu primeiro e acho que foi isso que ficou em mim até hoje. Desde meus primeiros shows, eu já pensava nas roupas, no cartaz e nas cores do palco. Mais tarde, quando estudei moda [A artista é formada pela faculdade Santa Marcelina, em São Paulo], minhas criações eram todas voltadas para o figurino e, hoje em dia, olhando para o conjunto das coisas que fiz, consigo ver nitidamente a referência lúdica tanto nas imagens como nas letras.

Em 2001, você montou a banda Destilaria do Groove. Naquela ocasião, você era menor de idade. Teve algum problema para se apresentar por conta disso?

Essa foi a minha primeira banda de todas, uma fase de descobertas muito especial, éramos um grupo grande de amigos que estavam ali na pura vontade de fazer um som com baixo, guitarras, metais, bateria e percussões. Fazíamos releituras de funk, soul e músicas para dançar, como as de Tim Maia, Caetano, Jorge Ben Jor, Stevie Wonder, James Brown e outros gigantes do pop que admirávamos. Crescemos juntos com a casa noturna Diquinta, que no início funcionava num apê, em São Paulo, para umas 80 pessoas. Logo a cena tomou proporções maiores e veio essa questão da minha idade, que resolvi pedindo minha emancipação aos meus pais. Posso dizer que foi uma sorte de iniciante, pois no fim estávamos fazendo shows todas as semanas para duas mil pessoas, era uma loucura aquilo. Foi assim que no último ano do colégio juntei dinheiro para fazer a minha primeira viagem sozinha.

Com 17 anos você saiu do Brasil e durante um ano se apresentou em países da Europa. Ao lado de quem você se apresentava, qual tipo de som fazia?

Hoje me lembro disso como a maior aventura da minha vida. Eu havia acabado de terminar o colegial e foi a primeira vez que viajei totalmente sozinha, tinha muita vontade de conhecer outros países, de aprender novas línguas e uma inquietude que não cabia em mim. O que aconteceu não foi nada organizado, acabei me juntando a artistas circenses do mundo todo, que conheci nos “squats” [moradias coletivas] onde eu dividia espaços com jovens artistas, estudantes e punks em prédios abandonados. Nos apresentávamos em clubes, festas, nas ruas, e em eventos fechados. Viajávamos de trem e de furgão. Uma vez aqui, na Sicília, chegamos a dormir embaixo de um barco e acordar com a maré levando tudo. Essa experiência me rendeu aprender italiano, bons amigos para a vida toda e memórias incríveis, mas sobretudo histórias para escrever.

Lia Paris (Foto: Divulgação/Loiro Cunha)

Como você formou o grupo de electro rock Paris Le Rock, formado por você (composições e voz), Alec Haiat (guitarra), Marco Klein (baixo) e o filho do cartunista Glauco (1957-2010), Ipojucã Villas-Boas (bateria). Por que a banda acabou?

A Paris Le Rock foi um acontecimento na minha vida. Conheci o Alec Haiat numa festa e ele me chamou para montar uma banda. Marco e Ipojucã eram amigos bem próximos, na época. A banda teve uma rápida passagem do Izy Cobra, tocando baixo, e alguns outros músicos, mas com participações relâmpago. Essa formação que você cita foi a com que gravamos nosso único disco homônimo ao nome da banda e fizemos a maior parte dos shows. Compusemos juntos a maioria das músicas; outras, eu e Alec. Com o estilista João Pimenta, criamos os figurinos personalizados, que eram a marca da banda. Fizemos muitos shows em eventos de moda no começo, e depois o circuito quase que completo do rock paulistano como no The Clash, CB, Berlin, Funhouse, Inferno, Hot Hot, Sesc e Viradas Culturais.

A banda acabou, coincidentemente, logo após a trágica morte do Glauco. Caminhamos cada um para direções diferentes, e no meu caso tive vontade de encontrar a minha identidade, fora do ambiente familiar da banda. Mas tenho muito carinho por aquela época, até hoje pensamos em fazer um revival para matar as saudades. A Paris Le Rock era uma banda muito visceral, “punkada” mesmo, como uma vez elogiou o João Gordo [integrante da banda Ratos de Porão], “a gente dava tudo de si”. A banda me deixou de presente meu nome artístico e a coragem de subir no palco.

