‘Nascentes’ é disco que veio para ficar

O mundo não parou. Mesmo com a pandemia do coronavírus, ainda há no mercado fonográfico muitos discos sendo lançados. No entanto, a maioria deles poderia continuar “na encolha”, sem dar as caras aos ouvidos do público. Efêmeros como drosófilas-aquelas mosquinhas de frutas que têm um curto ciclo de vida-, discos sem qualidade musical aparecem e somem rapidamente.

Contudo, há discos que foram gravados para permanecerem ocupando espaço na história da música. É o caso de “Nascentes”, um discaço que será lançado nesta sexta-feira (9) em todas as plataformas digitais e em formato de CD.

“Nascentes” é o primeiro trabalho solo da flautista, compositora e arranjadora carioca Mariana Zwarg, 40, que, após 18 anos de carreira, lança o álbum, fruto do trabalho que a artista vem desenvolvendo há cerca de quatro anos com seu grupo Mariana Zwarg Sexteto Universal.

Mariana Zwarg Sexteto (Foto: Divulgação/ Teemu Mattson)

Embora o grupo contenha integrantes de diferentes países-Brasil, França, Alemanha, Dinamarca e Finlândia-, todos estão unidos pela mesma pátria: a música universal. Fazem parte do grupo: Mariana Zwarg (Brasil), flautas e sax; Mette Nadja Hansen (Dinamarca), vocal e percussão; Johannes von Ballestrem (Alemanha), piano; Ricardo Sá Reston (Brasil), contrabaixo elétrico; Pierre Chastel (França), bateria e percussão; e Sami Kontola (Finlândia/Brasil), percussão.

O Música em Letras ouviu o disco, entrevistou por e-mail Mariana Zwarg e fez com ela um faixa a faixa de “Nascentes”, com exclusividade para o internauta do blog (veja o faixa a faixa, após a entrevista).

A flautista, compositora e arranjadora Mariana Zwarg (Foto: Divulgação)

Filha do baixista, compositor e arranjador Itiberê Zwarg, afilhada do compositor, arranjador e multi-instrumentista Hermeto Pascoal e irmã do superbaterista Ajurinã Zwarg, que, como o pai, toca no grupo de Hermeto, Mariana tem a cantora Joyce Moreno como uma de suas fortes referências musicais. Em suma, a música de qualidade é parente e amiga de Mariana.

Experiência não lhe falta. Com a Itiberê Orquestra Família e depois com o Itiberê Zwarg e Grupo, Mariana gravou quatro CDs e um DVD, além de ter viajado pelo Brasil, América Latina e Europa mostrando o resultado de seus trabalhos em “Calendário do Som” (2005), “Contrastes” (2009), “Identidade” (2012), o DVD “Na Tela da Imaginação” (2014), e “Intuitivo” (2018).

Leia, a seguir, o que Mariana Zwarg disse para o blog sobre o disco “Nascentes”, suas influências e aprendizados, os músicos do grupo, pandemia, o preconceito que existe contra mulheres na música e sua sólida carreira, entre outros assuntos.

Música em Letras-Como você define o conceito do disco ‘Nascentes’?

Mariana Zwarg-O disco é fruto das minhas descobertas musicais, como arranjadora, compositora e band leader. É também uma homenagem à música universal, que o Hermeto [Hermeto Pascoal] trouxe para o mundo. Quando eu nasci, meu pai [Itiberê Zwarg] já era baixista do grupo do Hermeto. Essa música, essa estética, são a trilha sonora da minha vida inteira, desde a barriga da minha mãe. Antes desse projeto, eu ainda não tinha certeza de qual era a “minha” música universal. A partir do momento em que essa banda [Sexteto Universal] estava formada e tínhamos as turnês, os festivais, eu senti que era a hora de descobrir. O Hermeto e o Itiberê são músicos muito livres, que incentivam todos que tocam com eles a buscar sua própria identidade…Essa banda, esse projeto, ajudaram a me conectar comigo mesma e com a minha própria música.

