Domingueira: Rui Mendes, fotógrafo da música e da memória
Domingueira é a série do Música em Letras em que textos de fôlego são elaborados para uma leitura que exige mais tempo. Neste post, uma entrevista exclusiva com o fotógrafo Rui Mendes, que reencontrei no camarim de Marcelo D2 durante o lançamento, em março, do show da obra transmídia “Amar é para os Fortes”, em São Paulo.
Ao assistir o filme “Amar é para os Fortes”, enviado para os jornalistas dias antes do show, identifiquei – antes de ler os créditos que confirmaram minha descoberta – algumas fotos sensacionais, em preto e branco, de figuras ligadas ao samba. Todas eram de autoria de Rui Mendes, pertencentes a um ensaio chamado Heróis do Samba. Entre as fotos figuram Noca da Portela, 86, Delegado da Mangueira (1921-2012), Carlos Cachaça (1902-1999), Luiz Carlos da Vila (1949-2008), Monarco, 85, Wilson Moreira (1936-2018), Guilherme de Brito (1922-2006), Dona Ivone Lara (1922-2018), Mestre Fuleiro (1911-1997), Nelson Sargento, 94, Walter Alfaiate (1930-2010), Bala do Salgueiro e Dona Zica (1913-2003).
Na conversa com Rui Mendes, que rolou solta no camarim do show de D2, lancei o desejo de entrevistá-lo, abordando a história de tais fotos que trazem, além de um belo registro realizado, no Rio de Janeiro, em 1995, uma curiosidade: Rui fez com que o ambiente fotografado fosse o personagem da imagem e não só o artista, como era costume. Há um plus nelas que as diferenciam e faz do fotógrafo um inquieto e criativo artista caçador de imagens da memória.
Rui topou falar sobre as imagens e me recebeu em seu estúdio, semanas depois, com o pé imobilizado, pois havia sofrido um acidente de moto. “Minha memória tá foda, eu tomo pregabalina e morfina, então esqueço muito as coisas. Além disso, vivi os anos 80, né?”, falou rindo o fotógrafo que não toma tais drogas por conta do acidente de moto, mas pelo fato de ter tido problemas nos rins, há cerca de 15 anos, e depois de uma infinidade de hemodiálises que lhe causam dores insuportáveis.
Diferente de suas dores, nosso prazeroso encontro aconteceu na Barra Funda, no estúdio em que o artista trabalha há mais de 20 dos 40 anos em que fotografa, sendo 35 apenas registrando o meio musical. Só para capas de discos, Rui Mendes fotografou quase 300. “No rock tinha muito dinheiro. Uma capa era 20 mil doláres. Eu ganhei muito dinheiro. Isso, agora, mudou e muito”, disse o fotógrafo. Entre as capas com fotos de Rui Mendes estão as do disco “Música Calma para Pessoas Nervosas”, sexto álbum de estúdio da banda de rock Ira!, lançado em 1993 pela gravadora WEA, e a do último disco dos Racionais MC’s, “Cores & Valores”, quarto álbum de estúdio do grupo de rap, lançado em 2014 pelas gravadoras Cosa Nostra e Boogie Naipe. “A mais recente capa que fiz e gosto muito é a do Projota”, contou o fotógrafo, referindo-se ao rapper, cantor, compositor e ator José Tiago Sabino Pereira, conhecido pelo nome artístico Projota.
Para Rui Mendes, o CD como mídia foi o maior engodo do mundo. Papo de fotógrafo ressentido por perder o espaço que havia nos discos de vinil? “Não”. Em que sentido o CD é um engodo? “Em todos os sentidos. No som, e com relação a mídia para colecionar. Um negócio que era lindo e maravilhoso [o disco de vinil] foi diminuído em 30% do tamanho. E aí você descobre que o negócio [CD] dura menos, pô! Diziam que era para a vida inteira e dura cinco anos; se estiver na maresia do Rio de Janeiro, dura dois. É um negócio muito precário. O som é muito precário. E só fui descobrir depois de ter dado todos os vinis. Isso foi uma puta sacanagem. Só da Montown, Atlantic e Rhino eu tinha mais de 1.500 discos.”
Leia a seguir a entrevista e assista, no final do texto, ao fotógrafo de todos os sons mostrando parte desses registros.
