Compensa recuperar aparelhos de som vintage?
Há muito, pessoas perguntam ao repórter deste blog se vale a pena comprar, ou mandar arrumar para recuperar, aquele aparelho de som (caixas, receivers, toca-discos, gravadores de fitas de rolo, gravadores de fitas K-7, fones de ouvido, cápsulas e agulhas) dos anos 1970 e 1980, que apresentavam uma qualidade de som considerada inigualável.
O Música em Letras falou com vendedores de lojas especializadas da meca da eletrônica, na rua Santa Ifigênia, no centro de São Paulo, além de vagar pela rua dos músicos, ou melhor, pela rua Teodoro Sampaio, em Pinheiros também em São Paulo, e conversou com técnicos especialistas dessa área.
Alguns mostraram-se profundos conhecedores, outros, puros picaretas, além de uns poucos só curiosos, sobre esses artefatos “vovôs”. As conversas levaram à conclusão de que as informações não poderiam ser consideradas confiáveis, pois todos tinham o mesmo objetivo: vender.
Diante do impasse inconclusivo –se compensa ter ou não uma aparelho vintage–, recorri a dois verdadeiros amigos de infância, que, além de terem sido meus vizinhos durante muitos anos, são amantes e quase obcecados por esse tipo de aparelho.
O resultado? Cada um tem opiniões diferentes, mas embasadas, honestas e instrutivas, que compartilho aqui. Este é o mote deste post, que no final do texto traz um vídeo gravado, com exclusividade pelo blog, mostrando o set de um desses amantes de aparelhos de som vintage (veja vídeo no final do texto).
OS AMIGOS
O paulistano Marcos Passeggio, 56, atualmente mora em Santa Catarina. É baterista e gerente de contas da Alfa Global, empresa fundada em 2002, que fabrica produtos da marca Loud Áudio. Entre eles, caixas in wall, caixas in ceiling, distribuidores de áudio, atenuadores de volume e comandos por infrared.
Passeggio atua na área há mais de 15 anos e atende, além da região sul do país, quem estiver no Rio de Janeiro e no Espírito Santo. Quando éramos jovens (tenho um ano a mais que ele), Passeggio ostentava um receiver Marantz 2238B que nos hipnotizava com sua característica luz azul, além de nos preencher a alma com o som de discos importados que passavam por ele, como os do saxofonista tenor norte-americano Johnny Griffin (1928-2008), além de, claro, quase todos do Deus canadense Neil Young, entre outros deuses e bandas que nos catequizaram com suas músicas.
O mineiro Ricardo Altman, 63, mora em São Paulo há mais de 40 anos, é comerciante – dono dos bares Filial e Genésio – e fotógrafo, com dois cursos superiores incompletos: um de economia e outro de engenharia eletrônica. Desde jovem é aficionado por aparelhos de som.
Altman teve uma enormidade de marcas e tipos de aparelhos, pois durante uma época alugava-os para festas. No apartamento de seus pais, no mesmo prédio onde morávamos, tinha um toca-discos Garrard que, para nosso deleite, reproduzia muitas bolachas de mestres da MPB, como João Gilberto (1931-2019); Tom Jobim (1927-1994); Eduardo Gudin; Edu Lobo e da divina Elizeth Cardoso (1920-1990), além dos arrebatadores vinis importados de bandas de rock, como os da britânica Ten Years After, com o incomparável guitarrista Alvin Lee (1944-2013), Crosby, Stills, Nash and Young, Gentle Giant, Jethro Tull, e, claro, das divas Sarah Vaughan (1924- 1990) e Ella Fitzgerald (1917-1996), entre outras.
Leia, a seguir, o que cada um desses loucos por som explicou ao blog.
Música em Letras – Recuperar aparelhos de som vintage vale a pena?
Marcos Passeggio – Não, no meu caso.
Ricardo Altman – Sim.
ML – Por quê?
MP – Hoje, temos alta tecnologia disponível para a reprodução sonora e uma incrível variedade de soluções e marcas conceituadas, disponíveis não somente nos tradicionais mercados europeu e norte-americano, como também no Brasil, e há uma década ou mais na China.