Defina o Sexteto Universal.

É um grupo de músicos vindos de vários lugares do mundo, com um nível técnico impressionante, excelentes leitores [de partituras] e pessoas maravilhosas, que hoje considero parte da minha família. Só isso já renderia um disco muito bonito, né? Mas eles foram além, compraram a ideia de sermos um grupo que toca música universal, composta e arranjada por uma brasileira. Para isso, eles precisavam soar um pouco diferente das “gigs” de jazz que eles tocam desde sempre, principalmente no que diz respeito às articulações, acentos e aos ritmos brasileiros, muito presentes nesse disco. Todos estudaram muito, ouviram muitas das grandes referências da música brasileira. Nunca fiz uma só turnê com eles em que houvesse partituras no palco, isso é impressionante, pois meus arranjos são muito densos e cheios de detalhes. Antes de cada turnê, todos decoram tudo, nota por nota. Então, acho que posso definir meu sexteto como um presente que recebi.

Qual a maior lição que teve com seu pai?

Que a música não tem fim…E que ser músico é um aprendizado eterno; que o fazer musical está sempre em transformação.

Qual maior lição que teve com Hermeto?

Que cada músico é único, e que a beleza está em encontrar inspiração nas pequenas coisas do mundo. Aprendi com ele a riqueza da simplicidade. E o que pra mim é a coisa mais importante: se estamos no palco tocando a música que nos inspira e nos move, o público vai sentir, acolher e aplaudir, não importa se é simples ou complexa.

Qual maior lição que teve com seu irmão, Ajurinã Zwarg?

Que um solo, improviso, expressivo diz muito mais respeito à interação do solista com a “cozinha” [bateria e contrabaixo] do que qualquer outra coisa. Música é um fazer coletivo e construir um solo junto com a “cozinha” é mais emocionante e nos faz viajar por lugares novos e imprevisíveis. Os melhores solos que já fiz foram com o Aju na batera, sou muito fã.

E com a compositora Joyce Moreno, o que aprendeu?

A Joyce foi a primeira mulher que vi liderar uma banda. Estava estudando flauta há um ano e fui ao show dela no antigo Mistura Fina, aqui no Rio. Queria escutar o Teco Cardoso, saxofonista e flautista da banda de Joyce na época, de quem sou muito fã desde sempre. Aí, a figura dela na frente do palco, tocando aquele violão suingado, aquelas “harmonas” [harmonias] lindas, me arrebatou. Estou arrebatada até hoje [risos].

Você viajou muito para tocar pelo Brasil, América Latina e Europa. O que você tem como a maior experiência vivida durante essas viagens?

Que o mundo é enorme e que existem diversos modos de existir, de sentir e de interagir. Que a minha música me leva para lugares que eu não achava que teria espaço. E que não existe jeito certo de viver, as diferenças culturais e musicais enriquecem as relações interpessoais. Também não posso deixar de dizer que fiquei muito apaixonada pela Escandinávia. Muito mesmo! Finlândia e Dinamarca, principalmente.

Como foi o clima das gravações de ‘Nascentes’?

Apesar da maratona, poucos dias pra gravar tudo, foi um clima de celebração e muita alegria. Meu pai foi nosso diretor de estúdio, em Berlim e no Rio, e falava comigo em português. Eu traduzia e me comunicava com a banda em inglês, e como o engenheiro de som não falava muito bem inglês, nossos fones soavam uma mistura bonita de alemão com português e inglês.

Em quantos dias a gravação foi realizada?

Três dias em Berlim e quatro dias aqui no Rio.

Após ter sido diretora da big band do Tallers Musicals de Avinyó, na Catalunha, Espanha, em 2015, você se encontrou como uma band leader. Atualmente, você se realiza mais como instrumentista, compositora ou arranjadora?

São energias diferentes. Escrever para big band, por exemplo, é uma emoção indescritível! Mas melhor é poder tocar meus próprios arranjos com minha banda, assim posso fazer os dois.