Na faculdade Santa Marcelina, em São Paulo, você cursou moda de 2007 até 2012. O que essa formação trouxe para sua vida musical?

Meu interesse pela moda, sem dúvida, é o que ainda hoje me atrai; a possibilidade de explorar a criatividade, trazer um pouco de fantasia para a vida em forma de estruturas e ornamentos, que sugiram o onírico, essa paixão veio muito da minha mãe que é estilista. Mas confesso que me arrependo de ter cursado faculdade de moda. Penso que poderia ter tido aprendizados mais fluidos em cursos, viagens ou mesmo em estágios.

O lado superficial e elitista da moda sempre me incomodou, mas hoje enxergo a moda como uma indústria muito problemática em vista do desfavor que faz quanto ao desperdício, à poluição ambiental, trabalhos análogos a escravidão, além de promover a manutenção de modelos sociais completamente desfigurados. Uma coisa é a expressão e identidade visual tão bela e genuína, mas hoje entendo que [isso] está como que do lado oposto à indústria da moda em si. Mas esse é um assunto complexo, que não cabe em uma síntese.

Entre algumas bandas que você integrou entre 2010 até 2013 estão a “Briga de Galo”, de samba; “Jazz Monster”, com a orquestra Heartbreakers; e o trio Vive la Chanson, de hits franceses. Com qual delas você mais se identificava e por quê?

Através dessas bandas, com propostas tão diferentes entre si, pude me experimentar como cantora e intérprete, além de curtir a energia de cada ambiente que os shows me proporcionaram em universos distintos, como no samba, no qual cantávamos até as cinco da manhã, em roda, quase que em um transe de euforia, misturados com o público. A desafiadora Vive La Chanson me faz encarnar uma outra faceta, interpretando canções francesas em suas sutilezas, encantos e ironias. Com cada projeto aprendi um caminhão de coisas, mas sem dúvida foi com a banda Paris Le Rock que fui mais personagem de mim mesma.

Você já compôs “A Estrada”, “Subentendido” e “Wild Boy”, com Marcelo Jeneci; além de “Aniversario” e “Foguete”, com Samuel Rosa, entre outros compositores. O que faz dar “liga” entre um músico e você? Por favor, aproveite e comente a história do Arnaldo Antunes, que entregou algumas composições para você, mas que não foram gravadas.

Eu acho que mais que afinidade musical o que dá a liga é o momento, a sorte do encontro, de naquela circunstância sintonizarmos juntos uma letra, melodia e acabar acontecendo naturalmente. Foi assim com Jeneci, Samuel e todas as outras canções em parceria que tenho. Com Arnaldo ainda não rolou isso de nos encontrarmos para compor; na época eu ainda nem tinha um disco e ele muitíssimo generoso me mostrou algumas inéditas, pérolas dele com o Renato Russo, com o Gil. Mas eu simplesmente não me via nas músicas, não me sentia digna de gravar algo que não me identificasse como personagem, pelo menos naquele início quando eu ainda tateava uma identidade autoral. Até hoje só gravei músicas que escrevi sozinha e algumas outras em parceria. Mas eu tenho extrema admiração pelo Arnaldo, ele é um artista e pessoa incrível, que eu adoraria ter a honra de compor junto. Quem sabe ainda não aconteça?

Lia Paris, autora dos CDs ‘Lva Vermelha’ e ‘MultiVerso’ (Foto: Divulgação/Andre Giorgi)

Defina o conceito de seus dois discos “Lva Vermelha” (2015) e “Multiverso” (2019).

Batizei o EP de “Lva Vermelha”, pois para mim significa um rito de passagem, o meu pessoal e o que eu queria desejar para o mundo. E como muitas vezes ritos são reflexos milenares, escrevi Lua com V em homenagem ao passado, a todas as mulheres e humanos que ritualizaram passagens importantes para a nossa evolução espiritual, e que ainda hoje ecoam em nós, mesmo que no subconsciente. No latim antigo, o “u” foi sempre escrito com”v”. Mesmo nas outras línguas latinas, como o português, durante muito tempo o “u” ainda era escrito com “v”.

