O anúncio mais triste do ano amealha mais de R$ 90 mil em doações
No dia 24 de maio passado, o Música em Letras publicou, em primeira mão, o triste anúncio escrito pelo músico Luís Filipe de Lima, que por necessidade financeira teve de colocar à venda o “Seu Sete”, um violão de sete cordas da marca Do Souto, repleto de histórias, pelo preço de mercado, ou seja, 12 mil reais. Leia o post em https://musicaemletras.blogfolha.uol.com.br/2020/05/24/o-anuncio-mais-triste-do-ano/
No dia seguinte, a solidariedade provocada pelo anúncio foi tanta, que esse repórter publicou novamente um post a respeito. Leia em https://musicaemletras.blogfolha.uol.com.br/2020/05/25/o-anuncio-mais-triste-do-ano-trouxe-a-melhor-noticia-do-seculo/
Nesta segunda-feira (1°) o assunto é retomado com uma entrevista realizada, por telefone, com o autor do anúncio, que amealhou -até o momento da publicação desse post-, por meio de 700 apoiadores, mais de R$ 90 mil. O valor, oriundo de uma vaquinha, possibilitou ao músico manter seu instrumento de trabalho e garantir a sobrevivência nos meses de vacas magras que estão por vir.
Leia, a seguir, o que Luís Filipe de Lima contou ao blog sobre o ocorrido.
Como tudo aconteceu?
No dia em que escrevi aquele post, estava completando 53 anos. Escrevi que estava vendendo o violão para pagar contas e que me colocava à disposição para trabalhos, incluindo o de jornalistas, pois também escrevo. Depois de algumas horas, fui verificar e havia ofertas, além de trabalhos, de seis pessoas me oferecendo o dinheiro, mas com a condição de que eu ficasse com o violão. Foi uma avalanche de solidariedade e carinho das pessoas. Fiquei muito feliz, não só por resolver um problema financeiro, mas com o gesto da pessoas.
Quem organizou a vaquinha?
A mãe do meu filho. Postei o anúncio às 6 horas da manhã e fiquei offline. Voltei a olhar por volta das 11 horas e já tinha uma comoção generalizada, amigos dizendo que tinha que fazer uma vaquinha para que eu não precisasse vender o violão. Aí quem pulou na frente foi a mãe do meu filho, que é uma pessoa cheia de iniciativa. Ela me ligou dizendo que estava na frente do computador, tinha um feito um texto para a tal da vaquinha, eu concordei e aí começou a funcionar. Na verdade, eu não pensava nisso. Pensava em vender o violão pelo preço de mercado dele, 12 mil reais, mas a gente que é músico sabe que vale mais pela história dele, que não estava embutida nesse valor. Também poderia ter pedido menos porque eu estava no sufoco, mas resolvi pedir o preço de mercado para ver o que iria aparecer.
O que em sua opinião comoveu tanto as pessoas?
Acho que a novidade não foi só o fato de eu ter contado a história desse violão, que tem 25 anos da minha história. Viajei o mudo inteiro com ele. Fiz teatro com ele. Televisão, com ele. Cinema, com ele. Discos, com ele. Shows, com ele. Escrevi arranjos com ele. Toquei em botequins, em lugares ótimos, em pocilgas e lugares escabrosos, com ele. Além de ter acompanhado centenas de cantores. Se fossemos calcular isso em horas de funcionamento ao longo desses 25 anos seria um número absurdo. Por outro lado, não me senti constrangido em declarar minha quase insolvência porque eu sempre trabalhei muito, e nunca precisei me preocupar com as finanças. Somos músicos, e como profissionais autônomos, há meses em que entra mais, há meses em que entra menos grana, mas a gente vai se acostumando com essa vida. Meu pai era ator e diretor de teatro. Minha mãe era bailarina e tinha a carteira assinada porque era do corpo de baile da Globo. Com isso, vendo meus pais, a vida deles, aprendi que tinha de fazer reservas e economizar, porque às vezes tínhamos dinheiro e outras, nenhum. Então, eu nunca precisei me preocupar com isso. Agora a situação da força de trabalho do país, principalmente para quem está envolvido com o setor cultural, foi ficando cada vez mais difícil. Ficamos muito desguarnecidos. Pegamos os últimos anos da Dilma, em que já havia uma crise econômica e que começou a se acentuar causando danos sobretudo para os personagens autônomos ligados à economia criativa. Depois o Temer entrou e acabou com o Ministério da Cultura. Como houve uma grita muito grande, ele resolveu voltar atrás e transformou a recém-criada Secretaria da Cultura novamente em ministério, só que as verbas minguaram, e muito. Contudo, as coisas ainda se mantinham funcionando na época do Temer. O cinema, a ANCINE estava preservada, por exemplo. Só que entrou o governo que está aí, do inominável…Pô, tu sabe que eu saí na primeira página do Globo, é foi a primeira vez que saí com foto e com destaque. Pensei assim: “Caramba, saí na primeira página de um grande jornal. Felizmente não foi por razões policiais”. Mas a gente não consegue evitar as más companhias, né? Porque embaixo de mim, apareceu uma foto do inominável. Fazer o quê, né? Mas tudo bem, pelo menos apareci por cima.”
Ofertas de trabalho também surgiram com o anúncio?
Além das pessoas contribuindo na vaquinha, teve muita gente dizendo que não podia contribuir, mas deixaram muitas palavras de carinho, além de outras oferecendo projetos, propostas, tarefas, gravações e trabalhos, para serem feitos agora ou mais para frente.
A que você atribui tamanha solidariedade?
Eu já trabalhei muito, como você sabe, e sempre convivi com vários grupos de gente diferente. Isso tanto na música, como o pessoal do samba, do choro, das escolas de samba, da música pop, de gravações de CDs, e fora dela. Tem o pessoal do teatro, do cinema, da faculdade de jornalismo onde me formei. Então tive muitas respostas de diferentes amigos, dizendo que leram o anúncio e choraram à beça. Foi uma avalanche do bem. Muita gente me ligou, mas eu não conseguia atender. Falava com três pessoas ao mesmo tempo. Essa história -não consigo falar que viralizou, porque vírus agora dá um trauma danado-, mas ela teve um alcance multiplicado desse jeito, talvez porque eu seja um músico, produtor e agente cultural conhecido por sempre dar trabalho, no bom sentido, para os outros. Eu sempre chamo muita gente para trabalhar. Monto elenco com cantores, músicos, bandas e técnicos. E o fato de um cara como eu reclamar, se queixar e pedir ajuda, tendo de vender meu instrumento porque a situação ficou complicada, além de precisar de trabalho, mexeu com todo mundo.
Quais trabalhos já apareceram para você?
Nessa situação de isolamento posso fazer arranjos, por exemplo, e já pintou um. Fiz uma gravação aqui em casa mesmo e vou mandar para ser mixada num estúdio. Tem outros projetos em curso também. Nessa situação em que estamos há muitos músicos dando aulas e também vendendo seus instrumentos, fazendo lives, mas pense nos roadies, técnicos de som, iluminadores…Esses caras não têm como fazer lives. Até podem fazer, mas não terão o alcance de um cara que canta ou toca. Agora temos que pensar e ajudar esses caras.