FOCO NO FOTÓGRAFO
Rui Serra Mendes completou 57 anos de idade no último 25 de março. Nascido em Assis, no interior de São Paulo, Rui mora na capital paulista desde 1980. De fotografia amealha 40 anos fotografando o mundo musical há 35. “Minha família toda é baiana, sou o único paulista da família. Meu pai foi fiscal do imposto de renda e depois virou auditor fiscal. O primeiro lugar que ele foi designado para trabalhar foi [no estado de] São Paulo, em Assis. Nasci em Assis, porque minha mãe estava com ele em Poços de Caldas e começou a ter dores de parto, quando ele disse pra ela que não iria ter um filho mineiro nem fodendo.”
NA FOLHA
Aos 23 anos, Rui Mendes fazia, na Folha de S.Paulo, a extinta seção “Fotografe Sem Mistério” do caderno de informática do jornal. O trabalho durou de 1984 a 1986. “Eu era comentarista de equipamento. O Mário César [Mário César Carvalho, repórter especial do jornal] que me pôs nessa parada. Fomos colegas de ECA [Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo] e ele me convidou para escrever sobre câmeras, filmes, lentes, definição e o caralho. Mas o engraçado era que o jornal, nessa época, era uma bosta e imprimia tudo fora de registro, então o jornal fodia qualquer comentário sobre definição, por exemplo”, contou rindo.
HERÓIS DO SAMBA
O ensaio Heróis do Samba compreende 13 fotos PB feitas em um mês, no Rio de Janeiro, de personalidades relacionadas ao mundo do samba. Todas imagens foram capturadas com a mesma lente – bichada, depois explico-, com a câmera na mesma altura e basicamente na mesma distância com relação ao personagem. “Comecei a fazer esse trabalho em 1995, como uma pauta da extinta revista ‘Show Bizz’. Fotografei pra essa revista do primeiro ao último número. O primeiro personagem foi o Carlos Cachaça. Sabia da importância dele porque meu pai foi um cara que ouvia muito samba. Ele era fã da Clara Nunes e ouvia muito o Nelson Gonçalves. A formação musical de meu pai é dessa época. Com 18 anos ele viveu a segunda guerra mundial, então ouvia só coisa boa como Orlando Silva, Francisco Alves. Eu peguei o gosto pelo samba dessa época, basicamente por influência de meu pai.”
No intuito de realizar a pauta, Rui Mendes foi para o morro da Mangueira e fotografou Carlos Cachaça quando o sambista estava com 92 anos de idade. “Ele já estava velhinho e não conseguia subir as escadas da casa, por essa razão a cama dele ficava na cozinha e a porta da sala dava pra cozinha, possibilitando que víssemos a cama de ladinho. A sala era pequenininha e cheia de coisas dele. Saquei, na hora que tinha que fazer ele meio aberto, tinha que mostrar o ambiente e tal. Cheguei na outra casa, que era a do mestre Fuleiro, que morava na Serrinha. Ele já era considerado uma lenda e o responsável pela batida do samba do carnaval carioca. Era tio de Dona Ivone Lara e mestre do Império Serrano. Quando cheguei na casa dele também era cheia de coisinhas, badulaques, fotos dele, tudo muito parecido com o ambiente da casa do Carlos Cachaça. Ao ir de casa em casa, passei a usar o mesmo padrão usado na casa do Carlos Cachaça e do mestre Fuleiro, a mesma lente, o mesmo filme, a mesma câmera, altura e distância para fazer as fotos. Fiz 13 no Rio e umas nove, anos depois, em São Paulo.”
“Em São Paulo, foi só em 2001 [que fez as fotos], porque eu queria fazer uma exposição para homenagear esse pessoal do samba. Quis fazer isso porque não temos memória, basta dizer que Cartola tem só quatro discos gravados, e Carlos Cachaça, um. É um negócio de cortar o coração. O Bala do Salgueiro, quando o fotografei, estava com 75 anos e era um engraxate no Mayer [bairro do Rio de Janeiro]. Ele me falou, não sei se era verdade, que tinha mais de 200 sambas gra-va-dos! Eles vendiam samba; o Francisco Alves foi o cara que mais comprou sambas do Cartola e desse pessoal. Ele subia o morro e comprova samba por, sei lá, 500 mil réis e o cara [compositor] não tinha mais direito nenhum sobre eles. Na época, não tinha gravador meu; se o cara não escrevesse aquilo e guardasse, nem sabia que aquele samba era dele. O Cartola falou isso em entrevista. Mostravam para ele sambas [feitos por ele] e ele nem se lembrava mais.”