O que é a música universal?

É uma música livre, sem rótulos, sem fronteiras. Que permite e incentiva o músico a romper barreiras estilísticas. É uma música viva.

O que as pessoas devem ter em mente quando forem escutar o CD ‘Nascentes’?

Como a música está sempre em movimento, considero CDs como fotografias de cada momento musical do artista. Penso nesse CD como uma foto muito bonita de um processo de construção musical e pessoal, que foi e é muito rico. É também uma celebração da música que foi nascendo e crescendo na estrada. Foi gravado depois das seis longas turnês (2016/2017/2018/2019), durante as quais passamos por mais de 25 cidades em seis países.

Morando no Rio de Janeiro, como você está lidando com a pandemia, com relação à escassez de trabalhos?

Tenho muitos alunos. Passo os dias dando aulas online. E, claro, compondo, arranjando. Demorei um tempo até aceitar e me adaptar a essa nova maneira de existir enquanto musicista. Mas agora já está tudo certo, sigo tentando aproveitar essa pausa forçada para fazer as coisas que são possíveis.

O que seria uma boa solução para que os músicos possam se reunir e tocar juntos novamente?

Hum, acho que é difícil imaginar a volta dos shows ao vivo sem uma vacina, né? Acho que as lives e os vídeos ajudam a matar um pouco a saudade do palco.

Mulheres sofrem preconceito em meio a músicos? De que tipo? Como você lida com isso?

Sim, sofremos. Cada mulher instrumentista, com certeza, tem suas próprias histórias para contar sobre o preconceito que, infelizmente, ainda está muito presente no meio da música instrumental no Brasil. Temos problemas que vão desde a falta de representatividade até as relações interpessoais nos grupos e bandas. Minhas ideias e pensamentos sobre isso estão em constante construção e, principalmente, desconstrução. Desde que comecei a divulgar meu trabalho com o sexteto, muitas mulheres,  principalmente jovens instrumentistas, me escrevem para falar sobre como foi importante para elas me ver liderando uma banda. E querem ter aula, perguntar sobre improviso, arranjo. Acho que precisamos, cada vez mais, falar umas das outras, tocar umas com as outras. Minha geração tem musicistas incríveis, com as quais aprendi muito.

A flautista Mariana Zwarg (Foto: Divulgação/Elisa Toledo)

FAIXA A FAIXA “NASCENTES”, DE  MARIANA ZWARG SEXTETO UNIVERSAL

1 – “Pra Ele”, de Mariana Zwarg

Foi a primeira música que compus na vida. Lá nos idos de 2004, no início de minha carreira. Na época, eu fazia parte da Itiberê Orquestra Família, da qual meu pai, Itiberê Zwarg, e principal inspiração musical era o líder. Ele sempre incentivou todos os músicos, tanto os que passaram pela orquestra quanto seus alunos de oficinas e workshops, a estudarem um instrumento de harmonia. Nas primeiras vezes em que eu sentei em frente ao piano, muito impactada e inspirada pelas novas descobertas sonoras, compus essa música, um samba não convencional em [compasso] 7/4.

2 – “Viva Hermeto!”, de Mariana Zwarg

Em 2014 fiz essa música como presente de aniversário para o Hermeto. Cheguei na casa dele com a música escrita num papel, com dedicatória e tudo. Aí o Campeão [maneira como Hermeto chama todos e é chamado por muitos] falou: “Por que você não faz um arranjo pro grupo do seu pai e aí vocês tocam no meu show amanhã?”. Nem preciso dizer que passei a noite em claro escrevendo esse arranjo. E que emoção foi tocar no palco junto com meus companheiros do Itiberê Zwarg e Grupo.

3 – “De Cá Pra Lá”, de Mariana Zwarg

Toco em grupos de forró há muitos anos. Amo esse estilo e me sinto profundamente inspirada pela cultura nordestina. Esse baião nasceu e ficou pronto rapidinho, em uma hora, enquanto esperava um ensaio começar.