RA – Para os aparelhos nacionais há peças de substituição. Esse negócio de dizer que o aparelho tem que ser original é balela. Por que tem que ser original? Há peças que você pode trocar e o aparelho fica bom. Contudo, se o aparelho estiver muito detonado por que você não cuidou direito ou comprou de mãos erradas, realmente não vai valer a pena porque é sucata. Vale a pena recuperar ou comprar um aparelho de som vintage quando você tem um apego pelo aparelho, mas é bom se preparar porque apego sai caro. Um aparelho bem recuperado, além de ter uma qualidade de som muito boa pode durar cem anos.
ML – Quais aparelhos você tentou recuperar e não conseguiu? O que fez com eles?
MP – Tive aquele receiver Marantz 2238B, fabricado em 1982, que consegui recuperar quando ainda residia em São Paulo, na década de 1990. O trabalho foi feito por um artista e proporcionou uma vida bem mais longa ao aparelho, com ótimo desempenho. Depois, não consegui mais alguém que tivesse algumas peças originais ou equivalentes (potenciômetros, capacitores etc) e se dispusesse a colocar a mão na graxa novamente. O mesmo se deu com um Akai 4000dB 1983 de rolo. O técnico queria uma pequena fortuna para restaurar, que eu não dispunha na ocasião. Também tive um toca fitas Sony TC-U5 (queimou o display, quebrou o mecanismo da tecla Play e da tecla Rec), além de um toca-discos Technics SL-B200 (queimou algo no motor). Me desfiz de todos sem culpa, dei, vendi para o ferro-velho, joguei fora no reciclado. Além do mais, hoje em dia você encontra esses saudosos [equipamentos] à venda na internet por preços razoáveis e em bom estado.
RA – Nunca tive aparelhos para serem recuperados. Sempre comprei aparelhos de boas mãos, indicados por gente de grupos que existem na internet especializados nisso. Eu os recebo em minha casa, muito bem embalados, todos revisados. Com certeza vão durar cem anos em minhas mãos. Entre eles, atualmente, tenho um Marantz 2250 B [receiver], de 1975, que paguei R$ 2.500, porque dei como forma de pagamento para o vendedor um outro receiver, um Akai, que valia R$ 1.500. Tenho outro receiver, um SAE, de 1979, que custou R$ 5.000. Também possuo um gravador de fitas de rolo Revox, de 1973, pelo qual paguei R$ 3.500. Quem me vendeu foi um técnico espetacular, que só mexe com essa marca. Tive vários toca-discos; atualmente, tenho dois Technics, um é o 1310, de 1975, que comprei por R$ 4.000, e o outro é um SL Q-03, que eu paguei R$ 1.300. Possuo uma cápsula Shure M 97 XE, que custa uns R$ 800, e duas Ortofon, uma que custou R$ 1.200 e outra que custou uns R$ 700. Minhas atuais caixas de som vieram do Rio de Janeiro, totalmente restauradas e originais. São as famosas Decade L 36 da JBL, com alto-falantes Alnico, que têm um imã especial, que era usado pela JBL, e que tem a característica de fazer com que o alto-falante bata para frente e não para trás, como os outros. Isso dá uma profundidade no som, o que hoje é chamado de subwoofer.
ML – O que o impediu de recuperar o aparelho, falta de peças, falta de mão de obra qualificada ou o alto preço da reforma?
MP – Pelo conjunto da obra, né? Quando você encontra um excelente profissional, apaixonado pelo que faz, ultraconhecedor, e não se consegue encontrar uma ou outra peça, daí o aparelho fica ali, jogado em um canto, aguardando meses até que se ache ou não uma solução. Quando você tem o técnico e as peças, o preço do serviço não é barato. Afinal, é uma restauração, não é um reparinho qualquer.
RA – Uma única vez tive um pequeno problema com um Marantz que adquiri, mas era coisa pequena mesmo. Enviei para um cara de João Pessoa, um técnico em eletrônica que, além de baixar os esquemas pela internet, tem vários aparelhos de sucata e ele o recuperou deixando-o sensacional. Agora, tem que saber embalar bem, com uma caixa de papelão grosso, plástico bolha, isopor grosso dos lados, em cima e em baixo do aparelho. Caso contrário, você pode danificar o aparelho no transporte. Já comprei aparelhos de vários estados, como Espírito Santo, Rio de Janeiro, Paraíba, e até do Uruguai, e todos chegaram sempre intactos. Mas nunca tive esse tipo de problema porque sempre comprei de gente honesta, colecionadores, técnicos especializados e que entendem muito do assunto. Essas pessoas não sujam os nomes delas, por isso entregam tudo dentro do padrão, que é de excelência.
