‘Xirê de Vibrafone’, álbum com ritmos do candomblé é lançado nas plataformas digitais
Acontece nesta quinta-feira (25) o lançamento do álbum “Xirê de Vibrafone”, do vibrafonista, percussionista, compositor e arranjador soteropolitano Ricardo Valverde, 41, que há 33 anos mora em São Paulo.
O Música em Letras esteve com o artista em seu apartamento no bairro do Limão, em São Paulo, entrevistou-o e gravou duas das 13 músicas, que estão no repertório do disco (veja vídeo no final).
O álbum, que tem participações especiais da flautista Léa Freire, do multi-instrumentista Arismar do Espírito Santo, do trombonista Sérgio Coelho e do trompetista cubano Jorge Ceruto, entre outros, funde as tradições musicais do candomblé por meio de sons dos atabaques (rum, o mais grave e maior; rumpi, o segundo em tamanho e lé, o menor deles), com o vibrafone de Valverde ladeado por um baixo (Marcos Paiva) e um piano (Silvia Goes) acústicos. “A base do álbum conta com três atabaques, piano, baixo e o vibrafone”, disse o músico que é bacharel em percussão erudita, mas em 22 anos de carreira já tocou em várias “praias”, entre elas as que contemplam as águas do samba, choro, baião, jazz, rap, rock e muita MPB.
Experiente e requisitado, o músico já fez shows e gravou com Oswaldinho do Acordeon e com a turma dos Novos Baianos – Moraes Moreira, Paulinho Boca de Cantor, Baby do Brasil, Pepeu Gomes e Galvão -, além do sambista Clementino Rodrigues, mais conhecido pelo apelido de Riachão, Roberto Mendes e Fabiana Cozza, entre outros. “Meu padrinho musical é o Luizinho 7 cordas que sempre me levou para tocar com muita gente, incluindo vários sambistas e o Paulo Moura”, disse o músico que se formou em meio a artistas da antiga, adquirindo propriedade e muito respeito com relação à música e ao candomblé, religião da qual é adepto.
Filho do dono do restaurante Soteropolitano, em São Paulo, e de uma pedagoga, Valverde trabalhou durante sete anos em muitos projetos sociais ensinando nas periferias de São Paulo. Foi artista orientador de vários tipos de grupos musicais de rap, samba, choro, entre outros ritmos de diversas regiões da cidade, atuando em CEUs (Centros Educacionais Unificados, equipamentos públicos voltados à educação) e em casas de cultura. “Gostava muito dessa função, mas minha carreira não permite mais que eu exerça esse trabalho, que é muito sério e exige total dedicação”, disse o artista que tem dois discos gravados “Teclas no Choro” (2014) e “Trios” (2016).
DISCOS
“Teclas no Choro” o primeiro disco do artista traz sua experiência adquirida tocando choro e traduzida para as teclas do vibrafone, com bateria baixo e piano. “Esse disco é o resultado de uma pesquisa em cima do choro, que fiz durante dez anos, buscando o que ficava legal para o vibrafone”, disse o músico que interpreta nesse trabalho, composições de Esmeraldino Sales, Altamiro Carrilho (1924-2012), Pixinguinha (1897-2013), Jacob do Bandolim (1918-1969), K-Ximbinho (1917-1980) e Ernesto Nazareth (1863-1934).
“Trios”, disco autoral de Valverde, traz como conceito uma abordagem sobre os períodos do dia: manhã, tarde e noite. Para isso, o músico gravou o som de três trios diferentes. Sonorizando a manhã, usou piano, baixo acústico e vibrafone; para a tarde, acordeon, violão de 7 cordas e vibrafone; e para a noite, guitarra, baixo elétrico e vibrafone.
“Xirê de Vibrafone”, álbum que está sendo lançado hoje (25), traz o rito, a festividade que acontece em uma casa de candomblé quando os orixás (Nkisi ou Inquice, como são conhecidos os diversos orixás dos candomblés de Angola e do Congo) vêm à Terra para festejarem com seus filhos de santo. Há uma ordem de chegada dos orixás, que começa com Exu, que abre os caminhos, e termina com Oxalá. “Cada Nkisi tem um jeito de celebrar, além de um toque, um tipo de música e cantiga específico para ele. Na cultura popular há sempre uma relação entre o tambor, a voz e a dança”, disse o compositor que no álbum conta com a presença de três ogãs (sacerdote escolhido pelo orixá para estar lúcido durante todos os trabalhos), tocando nos atabaques ritmos de candomblé Angola e Ketu: Leandro Perez, Samba Sam e Mukabila. Samba Sam toca o atabaque rumpi, em todas as faixas; Leandro Perez toca o rum nas faixas de ritmos do candomblé de Ketu e o lé, nas faixas de candomblé de Angola; Mukabila toca rum nas faixas com ritmos de candomblé de Angola e lé nas que abarcam ritmos do candomblé Ketu.