ÚNICO BRANCO
“O Guilherme de Brito foi o único branco fotografado nessa época por mim. Ele foi o grande parceiro de Nelson Cavaquinho e autor dos versos ‘Tire seu sorriso do caminho, que eu quero passar com a minha dor. Hoje pra você eu sou espinho, espinho não machuca a flor’. Combinei de fotografá-lo em um domingo. Liguei para ele na sexta-feira, daqui de São Paulo, e atendeu a mulher dele, acho que se chamava dona Nelma. Expliquei quem eu era e que havia combinado de fotografá-lo no domingo e queria saber se estava tudo confirmado. Ela me respondeu que se ele havia combinado, ele estaria lá. Mas não podia confirmar, porque ele saía de casa na quinta-feira à tarde e voltava só domingo de manhã. O cara já devia ter uns 72 ou 74 anos de idade e saía tocando direto todos esses dias, dormindo em qualquer lugar. Era prazer puro, o negócio desses caras era tocar. A Beth Carvalho fala isso, que ninguém tinha hora para voltar para casa. Sei que eu fui para a casa dele, como tínhamos combinado, e ele tinha acabado de chegar. Eram 10 horas da manhã de domingo, tomou um banho e pousou para a foto. Tanto é que ele ficou com uma cara de triste do caralho, mas não era tristeza não, era cansaço mesmo. O cara estava acabado mesmo, mas me recebeu. A mulher dele intimou a gente a ficar para o almoço e ele aí me contou, textualmente, que o Carlos Cachaça acordava, bebia, bebia, bebia, bebia, bebia e caía; acordava bebia, bebia, bebia, bebia, bebia e caía; acordava bebia, bebia, bebia, bebia, bebia e caía. Então, ele tomava três porres por dia. Todos os dias, sem parar, e foi a vida inteira assim.”
O AMBIENTE É O PERSONAGEM
As fotos da série Heróis do Samba elegem o ambiente, no qual se encontram os artistas, como personagens. “Elas contam uma história do samba. As casas que fotografei, por exemplo, não tinham um planejamento, foram construídas no decorrer da vida dessas pessoas. Então, é um puxadinho atrás de um puxadinho. E teve gente que não tinha casa para fotografar. O Monarco não quis me levar na casa dele e fizemos a foto na quadra da escola de samba dele, do terceiro grupo, e que não me lembro o nome. Era debaixo de um viaduto, numa quebrada do Rio de Janeiro. O Luiz Carlos da Vila também não quis que eu fosse na casa dele, de jeito nenhum, e fiz [a foto] num bar na Vila da Penha [bairro da zona norte do Rio].”
RUÍDO VIRA LINGUAGEM
Um fato curioso cerca as fotos da série Heróis do Samba. “Essas fotos começaram a ser feitas com alguns problemas técnicos, que eu deixei acontecer e virou linguagem. A lente de 35 milímetros que eu usava, que era de segunda categoria da Canon, bichou durante o trabalho. Quando percebi, decidi não mudar e continuar a fotografar. Ela estava meio descolimada [desalinhada] e o filme era muito sensível, de 3.200 ASA, que usei porque a maioria dos lugares fotografados eram em favelas, e em favelas você não tem luz, cara. Muita coisa minha é feita com a luz que tem no lugar. Além disso, odeio equipamento, não gosto de parafernália, tenho uma cabeça de flash. Sempre usei equipamento Canon e há muito tempo passei a usar uma lente só. Depois, como sempre andei de moto, levo uma bolsinha e um tripé pequeno, só.”
OUTROS SIM, ALGUNS NÃO
“Em 2001 voltei para o Rio para fazer outros artistas. Tenho o Luis Melodia fotografado nessa linguagem dos Heróis do Samba. Mas fiquei um tempão, mais de um mês, tentando fotografar o Paulinho da Viola e ele me esnobou muito. A mulher dele me enrolou, mesmo eu explicando o que era e fui esnobado pela mulher dele. Não sei nem se ele sabe disso. Acho que o cara não entendeu a parada. Eu mandei as fotos feitas em 1995, mas não sei nem se ele viu. Tentei, tentei, tentei, tentei e chegou uma hora que desisti. Fazer o que, né? Eu tenho uma foto dele junto com o Gil [Gilberto Gil] em um camarim com a velha guarda da Portela, que é muito legal, mas é outra parada, queria fazer na linguagem dos Heróis do Samba. E eu sou um puta fã do Paulinho da Viola, mas os caras não me conheciam e cagaram para mim, a ponto de a mulher dele não me atender nunca mais. O Luiz Melodia foi o contrário, me recebeu superbem e era gente finíssima. Nessa, fui atrás da história do samba paulista. Comecei com o Geraldo Filme, descobri que existia o seu Toniquinho Batuqueiro, o seu Nenê da Vila Matilde, Oswaldinho da Cuíca, seu Carlão do Peruche, Germano Mathias. A dona Shirley da Nenê e dona Olímpia da Vai-Vai também entraram nessa. Tinha alguns compositores e gente de escolas de samba, uns caras muito importantes. Fizemos uma exposição na Pinacoteca [do Estado de São Paulo] com esse material.”
