Vladimir Safatle e Fabiana Lian apresentam ‘Músicas de Superfície’ em show em São Paulo
Acontece neste domingo (1º), às 19h, no Itaú Cultural, em São Paulo, um show gratuito com Fabiana Lian (voz) e Vladimir Safatle (piano), além das participações especiais do guitarrista Fernando Alge e das artistas Luiza Lian, filha de Fabiana Lian, e Valentina Ghiorzi, filha de Vladimir Safatle.
No espetáculo, composições autorais -concebidas entre 1994 e 1998- do álbum “Músicas de Superfície”, de Vladimir Safatle e Fabiana Lian, dividem o repertório com músicas das bandas Joy Division e Portishead, entre outras.
O Música em Letras esteve em um dos ensaios do duo e, além de entrevistar os artistas, gravou três vídeos com exclusividade para o blog. Neles a dupla mostra nesse formato e em trio -com Luiza Lian e com Valentina Ghiorzi- o que você poderá assistir no espetáculo (veja vídeo no final do texto).
FABIANA LIAN
A cantora Fabiana Lian, 54, estudou jornalismo e música. Não terminou um curso na ULM (Universidade Livre de Música), mas integrou como cantora o grupo Mawaca e atuou em muitos projetos de música eletrônica, jazz e de música contemporânea. Desde 1995, atua como produtora artística de shows internacionais. Há cerca de cinco anos a cantora é umas das proprietárias, em São Paulo, de uma escola de negócios em música e entretenimento ao vivo, a On Stage Lab. “Eu havia parado de cantar, quando reencontrei o Vladimir. Tinha feito um trabalho, em 2008, além de outros pontuais com o Mawaca. No ano passado, nos reencontramos novamente e resolvemos desengavetar esse disco, o ‘Músicas de Superfície’”, falou a soprano que apesar de ter escutado de tudo um pouco durante sua formação musical, sempre teve uma predileção por música brasileira antiga.
Fabiana Lian se considera uma pessoa dos anos 1980. “Se existe um Deus é David Bowie [1947-2016] e todas aquelas bandas dos anos 80, que eu até tive oportunidade de trabalhar. Hoje, o pessoal do New Order, por exemplo, são todos meus amigos”, disse a artista que vê crescer, na atual conjuntura, uma tendência à valorização de produtos brasileiros que, em sua opinião, estão passando por um momento especialmente criativo.
Segundo a artista, o show no qual se apresenta com Vladimir Safatle é muito difícil de ser classificado. “Quem for ao show deve abrir a mente. Atualmente, depois de vários movimentos musicais aos quais as pessoas começaram a ter acesso, talvez seja mais fácil e menos elitizado do que há 20 anos, quando gravamos esse disco, que é um trabalho transgressor, em certo sentido. Acho que talvez o que o resuma seja a falta de fronteiras, entre o contemporâneo e o moderno, o inglês e o francês, porque a gente faz essas transgressões de um jeito fluido.”
Quanto às participações especiais, Fabiana disse serem “afetivas” e completou rindo: “Aguenta coração! Temos o guitarrista roqueiro Fernando Alge, que gravou conosco o disco. Temos também a Valentina Ghiorzi [atriz], filha do Vladimir, e a Luiza Lian [cantora e compositora] que é minha filha e que já tem uma carreira.”
Em que “Músicas de Superfície” mudou sua vida? “Quando fiz esse disco era um período no qual eu estava cantando e experimentando muitas coisas. Era o começo do Mawaca [grupo brasileiro que pesquisa e recria a música de várias partes do planeta], onde eu ajudava muito fazendo pesquisas e nas questões vocais e fônicas. Musicalmente foi diferente, embora eu estivesse preparada na questão vocal. As composições do Vladimir aproveitam muito a voz e a qualidade dos cantores, isso é muito legal. Eu gosto de desafios.”
Para Luiza Lian, 28, sua participação no show é um momento especial. “Muito da minha inspiração para cantar vem de minha mãe e fiquei contente de poder ouvir e vê-la novamente cantando ao vivo. Tudo isso é muito simbólico e forte para mim.”
VLADIMIR SAFATLE
Filósofo, professor, ex-colunista da Folha de S.Paulo, onde escreveu de 2010 a 2019 -atualmente escreve no jornal El País-, pianista e compositor, Vladimir Safatle, 46, compôs trilhas para as peças “Leite Derramado” e “Caesar”, com direção e adaptação de Roberto Alvim.
Com a última, Safatle ganhou o prêmio Aplauso de Melhor Trilha Sonora de 2015, mas avisado de última hora, não pode recebê-lo. “Foi a coisa mais engraçada da vida. Porque, na verdade, eu não imaginava que iria ganhar, né? No dia da entrega [do prêmio] eu estava em casa, meio que dormindo, e ligaram para mim. Acho até que foi o Roberto [Alvim] que ligou e ele falou: ‘Onde é que você está?’. Eu disse: Estou em casa… ‘O pessoal está aqui, você acabou de ganhar o prêmio e estamos só esperando você’. Mas como assim? Ninguém me falou nada, ninguém me avisou nada… Aí entregaram acho que para o Caco Ciocler [ator e diretor], que estava lá. E eu não fui na festa, o que foi uma pena porque parece que foi legal”, contou o compositor.