RITMOS E HOMENAGENS
Nos ritmos de candomblé Angola, os atabaques são tocados apenas com as mãos. O lé faz a marcação, o rumpi faz uma variação junto com o gã (agogô) – ou o que se chama repique –, dando uma preenchida no som, enquanto o rum faz o papel de solista. Nos ritmos do candomblé Ketu, os atabaques são tocados com aguidavi (varetas confeccionadas com pequenos galhos das árvores sagradas do candomblé, geralmente da goiabeira e araçazeiro, medindo cerca de 30 a 40 centímetros) no lé e no rumpi, quase sempre fazendo a mesma coisa, enquanto o rum dobra o som com a aguidavi na mão direita, e a mão esquerda batendo na pele. “A complexidade e polirritmia é muito grande nesse caso.”
As primeiras faixas de “Xirê do Vibrafone” trazem ritmos do candomblé Ketu. A inicial é “Mensageiro”, que traz o mojugbá, um ritmo mais lento, que conta com a participação da flautista Léa Freire tocando uma flauta em sol, do trompetista cubano Jorge Ceruto e do trombonista Sérgio Coelho. “Essa música é para Exu, que as pessoas equivocadamente acham que é o diabo.”
Na faixa dois, “Ogun” faz uma homenagem para esse orixá da guerra, por meio do ritmo lagunló, com a participação do “Ogun da música instrumental brasileira”, Arismar do Espírito Santo, tocando livre sua guitarra para conversar com a música de Valverde. “Nessa faixa, a melodia é mais parada, com notas mais longas, enquanto a harmonia anda bastante. Usei umas coisas do Coltrane Changes [Na harmonia do jazz, Coltrane Changes é a substituição da progressão harmônica popularizada pelo músico de jazz John Coltrane, em seu disco “Giant Steps”] por conta de o Coltrane ter sido um cara muito forte e revolucionário.”
Na faixa três, “Aguerê de Oxóssi” traz o ritmo aguerê para reverenciar Oxóssi, o orixá da caça, o rei da mata. “O processo de composição de todas as músicas desse álbum levou 20 anos, porque como sou ligado ao candomblé precisei de autorização e de ser ‘suspenso’ (apontado pelo orixá) como um ogã de Oxóssi. Fiquei focado nisso durante várias madrugadas, pensando nos orixás através de imagens, e as composições vinham quase prontas para mim. Nessa música, trago Oxóssi caçando e é possível ouvir o momento em que ele acerta a flecha na caça. Tudo acontece em meio a uma dinâmica ‘espreitada’, com acordes menores, que ao virarem maiores mostra o momento em que Oxóssi, que usa uma flecha só, acerta a caça.”
“Opanijé” traz o ritmo que se toca para Omolu, o orixá da cura. “Nessa composição há momentos mais doces e tensos, pois quando o Omolu vai curar ele acalma tudo de novo. Nessa faixa, tem o Tiago do Espírito Santo como convidado, tocando baixo e guitarra.”
Iniciando os ritmos do candomblé Angola, figura “Zara Tempo”, que homenageia um orixá raro, o Tempo, que fala sobre nossas vidas, dos tempos das coisas. “Essa música começa lenta até entrar o congo de ouro, o ritmo mais conhecido do candomblé Angola. Na verdade, o congo de ouro é a base usada no funk carioca. Quando se toca o congo de ouro, o barracão explode; é o que acontece no baile funk. Claro que tem outros elementos, mas a força desse ritmo vai pra cima de todos. Tem um solo do Marcos Paiva [contrabaixista], nessa faixa, muito bonito também.”
“Nanã”, orixá da chuva, do pântano, é a responsável pelo portal dos mortos e dos vivos, os reencarnados e os não reencarnados. “Essa orixá foi mulher de Oxalá e é uma anciã que cuida dos Eguns, que são espíritos não tão evoluídos. Nessa música, uso o ritmo hamunha, que é bem forte, geralmente usado no candomblé Ketu para a entrada dos orixás; no candomblé Angola usamos o ritmo arrebate.”