A lua em si é um forte símbolo do feminino, da noite, do mistério, da doçura; já o vermelho evoca o sangue, a fertilidade, intensidade e a paixão. Lua vermelha ou lua de sangue é um fenômeno astronômico duplo com um alinhamento planetário específico, permitindo que o sol “pinte” a lua de vermelho com seus raios de baixa frequência através da atmosfera terrestre. Belo, telúrico e efêmero, eu o interpreto como um convite ao seu encanto, que nos permite os sentimentos mais nobres e sutis, como um despertar da consciência plena que eu chamei de “uncanny”, [mesmo nome da] faixa que fecha o EP como uma espécie de feitiço.

“Uncanny” representa um estado de graça, em conexão com o todo, muitas vezes alcançado através da meditação, rituais, ou através de experiências sublimes como o amor ou até estímulos opostos como uma grande dor ou um trauma. Então a lua vermelha seria um presságio para uma nova era, uma era matriarcal e pacificadora, mais harmoniosa e acolhedora, o que acredito que a vida no planeta precisa para prosperar em equilíbrio.

O álbum “MultiVerso” nasceu aos poucos, ao longo da estrada do “Lva Vermelha”, e foi sendo construído através de parcerias com diversos compositores e músicos, cada um com referências e bagagens muito diferentes. Por isso eu quis dar esse nome que representa a intersecção de universos criativos coexistentes, formando este outro que vem a ser o disco. A divisão inventada da palavra sugere: “multi” de muitos (do latim multo = vários ) e “verso”, representando a composição literária em si, pelas músicas feitas também desses encontros.

Comente uma composição de cada um desses dois discos.

“As Ondas” é uma faixa do “Lva Vermelha”, produzida pelo inglês Daniel Hunt (Ladytron), então tem forte influência do estilo de produção dele, que tem uma sonoridade marcante vinda de Liverpool. O resultado é um eletrônico melódico que eu acho que ficou muito interessante com letras em português. Tenho um carinho especial por essa música, pois a compus em sonho quando estava em Chefchaouen, uma cidade inteirinha azul no norte do Marrocos. Eu me senti em uma inserção, lembro de ter tido consciência do sonho e então cantar repetidas vezes para que me lembrasse ao acordar. A música fala de uma despedida, do sentimento ambíguo do prelúdio do desconhecido, aquele momento fugaz do luto de um amor quando ganha contornos de esperança e certo entusiasmo pelo novo. “Foi então que ao ver que as ondas vão e nunca mais voltam iguais, e que ali, onde o terremoto estava, agora existe paz “. Essa música ganhou um videoclipe feito em estúdio, em São Paulo, na intenção de retratar esses sentimentos épicos que todos nós vivemos.

“Andaluz” é uma faixa do “MultiVerso”. Ela parece uma música romântica, mas na verdade descreve a estranha familiaridade que senti em Andalusia em 2018 durante e uma breve porém intensa temporada. Na passagem por Los Angeles, no início surgiu a oportunidade de gravar o videoclipe, escolhemos o deserto de Hot Springs que coincidentemente tem uma paisagem árida, que lembra muito as de Andaluzia. No vídeo que gravamos em uma equipe de quatro pessoas, usamos os poucos recursos que tínhamos de forma simples. A ideia do clipe foi a de trazer a metáfora da música através de um espelho, representando as pontes feita das nossas memórias mais vívidas.

Lia Paris (Foto: Divulgação/Andre Giorgi)

Você já tocou em bandas de samba, soul music, jazz, electro rock, pop, cover e punk rock. Em qual gênero você se sente mais acolhida?