ML – O que fazer com aparelhos vintage condenados? Usar como decoração, descartar no lixo ou tentar vender como sucata?
MP – Tentar vender, ou então doar, pois talvez um técnico possa recuperar outros equipamentos com as peças disponíveis.
RA – Condenados por quem? Primeiro eu mando para dois ou três técnicos de confiança. Dificilmente não tem jeito de arrumar, a maioria tem. Entretanto, espero o quanto tiver de esperar. Às vezes, dura três meses para termos um diagnóstico. Por isso temos de ter dois receivers, dois toca-discos e assim vai. Posso esperar meses por uma resposta do técnico, porque quem tem um [aparelho vintage] apenas, não tem nenhum. Nunca tive esse problema de ter de descartar um aparelho, porque não compro porcaria. Mas se tiver, ou seja, se o aparelho for considerado condenado, descarto no lixo.
ML – Aparelhos eletrônicos são perecíveis? Quanto duram em média?
MP – São sim, sem dúvida. Aparelhos Hi-Fi fabricados na décadas de 1960, 1970 e até 1980 eram feitos para durar. Muitos estão aí até hoje funcionando perfeitamente, após 50 anos de fabricação. E são esteticamente lindos, na minha opinião. Hoje em dia temos ótimos produtos em se falando de tecnologia embarcada, com preços atraentes e durabilidade de cinco, seis anos no máximo. Um exemplo claro são as TVs e smartphones. Mas também existem marcas que entregam o estado da arte em reprodução visual e sonora, com uma maior vida útil, para quem pode pagar por isso.
RA – Não são perecíveis, aparelhos vintage têm duração indefinida.
ML – Quais componentes (capacitores a óleo, por exemplo) e materiais (borracha, por exemplo) são mais perecíveis e estão sujeitos à ação do tempo?
MP – Todos os componentes e partes que são feitos com madeiras, plásticos e borrachas têm um prazo de vida útil mais reduzido em relação a componentes cerâmicos, metálicos, placas de circuitos, e por aí vai. Você mencionou os capacitores a óleo que foram muito utilizados em projetos Hi-Fi das décadas de ouro (60/70/80). É opinião forte na audiofilia que bons capacitores a óleo influenciam no timbre (mais morno) dos amplificadores etc, mas são mais caros, podem vazar com o tempo e comprometer toda uma placa de circuitos; também podem ser difíceis de se encontrar. Se você tem dinheiro e tempo disponíveis para percorrer esses caminhos todos (fornecedores de peças, audiófilos, técnicos apaixonados com ótimas referências) e está sempre em busca daquele som “das antigas”, isso acaba se tornando um hobby e então vale a pena.
RA – Serigrafia, por exemplo, só se o cara não cuidar. Eu só compro aparelho com serigrafia em ótimo estado, com tudo perfeito. Capacitores podem ser trocados, inclusive tem à vendo no Ebay. Esse negócio de ser a óleo é só trocar por poliéster, só que, como já disse, você tem de achar um técnico que mexa com aparelho vintage e que seja bom.
ML – Qual a dica de ouro que você dá para quem está procurando um técnico para recuperar um aparelho vintage e não ser enganado?
MP – Conheça um audiófilo. Vá a uma loja de equipamentos Hi-Fi e converse com o dono. É certo que ele já tentou recuperar um ou diversos vintage e fatalmente conhecerá algum mago de confiança.
RA – Informe-se. Entre e faça parte de grupos especializados em aparelhos vintage, que existem na internet. Pergunte por nomes de técnicos dentro desses grupos e mencione o aparelho que você quer comprar ou recuperar. Há vários grupos bons, entre eles, para gravadores de rolo, o Hell to Hell. Para receivers, há o Loucos por Receiver, e também tem o Áudio Analógico, além de uma infinidade [de grupos] para cápsulas e agulhas. Tem que entrar, perguntar e desconfiar sempre do que é muito barato, porque o barato sai caro. Outra coisa, nunca envie ou receba um aparelho por avião ou correio. Eu uso sempre o Jadlog para transporte, pois é mais seguro e mais barato [o transporte] por via terrestre. Tem aparelhos que pesam 35 quilos, por exemplo, e por avião fica inviável.
Assista, a seguir, um vídeo gravado com exclusividade pelo Música em Letras, no qual Ricardo Altman mostra com orgulho seu set formado por aparelhos vintage.