Célia e Celma contam e cantam a vida de Ary Barroso em curso em São Paulo

Ministrado pelas irmãs gêmeas, as cantoras e pesquisadoras Célia e Celma, 76, inicia-se nesta terça-feira (12), no Sesc Pinheiros, em São Paulo, um curso gratuito que abordará, além dos 80 anos da música “Aquarela do Brasil”, a vida e obra de seu autor, Ary Barroso (1903-1964). “Ary, com ‘y’, por favor, pois ele dizia que quando alguém referia-se a ele como Ari, com ‘i’, não era com ele. ‘Ari com ‘i’ não sou eu’, ele costumava dizer”, contou rindo Célia. As irmãs conheceram o compositor desde crianças, pois nasceram em Ubá, cidade mineira a 280 quilômetros de Belo Horizonte e terra natal de Ary Barroso. Ainda hoje, convivem com a família do ilustre conterrâneo.

Em entrevista ao Música em Letras, na casa onde moram, em São Paulo, Célia e Celma revelaram mais informações sobre o “multimídia” – como se referem a Ary Barroso -, mostraram fotos inéditas do compositor com sua primeira banda e gravaram um vídeo, com exclusividade para o blog, no qual convidam o internauta para o curso e ainda cantam, de lambuja, a primeira música feita por Ary Barroso, “Teus Óio” (veja vídeo no final do texto).

As fotos foram feitas pelo italiano Celidônio Mazzei (1888-1980), pai de Célia e Celma, que, como fotógrafo profissional, registrou várias personalidades, como os ex-presidentes Dutra (1883-1974) e Castello Branco (1897-1967). “Ele fotografou o primeiro voo do dirigível Zepelim em 1930”, contou Celma, que se lembra de quando cantou pela primeira vez, ao lado da irmã, para Ary Barroso: “Éramos muito pequenas, mas lembramos bem; tínhamos 6 anos quando cantamos para ele no estúdio de nosso pai.”

“O Ary sempre fez parte das nossas vidas. Nascemos, crescemos e morávamos perto de uma pracinha em Ubá, chamada praça da Independência, onde décadas antes morava o Ary. Ele ficou órfão [os pais morreram de tuberculose] aos 7 anos e foi morar com um tio e tutor, o doutor José de Rezende, um médico que morava no mais bonito casarão da pracinha que, pequena, tinha em seu entorno dez casas. Nosso pai fez amizade e fotos com o Ary. Uma delas é com o Ary e seu primeiro grupo musical, chamado Cine Orchestra Ubaense”, contava Celma sobre a antiga grafia da palavra “orchestra”, que aparece estampada na pele do bumbo na foto, quando foi interrompida por Célia: “Isso [foi] em 1918. Era o grupo que tocava para animar as sessões de cinema mudo.”

Outras fotos serão mostradas aos participantes do curso, como a que Ary Barroso figura arrumadinho e posudo; outra em que aparece com a tia que o ensinou a tocar piano, além da imagem em que o músico está acendendo um rojão com um cigarro na inauguração da caixa d´água de Ubá. “Ele foi para uma solenidade em Ubá e falou para o papai: ‘Vou lá no seu estúdio para você fazer um retrato meu’. Ele apareceu todo arrumado, com o cabelo cheio de brilhantina, de gravata e com o lencinho saindo na lapela, como está na foto. Na outra foto, ele está sentado em uma cadeira, com sua tia Ritinha, sua professora de piano, mais o maestro Solero da banda de Ubá – que o Ary tinha o maior respeito – e alguns músicos”, contou Célia.

Entre as raras imagens, uma traz Celma e Célia com o compositor. “Foi quando ele foi inaugurar a avenida Ary Barroso, em Ubá, e acabaram com toda a bebida da cidade. O cara do bar não tinha geladeira ou freezer, e o Ary com uns amigos pegaram todas as cervejas que tinha [no bar] e enterraram na beira do rio para poderem tomar mais fresquinhas”, contou Célia que na ocasião estava com 15 anos.

As cantoras e pesquisadoras Célia e Celma em entrevista ao Música em Letras (Foto: Carlos Bozzo Junior/Folhapress)

As duas irmãs viram muitas vezes o autor de “Na Baixa do Sapateiro” debruçado na janela da casa em que morava, observando a criançada a brincar. “Nossos quintais eram divididos por um mesmo muro. Os mais velhos de nossa família lembravam que muitas vezes o Ary, junto com um tio nosso, o Guerino, pegavam meias masculinas do varal, faziam uma bola com elas, pulavam o muro de nossa casa e vinham jogar em nosso quintal”, contou Celma.

VIDA E CURIOSIDADES

Segundo Célia e Celma, cerca de 600 composições foram escritas por Ary Barroso. “Há duas versões sobre esse fato. O Sérgio Cabral disse que eram cerca de quatrocentas e poucas. A segunda versão vem da biógrafa Dalila Luciana, que diz que o Ary fez mais de 600 músicas”, contou Celma, referindo-se a Sérgio Cabral, pai do ex-governador do Rio, preso desde 2016.