PRÊMIOS NÃO SÃO PARA OUTSIDERS
“Com essa série dos Heróis do Samba fui indicado para dois prêmios: Abril, e Funarte. Só indicado, não ganhei porra nenhuma porque não sou da panelinha, sou outsider. Odeio fotógrafo. Acho fotógrafo um cara chato pra caralho e metido. Odeio equipamento e odeio fotógrafo. Acho que tenho só uns cinco amigos fotógrafos.”
MOTORA ESPECIAL
“Para fazer o trabalho dos Heróis do Samba eu tinha que ter alguém para me levar para fotografar. Alguém que fosse, além de motorista, conhecedor das quebradas e das pessoas, porque já era meio barra pesada em 1995. Não eram os anos 80, que a gente subia o morro na boa. Aí chamei um cara [para ser motorista], que era o Athayde de Amar, o maior diretor de filmes pornô que o Brasil já teve. Tem mais de 100 filmes dele. Ele tinha uma companhia de vans que prestava serviço para produtoras de cinema. Minha mulher, na época, era produtora de cinema e me apresentou o cara, que é gente finíssima e conhecia todo mundo. Ele conhecia todos os endereços e sabia quando chegava nesses lugares com quem falar, o que para mim facilitou muito.”
PAPEL DO FOTÓGRAFO
“O papel do fotógrafo é o da memória, mano. Se você é fotógrafo e não deixou nenhuma memória, meu amigo, você foi um artesão, mas não foi um fotógrafo. No Brasil, 99% dos caras são isso, artesões. São caras que gostam de fazer publicidade porque tem muita grana nisso. Eu faço isso também, mas tenho que ir atrás, porque me procuram para que faça o meu trabalho, que é bem diferente de publicidade. Fiz há pouco tempo [uma publicidade] de cerveja que os caras babaram. Já fiz moda, publicidade…fiz de tudo, mas meu trabalho tem linguagem, tem estilo, que é o grande barato pra mim. Até chegar nisso, eu errei muito, porque nunca tive medo de arriscar e experimentar. Na publicidade eu teria ganho muito dinheiro, mas sempre subverti muito e fui pra outro lado. Na primeira foto que fiz para essa série dos Heróis do Samba, saquei que existia uma dívida com esses caras, em termos de memória. Todos eles acabaram morrendo pobres. O único que estava remediado e conseguiu viver da música foi o Guilherme de Brito, que fazia muito show fora do Brasil, no Japão, por exemplo. Você vê isso pelo interior da casa dele que aparece na foto. O fotógrafo tem essa missão de deixar memória e se preocupar com isso, senão o trabalho dele será sem importância. Eu sempre me preocupei com isso. Tenho um milhão de negativos, que é meu trabalho de vida toda, com o rock brasileiro, o samba e tudo que fotografei de música nesses anos todos. O que me faz ser o Rui Mendes é essa memória.”
REPASSANDO CONHECIMENTO
“Dou curso de retrato basicamente. Acontece aqui nesse meu estúdio, que tem uma luz incrível. A diferença entre um fotógrafo profissional e um que não é está no fato de que o profissional tem que fazer uma foto boa, com hora marcada. Isso é uma diferença danada, né? E conhecimento é para ser repassado. O próximo [curso] será no começo de maio. A pessoa tem que ter vontade de aprender, cabeça aberta e pode vir até com o celular. O curso é para melhorar sua visão de mundo.”
O curso de fotografia ministrado por Rui Mendes acontece no estúdio do fotógrafo, na Barra Funda, com aulas semanais de três horas, e custa em torno de R$ 1.200. Inscrições podem ser feitas pelo telefone (11) 99842 5913, com Debora Mendes.
Conheça mais sobre o trabalho do fotógrafo, que prepara uma exposição sobre os 40 anos de sua carreira para o segundo semestre de 2019, em sua página no Instagram, (rui_mendes_photographer).
Assista, a seguir, ao vídeo, gravado com exclusividade pelo Música em Letras, no qual Rui Mendes mostra algumas de suas fotos do ensaio Heróis do Samba.