Perguntado se ainda mantém relações com Roberto Alvim, ex-secretário especial da Cultura do governo federal, exonerado em janeiro após a divulgação de um vídeo institucional em que parafraseava o ministro da propaganda da Alemanha nazista, Joseph Goebbels (1897-1945), Vladimir Safatle respondeu: “Não”.
Vocês romperam antes ou depois da exoneração dele? “Não foi romper. De uns três anos para cá, a gente parou. Fizemos esse trabalho do ‘Leite Derramado’ e paramos. Acho que foi no momento em que ele começou a encontrar Deus, sei lá, ou qualquer coisa parecida, e nunca mais conversamos. Não foi uma coisa de romper, simplesmente a gente nunca mais se falou”. “John Coltrane (1926-1967) encontrou Deus, em vários de seus discos, e não fez o que Roberto Alvim fez”, disse o repórter deste blog. “Ah, cada um tem o Deus que merece, né? Não posso falar nada. É a única coisa que eu tenho a dizer”, disse Vladimir Safatle, que de música tem muito mais para falar.
Chileno, Safatle nasceu em Santiago, mas mora no Brasil desde 1973, quando se mudou para cá com a família, por conta do golpe militar que derrubou o governo de Salvador Allende para instaurar a ditadura militar sob comando de Augusto Pinochet (1915-2006). Em São Paulo, mora desde 1991, mas foi em Brasília que iniciou seus estudos musicais. “Estudei na Escola de Música de Brasília, dos 5 até os 13 anos. Pensei até em prestar [vestibular] para música, mas acabei indo para a filosofia”, falou o artista que estudou, entre outros professores, com o pianista nova-iorquino Jay Gottlieb. “Foi ele quem me apresentou a música contemporânea para piano. Foi em uma época na qual eu fazia doutorado em Paris, em 2002. Tenho com ele [Jay Gottlieb] uma enorme dívida, impossível de pagar”, completou reverenciando o mestre.
Além de contar com um piano de armário na casa da avó, no qual a família toda tocava, a mãe de Vladimir Safatle o incentivava bastante a tocar o instrumento. Por essa razão, contratou uma professora que residia próximo à quadra onde moravam, em Brasília, para lecionar piano para o garoto, que chegou a escrever histórias sobre compositores para que um dia virassem um livro. “Meu pai tocava, meu avô tocava violino, então fazia parte de uma ideia de educação que você tivesse uma formação musical.”
A música erudita foi a entrada para o garoto se interessar, se apaixonar e aprender a arte de amealhar os sons. A música popular veio mais tarde. “Demorou, engraçado, porque eu tinha uma certa restrição ao popular, desde criança. Tinha uma parte que eu gostava e que ouvia por meio de meus pais, que era Chico Buarque e essas coisas.” Não gosta mais? “Fui me abrindo. Até uns 12, 13 anos eu não ouvia outro tipo de música, depois veio a descoberta do rock e da minha relação com a música. Daí mudou.”
O rock, Vladimir conheceu em Brasília. “Naquela época, em Brasília, ou você tinha uma banda ou era roadie de uma banda. O que me impressionava muito era a história da formação de um modo alternativo de vida, com o punk e o pós-punk, e transformar a música em um elemento de resistência, o que me fez querer ter uma banda quando eu era moleque”, falou o artista que integrou a Departamento de Testes, banda na qual, durante dois anos, tocou sintetizadores e teclados, ao lado de três companheiros de som: um vocalista, um contrabaixista, um baterista. “Não tínhamos guitarra na banda, porque não queríamos aquela coisa do virtuose, do sujeito que tem todos os holofotes jogados na sua frente. Queríamos distribuir igualmente as ações, e achávamos que a guitarra ficava muito na frente, muito em evidência. Por isso resolvemos aboli-la”, falou o músico que no show de domingo conta com a participação do guitarrista Fernando Alge.
Muito mais radical do que o rock sem guitarra foi a descoberta que Vladimir fez quando conheceu a música erudita contemporânea. “Pode ser engraçado, mas o raciocínio foi esse. Quando descobri esse tipo de música, vi que aquilo dava muito mais possibilidades de ruptura do que eu imaginava”, falou o compositor que na ocasião, em 1993, aos 20 anos, iniciou seu trabalho de piano com voz para o disco “Músicas de Superfície”, ao lado de Fabiana Lian, para gravá-lo no ano seguinte.