“Oxum”, a sétima faixa, traz a mulher das águas doces, o ouro e a beleza por meio de um ijexá, talvez um dos ritmos mais conhecidos do candomblé. “Tocamos esse ritmo de uma maneira diferente, pois o rumpi dobra como se fosse o gã [agogô]. E tem duas Oxuns da música instrumental brasileira solando de maneira incrível: a Léa [flautista]e a Silvia [pianista].”
“Oyá”, faixa oito do álbum, homenageia Iansã, deusa das tempestades e dos ventos. “É muito forte essa orixá. Aqui tem a participação do Jorge Ceruto, no trombone, solando em uma parte da música que faço como se fosse um ciclone, com a melodia rodando. Nessa música me veio a imagem de Miles Davis, que acho que era [filho] de Iansã e aproveito para homenagear ele também.”
Na faixa nove, “Logun Odé”, há a homenagem para o orixá de Valverde, Logun. “Logun é filho de Oxóssi com Oxun e carrega as características da caça, da beleza e da riqueza. Nessa música fiz um barravento, ritmo do candomblé Angola, com uma melodia que, no começo, se repete, mas os acordes vão andando, depois tem uma crescida porque dizem que Logun é um pavão se exibindo, e depois termino em uma conversa minha de vibrafone com a Silvia, no piano.”
A décima faixa traz o “Tema para Odoyá”, ou Iemanjá, a rainha do mar muito versada por Dorival Caymmi (1914-2008). “Essa é talvez a orixá mais conhecida por todos. Nessa música, uso o jinká, um ritmo do candomblé Ketu, que chamamos de valsa do candomblé. Fui para um lado de Iemanjá não mais doce, mas mais profundo, mais denso, que se percebe por um solo de baixo.”
“Xangô”, na faixa 11, traz a homenagem de Valverde para o orixá da justiça, dos raios e trovões. “Esse é um orixá muito presente nos dias atuais, que não alivia. Tem a participação do Sérgio, no trombone, que faz um solo lindíssimo, assim como do Arismar, que sola de guitarra. Essa é a única música do álbum que tem vozes, com um coro de nove pessoas do grupo de cultura popular Kyloatala. No final, tem uma saudação, uma oração sagrada do orixá, feita pelo meu pai de santo para abençoar o álbum.”
Na faixa 12, o Oxalá ancião, Oxalufan, é homenageado por uma música homônima. “Essa música tem a participação da violinista Vanessa Dourado, eu no vibrafone, e a Silvia no piano, tocando uma melodia bem calma e tranquila. Interessante é que a Vanessa sonhou que eu a havia chamado para gravar o disco. E isso aconteceu logo em seguida ao sonho dela, pois senti que faltava alguma coisa nessa faixa, que era apenas um duo. Liguei para convidá-la e ela me contou ter sonhado com o convite.”
A última música do álbum é “Seu Araribóia”. “Seu Araribóia é o caboclo da minha casa, que consideramos um orixá também. Um caboclo nordestino, bravo e que fala a verdade, mas fiz uma coisa mais doce dele. Mostrei para ele [Seu Araribóia], em uma festa que tivemos, e ele me disse que era uma música de balango, de balançar na rede. Convidei para gravar o Joquinha Almeida, que tem o acordeon no sangue, e mesmo com pouca idade [18 anos], toca muito”, disse Valverde sobre o filho de Joca, do Trio Nordestino, e sobrinho de César e de Oswaldinho do Acordeon.
Perguntado sobre o momento de imensa intolerância pelo qual passamos, o artista disse esperar que o som desse disco traga um olhar mais atento para a riqueza que há no candomblé, religião que tem sido descabidamente massacrada, na atual conjuntura, por puro preconceito. “Somos uma nação que deve ser respeitada como qualquer outra. Não fazemos mal para ninguém, vivemos em comunidade e temos fé do mesmo jeito que os outros. Não somos batuqueiros, somos ogãs, doutores, ministros. A complexidade que há em nossos tambores é a mesma que se tem harmonicamente nos improvisos musicais de outros ritmos e gêneros. Se as pessoas tiverem um olhar para isso já fico contente.”
Assista, a seguir, aos vídeos gravados com exclusividade para o Música em Letras, nos quais Ricardo Valverde e Wanessa Dourado interpretam “Oxalufan” e “Tema para Odoyá”.