4 – “Acalanto”, de Mariana Zwarg

Um tema bem singelo e delicado. Decidi não escrever muitas notas para flauta e voz nesse arranjo. A “cozinha” é quem muda o tempo todo e funciona como uma engrenagem, cheia de texturas e polirritmias, que trazem novas atmosferas para o tema a cada par de compassos.

5 – “Samba de Avedore”, de Mariana Zwarg

É um samba alegre e solar que dediquei para uma maravilhosa família dinamarquesa, a família da cantora Mette Nadja, que sempre nos hospeda quando tocamos no Copenhagen Jazz Festival. Geralmente é o início das nossas turnês de verão e passamos um tempo “acampados” na casa deles, ensaiando e nos preparando para os shows que virão. São dias sempre cheios de festa e amor. Nessa faixa temos a honra de contar com nossos mestres Hermeto e Itiberê fazendo solos lindos.

6 – “Lucas e Lena”, de Mariana Zwarg

É uma música bem lírica. Foi composta para o meu sobrinho e afilhado, Lucas, filho do meu irmão. Escrevi esse arranjo pensando em trazer uma outra cor para o disco. A parte de piano é toda arranjada, e tenho que destacar a maravilhosa interpretação do Johannes Von Ballestrem, que gravou essa parte com muita sensibilidade. Quando já estava finalizando as gravações, aqui no Rio, me deparei com um poema da minha mãe que falava sobre “nascer”. Aí ,de uma vez só, veio o nome do disco e a ideia de declamar o poema no fim dessa faixa.

7 – “Entre os Girassóis”, de Mariana Zwarg

Última a entrar no disco, essa foi composta quatro meses antes da gravação. Em julho de 2019,  passei 15 dias em Berlim e fiquei muito inspirada pela beleza daqueles dias de verão. As praças cheias de flores, os lagos, a alegria dos alemães com o fim do frio.

8 – “Ventania”, de Mariana Zwarg

Em agosto de 2015 gravei o CD “Universal Music Orchestra”, em Helsinki. Um projeto lindo no qual, além de tocar piccolo, fui assistente de direção. Foram composições e arranjos do meu pai para a big band finlandesa UMO, com participações especiais de Hermeto Pascoal, Aline Morena e Sami Kontola. Durante a semana de ensaios, shows e gravações, conheci e fiquei muito fã de um genial saxofonista finlandês, o Manuel Dunkel. Ficamos amigos e tocamos juntos muitas vezes mais, na Finlândia e no Brasil. Esse tema é dedicado a ele, agradecendo a amizade e inspiração.

9 – “Bandas e Bandeiras”, de Hermeto Pascoal

Sempre fui apaixonada por esse tema em [compasso] 5/4 do Hermeto. Não tinha a partitura, então tirei de uma gravação dos anos 80 no YouTube, nota por nota, acorde por acorde. Valeu a pena! Destaco o solo de “batera” quente e expressivo do grande baterista francês Pierre Chastel.

10 – “Na Carioca”, de Itiberê Zwarg

Essa música foi arranjada por um grande músico, por quem eu tenho uma profunda admiração: o Sá Reston, baixista do meu grupo e parceiro no Itiberê Zwarg e Grupo. Além de tudo, é ele quem substitui o meu pai no grupo do Hermeto. Por tudo isso, posso dizer que temos uma profunda afinidade musical. Não podia deixar de colocar esse samba lindo do meu pai no CD. Foi gravado no primeiro CD da Itiberê Orquestra Família, o “Pedra de Espia”.

LANÇAMENTO CD NASCENTES

ARTISTA Mariana Zwarg Sexteto Universal

QUANDO Sexta-feira (9)

ONDE Todas as plataformas digitais. Entre elas, Bandcamp em, https://marianazwarg.bandcamp.com

QUANTO CD físico R$ 20 e nas plataformas digitais 9.99 dólares

DISTRIBUIDORA Scubidu Music