Música viva no Dia dos Mortos
Autor da frase “A morte é hereditária”, Millôr Fernandes (1923-2012) jamais deveria ter morrido. Contudo, nossa “hereditariedade” é implacável, e provou isso matando, além de meu querido Millôr, meus pais Carlos Bozzo (1929-1994) e Wilma Roberto Bozzo (1930-2019).
Quando eu tinha entre 7 e 10 anos, no Dia dos Mortos, costumava acompanhar primos, tias e minha avó para lavarmos túmulos de parentes e conhecidos no cemitério do Araça, em São Paulo. Eram dias quentes e acabávamos sempre jogando água uns nos outros. Para mim, uma criança, era uma grande festa, na qual descontraíamos nossas almas e refrescávamos nossos corpos.
Há muito não faço isso. No mínimo, há mais de 45 anos não vou a cemitérios, no Dia dos Mortos, e nem tampouco lavo túmulos em meio a uma festa de encharcar. Entretanto, neste sábado (2), Dia dos Mortos ou Dia de Finados, como queira, atendi à solicitação dos papas Silvestre II (946-1003), Leão IX (1002-1054) e João XVIII (1881-1963), que desde o século 11 já recomendavam que dedicássemos, um dia por ano, a rezarmos por quem já havia morrido. Peguei um busão e fui ao cemitério do Redentor, na av. Doutor Arnaldo, em São Paulo, no intuito de prestar uma homenagem aos meus pais que lá estão enterrados.
Chegando no portão do local, lembrei- me de que talvez tivesse de portar flores para ritualizar a homenagem deste dia, que certamente não mais contempla uma pueril festa aquática. Vladimir Maiakovski (1893-1930), o “Poeta da Revolução”, – outra vítima da morte, mas não de maneira “hereditária”, pois o russo suicidou-se com um tiro em 1930 – sabia que “os tempos [estavam] duros/ para o artista”, quando versou em homenagem ao seu colega Serguei Iessiênin (1895-1925), poeta genial que também morreu de maneira “não hereditária”, pois cometeu o suicídio enforcando-se num quarto de hotel, onde escreveu um poema de despedida com seu próprio sangue. Fosse vivo, na atual conjuntura, Maiakovski saberia que os tempos andam duros também para os jornalistas, em todos os sentidos, e flores, principalmente nesta data, custam os olhos da cara. Assim, entrei no cemitério de mãos abanando. Afinal, o que vale é a tal da boa intenção.
Avistei um caixão em cima de um carrinho parado na entrada do cemitério ladeado de pessoas em pé. Pensei: “Putz, sofrer a ação da ‘hereditariedade’ e ser enterrado no Dia dos Mortos é muito adequado, pelo menos para quem morre, mas para quem fica por aqui, deve ser um porre, daqueles de interromper a viagem feita para a praia e ter de voltar subitamente para São Paulo, em um dia de muito sol…”.
Naquele momento, a música vinda de um coral que estava se apresentado na capela local chamou-me a atenção e resolvi me aproximar mais do som. Era o coral da USP, regido pela maestrina Marcia Hentschel, com o acordeon de Alvaro Couto e Silva, o piano de Eduardo Dobai, e a belíssima voz da solista Jessica Leão. A soprano recebeu o primeiro prêmio entre os vencedores do Concurso Jovens Solistas da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo e vai se apresentar em um concerto da temporada da orquestra de 2020. A música? “Misa a Buenos Aires – Misatango”, de Martín Palmeri. Foram esses os nomes que consegui ler em um cartaz, embora estivesse com meus olhos cheios de água após o término da arrebatadora apresentação (assista ao vídeo no final do texto).
A tremenda porrada dada na alma pelo som da música apresentada de maneira extremamente viva, deixou-me desnorteado e deambulando em meio à agradável área verde do cemitério em busca do jazigo de meus pais. Quase desistindo de achar o sepulcro, lembrei-me de que o pequeno lote da morada final de meus progenitores ficava em frente a um abacateiro, o qual abrigava, sob sua sombra, um banquinho de mármore branco, que minha mãe pediu para construir no intuito de se sentar e rezar por meu pai que “hereditariezou-se” 25 anos antes dela.
Abacateiro localizado, banco ocupado e jazigo avistado, comecei a pensar em como iria homenageá-los, se rezando ou apenas mentalizando-os quando tive o fluxo do pensamento interrompido pelo que ouvi, além dos cantos dos muitos pássaros ali frequentes. Eram sons suaves de instrumentos de sopro fazendo música. Imaginei que fosse para a pessoa morta que estava na entrada do cemitério quando cheguei, e que nesse momento deveria estar sendo sepultada.
Fui até o aglomerado de pessoas que circundavam o enterro, mas qual o quê? Os sons vinham de outra parte. Foi quando avistei, ao longe, dois músicos: um tocando uma trompa e o outro tocando um flugelhorn (instrumento de sopro da família do trompete). Os dois estavam sentados diante de uma estante de partituras em uma das alamedas do local, tocando harmonicamente.
Assisti um pouco ao duo e comecei a gravá-los tocando parte do tema principal do filme “Love Story”, além de fotografá-los (assista ao vídeo no final do texto). Era mais música viva em meio a um lugar de mortos, sendo acompanhada por cantos de pássaros. Pensei imediatamente em postar o vídeo na série “Sons de S.Paulo”, do Música em Letras, na qual sons das cidades, campos, matas e do litoral do estado são registrados pelo blog. Mas o que aconteceu a seguir me fez repensar o destino deste post e escrevê-lo assim, como você o lê agora.
Com a intenção de incrementar a matéria, passei a fotografar o cemitério, seu logotipo, pássaros, árvores, carpas, jabutis – sim, no entorno da capela há um reservatório de água, com terrário para esses animais – e flores. Flores provavelmente caídas de algum arranjo. No chão, avistei um ramo com dois crisântemos brancos e um outro cheio de flores “mosquitinho”, também brancas.
Passei a mão nos dois ramos florados que estavam se “hereditariezando” sob o forte calor, fui até o túmulo dos meus velhos, e finalmente prestei a tal homenagem. Fiz um buraquinho na terra, plantei os raminhos juntos, como um símbolo de união e paz, sentimento que me acolheu em torno de tanta música viva no Dia dos Mortos.
Assista, a seguir, aos vídeos gravados, com exclusividade pelo Música em Letras, com trechos da apresentação do coral da USP interpretando “Misa a Buenos Aires – Misatango”, de Martín Palmeri, além do duo que tocou, entre outras músicas, parte do tema principal do filme “Love Story” no cemitério do Redentor, em São Paulo, no Dia dos Mortos. O último vídeo mostra o cemitério do Redentor, visto do lado de fora a bordo de um ônibus.