Eu imagino que a sensação deva ser parecida como a de uma atriz que a cada contexto tem a chance de vivenciar um novo universo. Eu me sinto mesmo uma metamorfose ambulante, então esses projetos foram acontecendo naturalmente. Me sinto mais acolhida sem rótulos, pois é onde mora minha verdade, se eu tivesse que me definir em um só gênero estaria tendo que me desfazer de alguma parte importante. Mas acho que o som que fiz nos meus trabalhos solos, mais para o soft eletrônico é o gênero que escuto com mais frequência e o que tem mais a ver com meu estilo de vida e até gosto estético.

Você já performou em inúmeros lugares pelo mundo. Entre eles, em festivais de música pela Europa como o Sonido Trópico, em Berlim, o Tangerine, em Paris, e nesta mesma cidade, no clube idealizado por David Lynch, o Silêncio. Em qual local você realizou o melhor show de sua carreira, quando foi isso e por quê? Qual lugar foi uma “roubada” e por quê?

Os shows são o momento mais esperados, amo demais a vibração de estar no palco e tudo ao redor, da passagem de som ao ápice do show, os escolhos que rolam no backstag e o convívio com as pessoas que trabalham para o show acontecer e com o público. O lançamento do álbum “MultiVerso”, no Auditório Ibirapuera, em São Paulo, foi um marco para mim. A beleza e estrutura daquele espaço é um sonho para qualquer artista brasileiro; foi muito gratificante curtir com a equipe as melhores condições de equipamentos para realizar um show completo. A turnê na Europa foi outro sonho realizado, ainda mais por termos passado por importantes lugares como a Casa da Música no Porto; Musicbox, em Lisboa, e o Anfiteatro de Ponte de Sor. Já tive a oportunidade de me apresentar em lugares muito inusitados, como uma galeria secreta em Berlim, um palco de vidro em Inhotim, no Meca Festival a céu aberto, o que foram  inesquecíveis para mim. Mas acho que o último show, antes da pandemia, no dia 2 de março, abrindo para Ladytron, em Londres, na icônica Heaven, foi uma grande conquista para mim e para a banda. Estávamos nas nuvens por perceber que o show tinha chegado até mais longe do que imaginávamos.

Não me lembro de ter tido nenhum show “roubada”, nem mesmo os corporativos com público desatento ou os que foram poucas pessoas. Acho que em todos, sem exceção, no mínimo me diverti com a banda e com as pessoas envolvidas.

DALI, duo formado por Lia Paris e Daniel Carlomagno (Foto: Divulgação)

DALI é o nome da dupla formada por você e pelo compositor e produtor Daniel Carlomagno. O projeto nasceu da parceria dos dois compondo músicas com conceito cinematográfico. Dessa união surgiram canções como “Shadow” e “Stay”, feita para a série “Sessão de Terapia”, da GNT Globo Play. Quais outras músicas a dupla tem compostas; o que são (gênero, ritmo, poesia, inspiração etc); como e quando serão lançadas?

Faz um bom tempo que meu caminho e o do Dani se cruzam, foi uma amizade fácil de longas conversas boas que logo deu em música! Dani é uma pessoa de enorme sensibilidade, de uma sinceridade elegante que imprime em suas composições. DALI é a junção dos nossos nomes que achamos combinar com o DNA minimalista do duo, que parte sempre da combinação voz e piano ou voz e guitarra, e talvez algum elemento eletrônico como marcação ou detalhe. Nossa primeira inspiração veio das encomendas de “Stay” e “Shadow”, e na vontade de explorar outras composições fora dos contornos dos nossos trabalhos solos e outras foram surgindo. Mas o duo é um projeto sem pretensões de cronograma ou gênero.  À medida que vamos criando algo que gostamos, compartilhamos. A próxima será “Setembro” ou “Alone”, que estamos terminando de mixar e que tem previsão para sair em novembro.

Você comentou em conversa que tivemos pelo telefone que optou por ter uma vida nômade. Por que e o quais o benefícios que se obtém por meio dessa opção?

A minha vida sempre foi muito mais móvel do que fixa, mas há um ano e meio me percebi em uma vida nômade oficial. Nunca foi uma escolha consciente, a verdade é que foi a maneira que encontrei para fazer possível viver do que eu amo e realizar o meu desejo de conhecer lugares novos. A construção do meu trabalho se deu muito através das conexões ao longo da jornada. Os encontros com diversos artistas e articuladores acontecem naturalmente, de forma quase orgânica junto com o meu movimento.