O que mudou em sua vida depois do “Músicas de Superfície”. “ Esse disco era a prova mais cabal da minha incompetência, porque o disco foi gravado e ficou 20 anos na gaveta, literalmente, a ponto de eu praticamente o esquecer. O que aconteceu é que de uns quatro anos para cá comecei a compor para peças de teatro, e o Sesc pediu para eu fazer um CD. Um produtor sugeriu que eu lançasse aquele que havíamos feito antes. Achei que aquilo estava muito fora do meu horizonte, mas a Fabiana insistiu bastante, eu ouvi de novo e chegou uma hora em que decidimos lançá-lo. Pelo menos não ficou aquela impressão completamente estúpida de se fazer um CD para nada e deixar na gaveta. Pelo menos um buraco da vida consegui preencher, né?”
Segundo Vladimir Safatle há dois modos diferentes de produção. “Um é você habitar o outro território. Você vai para um outro território. E o outro é você mudar todos os elementos dentro de um mesmo território, e esse [disco] foi o segundo caso. Tinha a forma canção e, ao invés de romper com a forma canção, quisemos mudar um pouco todos os seus elementos, quebrar as hierarquias, fazer hibridismos de referências, trazendo elementos que normalmente não seriam usados no formato canção. Essa foi a função desse tipo de trabalho, que eu não faço mais. Acho que foi interessante porque foi se criando um certo espaço onde eu podia ficar testando essas fronteiras da forma canção.”
No momento em que vocês dois estavam elaborando esse trabalho, por volta de 1994, muitos artistas trabalhavam com o conceito de desconstrução, atualmente não há mais isso? “Talvez tenha e desapareceu um pouco do radar. Minha impressão sobre o processo de circulação, ao contrário do que se acredita, é de que ele não se pulverizou, ele se concentrou mais.” Esse processo se segmentou, correto? “É, você tem essa duplicidade. Por um lado se segmentou, mas por outro você tem ainda um centro, e o centro se configurou de uma maneira brutalmente monopolista e hegemônica. Hoje, com o processo de segmentação, o independente desapareceu, mas o oficial continuou.”
O SHOW
Sobre o show no Itaú Cultural, Vladimir Safatle observa: “A gente procura não só forçar um pouco alguns limites do que seria o formato canção, mas também darmos uma teatralidade, dramaticidade. No show, as músicas funcionam dramaticamente. Elas compõem ambientes e tipos de experiências muito próprios do conjunto”, disse o compositor”.
Além de faixas do disco “Músicas de Superfície”, o show traz versões de músicas como “Frederick”, de Patti Smith, que será interpretada por Valentina Ghiorzi, 20. Essa era a canção que Vladimir colocava para a filha ouvir logo depois de seu nascimento. “Engraçado que quando Valentina tinha uns 14 anos, ela veio com essa música e eu levei um susto. Eu disse a ela: ‘Peraí, acho que essa foi a primeira música que você ouviu na vida’. Daí, ela quis fazer uma versão para o show.”
Segundo a atriz Valentina Ghiorzi, que cantou com o pai em “situações caseiras”, o show revela um momento transformador na relação dos dois. “Acho que ele deixa de ser meu pai para ser um companheiro.”
Outra versão que será apresentada no espetáculo é “Biscuit”, da banda britânica Portishead, com Vladimir ao piano acompanhando a voz de Fabiana Lian. “Em nome do Pai”, de autoria de Vladimir e Dão Areias, que está no CD “Músicas de Superfície”, será interpretada por Luiza Lian.
Vladimir Safatle lança, na metade deste ano, ou seja, cerca de 15 anos após ter gravado o CD “Músicas de Superfície”, seu segundo disco, que terá o nome de “Tempo Tátil”.
Segundo o artista, ele passou por um processo de crise antes de compor as peças para o segundo disco. “No primeiro, por mais que tenha modulações e cromatismos, o formato é bem tonal. Depois eu entrei em crise com o tonalismo e não conseguia achar outra forma, até que fui aos poucos encontrando outro tipo de composição, que eu diria que é por desfibramento. Tem uma peça em cima de um poema de Sylvia Plath [poeta norte-americana, 1932-1963], ‘Ariel’, que é desse momento. A ideia era exatamente isso, quer dizer, você eliminar as estruturas e permitir um certo amorfismo. Eu até achava que tinha muito a ver com o fantasma brasileiro, nacional, que é um pouco essa ideia de que aqui é um lugar onde falta a ordem. Nada foi muito claramente estabelecido, então as formas são sempre meio amorfas, e você precisa de um tipo de estrutura para segurar. Esse é um dos grandes fantasmas nacionais, então quis fazer uma coisa que levasse isso em conta, ao invés de tentar criar uma ordem que assumisse esse tipo de decomposição.”
Assista, a seguir, aos vídeo gravados com exclusividade pelo Música em Letras durante o ensaio dos artistas.
SHOW MÚSICAS DE SUPERFÍCIE
ARTISTAS Fabiana Lian, Vladimir Safatle, com participações especiais do guitarrista Fernando Alge, da atriz Valentina Ghiorzi e da cantora e compositora Luiza Lian
QUANDO Domingo (1º), às 19h
ONDE Itaú Cultural, av. Paulista, 149, Bela Vista, São Paulo, tel. (11) 2168-1777
QUANTO Gratuito