A vida nômade vai ao encontro do que eu acredito que seja um caminho de um futuro mais possível e essencial, sem superficialidades. Na minha vida não cabe ter coisas, por onde passo eu encontro coisas lindíssimas, as admiro, fico feliz que existam no mundo, mas não preciso possuí-las, assim como não posso possuir um pôr do sol.

Eu sempre carreguei uma certa melancolia estranha no peito, algo que chamei de nostalgia do futuro. A música “Coração Cigano” é um retrato desse sentimento, coração de areia que quando o vento chama sabe a hora partir. Quando se está viajando tudo é mais intenso, ficamos em um estado de bom humor e de disposição e que faz tudo parecer mais especial. Uma semana às vezes parece meses, e isso me traz inspiração e uma felicidade nova que veio com o entendimento de que o que mais vale é a jornada, afinal o “lá” a gente nunca saberá onde é.

Estar em movimento é um estilo de vida com muitas concessões, ao mesmo tempo que é uma liberdade muito interessante de desapego.

É uma escolha que requer muita vontade e coragem. Coragem está entre as minhas palavras favoritas, que  vem do latim  “coraticum”, Cor – Agem, quer dizer, agir com o coração. Acho esta palavra linda, pois não se define.  O agir é ação, sua natureza, imprevisível, e acho que é o que faz a vida maravilhosa, seu mistério.

Lia Paris (Foto: Divulgação/André Giorgi)

Quando conversarmos você estava em Palermo. Ao responder essas perguntas, atualmente, onde você se encontra?

Agora estou em Terrasini, também na Sicília, que é uma cidadezinha próxima a Palermo, onde eu e meu namorado montamos nosso pequeno home studio para uma breve temporada.

Como você tem lidado com a pandemia, com relação à escassez de trabalho? Qual a maior lição de vida que você teve com a pandemia?

O ano de 2019 inteiro, e até o início da pandemia, foi um período muito produtivo para mim. No meio da turnê gravei alguns videoclipes e singles, que com essa pausa forçada estou aproveitando para finalizar e lançar aos poucos. Voltei a fazer locuções e pocket shows particulares que estão sendo um caminho. Mas com relação a uma lição que a pandemia trouxe, não sinto como algo pessoal e sim como um divisor de águas, estamos vivendo um momento histórico, a natureza está dando os primeiros grandes sinais de que estamos na direção errada.

Me entristece muito pensar que provavelmente não vamos conseguir alcançar um modelo de vida sustentável, no tempo que precisamos, para evitar consequências ainda piores. O mais louco é saber que temos tecnologia para viver em um planeta com condições perfeitas para milhares de tipos de vida, que poderíamos viver em um paraíso se os valores fossem outros. Como é que as escolas do mundo todo não têm como principais matérias a sustentabilidade e empatia? O mundo está de ponta-cabeça, a passos largos de destruição em massa, e poucos falam sobre isso. Eu fico pasma. Estamos no cume dessa curva, ainda há horizonte para ambos os lados, a utopia tem chances de ser real, basta saber se o bom senso vencerá a ganância e a ignorância que assolam o mundo. Gostaria que todos assistissem a todos os documentários do David Attenborough. Como ele sugere, temos esperança, mas já estamos atrasados.

Videoclipes são significativos em seus trabalhos. Comente alguns deles.

O Videoclipe “Uncanny” ( 2016 ) que faz parte do EP “Lva Vermelha” foi filmado no deserto de Joshua Tree, na Califórnia. Esse trabalho foi superimportante para mim, já que marcou o início do meu entendimento como diretora artística e performer. O conceito de “Uncanny” deu vida ao show multimídia de lançamento do EP e outros formatos de apresentações que aconteceram em lugares muito especiais como a Cinemateca e o MIS, em São Paulo, e a galeria Cbase, em Berlin. “Uncanny” é uma palavra que na língua inglesa quer dizer uma coincidência estranha com conotação mística. No videoclipe os “uncannys” são os seres prateados que representam o estado de consciência elevada em conexão com o todo; eles viajam no tempo espaço, então no filme misturamos diferentes atmosferas e épocas terrestres. Os “uncannys” são o nosso sentido pessoal da vida, nossa missão, dom e propósito perceptíveis através de sonhos, dèja-vus, estados alterados de consciências ou portais, como no caso o da “Lva Vermelha”.

“Laos” (2017), que também compõe o EP “Lva Vermelha”, tem o nome do país do Sudeste Asiático. Eu a compus sentada à beira do rio Mekong impactada por uma indescritível sensação de paz diante da sua magnitude. A letra talvez seja a mais simples que já escrevi, na hora pensei soava como uma canção infantil, depois me dei conta de que ela é uma parábola. Curiosamente as parábolas são muito comuns na literatura oriental, elas consistem em pequenas histórias que pretendem trazer algum ensinamento de vida e possuem simbolismo onde cada elemento tem um significado específico. “Uncanny enough” foi exatamente o que acabamos desenvolver no seu videoclipe.

“Laos” foi gravado no início de 2017, em um estúdio em Paris, e sua proposta é uma sobreposição de homenagens à sabedoria dos guardiões das florestas. Tanto as florestas brasileiras quanto as asiáticas são os grandes pulmões do mundo, guardam plantas de poder, cura e abrigam centenas de milhares de tipos de vidas. A fumaça remete à pajelança; a imagem futurista com figurino de látex puro e rosto vermelho brilhante sugere uma indígena do futuro como uma guia, enquanto que a coreografia utiliza os mudras como forma de comunicação e emanação de energia, reforçando a mesma mensagem “que nada vale mais que ser feliz “.  A intenção é mostrar essa verdade, talvez naif para muitos, que os valores do mundo dos homens estão invertidos, e que o futuro é simples e essencial, coisa que os sábios indígenas e guardiões da natureza já repetem há milênios de anos em falas parecidas em seus princípios, em diferentes expressões e manifestações dentro de suas culturas.

Meu desejo era que essa mensagem subliminar chegasse até as pessoas de formas diversas, através da música, letra, coreografia, maquiagem.

O que as pessoas devem ter em mente ao assisti-los?

Gostaria que escutassem e ouvissem com atenção. Hoje em dia isso é uma coisa tão rara, perdemos muitas sutilezas nesse modo disperso no qual acostumamos a fazer tudo na vida; lemos e vemos muitas coisas, mas ao mesmo tempo nada por inteiro.

Ainda de acordo com nossa conversa pelo telefone, você está preparando um novo disco autoral. Qual será a pegada dele, onde, como e com quem será gravado, quando será gravado, e quando será lançado? Já há um nome para ele? As letras serão em português?

A partir da dificuldade de ter sempre uma banda me acompanhando acabei criando coragem para fazer algumas apresentações sozinha, para a minha surpresa tive uma resposta muito positiva, aliás minha música mais escutada no Spotify é uma versão acústica de que gravei com o meu surrado Baby Taylor de aço que levo aonde vou só voz e violão. Esse formato minimalista vem de encontro com esse momento mais introspectivo e de retorno às raízes que estou vivendo, e a condição de isolamento me fez reativar a ideia de gravar algumas músicas minhas que ficam extremamente diferentes em versão acústica, e fazer um disco intimista também com novas canções que compus recentemente.

A pré-produção já começou aqui no estúdio em casa e terei alguns músicos convidados pontuais para as gravações no estúdio de Palermo, como Emerson Villani, que é um superguitarrista e produtor brasileiro que por coincidência também está em seu momento “coração cigano” aqui na Itália. Muitas coisas serão definidas organicamente a partir das primeiras experiências com os arranjos, quero sentir as músicas e ir construindo o que nelas couber sem pensar em rótulos ou restrições. A ideia é gravar tudo até o final do ano e provavelmente lançar no primeiro semestre de 2021.

Quando você retorna para o Brasil?

Ainda não tenho data para retornar ao Brasil, mas com certeza voltarei. Se for possível fazer um lançamento físico para esse trabalho, eu adoraria.