Dalila Luciana, citada por Celma, foi quem respondeu sobre Ary Barroso no programa para a TV “O Céu é o Limite”, considerado o primeiro programa de perguntas e respostas da televisão brasileira, uma espécie de precursor dos atuais game shows.“Os participantes escolhiam uma determinada pessoa para responder a respeito; ela escolheu o Ary e foi a fundo.Tanto é que escreveu três volumes, quase 1.500 páginas sobre a vida dele. Ela inclusive contesta o
sobrenome dele que conhecemos como Ary Evangelhista Barroso. Segundo ela [a biógrafa], o mome era Ary de Rezende Barrozo, com “z”, pois foi assim que ela viu escrito na certidão de nascimento dele, enquanto pesquisava em Ubá.”

Mas por que Dalila Luciana estaria certa e Sergio Cabral não? “Vamos pensar o seguinte: o Ary Barroso escreveu cerca de 60 peças para teatro de revista, cada peça tinha inúmeras músicas…”, dizia Celma quando foi interrompida pela irmã: “Nós entrevistamos muita gente, entre elas a cantora Carminha Mascarenhas que nos contou que ele [Ary Barroso] fez uma música para ela, ‘Oh, Dora’, e que essa música nunca foi gravada, como muitas outras dele. A Dalila conversou muito com o Ary e pesquisou bastante sobre ele. Não achamos que ela passaria uma informação errada. Com certeza, deve ser por volta de 600 músicas.”

Reza a lenda que Ary Barroso escreveu “Aquarela do Brasil” em uma noite de tempestade na qual não podia sair de casa e que ainda escreveu mais uma música na mesma noite, “Três Lágrimas”. “Ele não gostava dessa música, a ‘Três Lágrimas’, pois dizia que era muito triste”, disse Célia.

Onze anos após ter composto “Aquarela do Brasil”, Ary Barroso compôs “Aquarela Mineira”, gravada pelas irmãs Celia e Celma no disco “Ary Mineiro”. “A paixão do Ary pelo Brasil começa na roça, na fazenda da Barrinha, em que ele foi criado; nas festas mineiras de maio, com as crianças coroando Nossa Senhora; nos leilões, na natureza e no folclore de que ele fala tão bem nessa música”, contou Célia.

Entre as curiosidades da vida do boêmio compositor, Celma cita que quando ele era jovem, junto com amigos, roubou o carro de seu tutor. Bêbado, bateu em um poste da cidade. “Nessa época, a luz elétrica estava começando a ser implantada em Ubá. Ele bateu no poste, e a cidade inteira ficou às escuras.”

Célia e Celma na casa onde moram em São Paulo (Foto: Carlos Bozzo Junior/Folhapress)

O CURSO

Com 50 anos de carreira, Célia e Celma elaboraram o curso, que acontece às terças e quintas-feiras, das 10h30 às 12h30, para pessoas com mais de 60 anos. Sobrando vagas, o curso será aberto para participantes de outras idades.

Entre cantores e músicos presentes no curso, estarão também jornalistas. “Acho que o Zé Hamilton Ribeiro vai nos prestigiar. Sabe o que é? O Ary é um assunto muito interessante. Ele é o primeiro multimídia que a gente tem notícias. Ele foi vereador, advogado, economista, apresentador, produtor de teatro de revista, compositor, humorista, narrador esportivo, fundador e presidente da UBC [União Brasileira de Compositores], escritor e compositor, é claro”, disse Celma.

Pesquisadoras dedicadas, Celia e Celma contam com alguns convidados para ilustrarem as oito aulas. Entre eles, Roberto Seresteiro que, além de cantar algumas músicas, abordará o estilo literário de Ary Barroso por meio das crônicas que o compositor e escritor produziu para jornais. Sobre a música “Aquarela do Brasil”, o jornalista Assis Ângelo – segundo Celma, dono de um acervo magnífico – irá falar sobre gravações raras e em diferentes idiomas das composições do autor que deu início ao samba exaltação. “Além deles, teremos o retorno da cantora Silvana, que foi um grande sucesso, e apresentação de uma conterrânea nossa, da nova safra de cantoras ubaenses, a Jordana de Souza, uma menina que canta muito bem”, contou Célia que junto com a irmã serão acompanhadas pelos músicos Serginho Arruda, no violão de seis cordas, e Álvaro Couto, no acordeom. “As aulas são todas musicadas e esses dois músicos nos acompanham em todas elas. Os convidados mudam de acordo com o tema”, disse Celma.

Com a participação ativa dos alunos, pois em todas as aulas eles serão convocados a cantarem com as artistas, o curso começa abordando o nascimento e a adolescência tumultuada do compositor em Ubá, além de suas primeiras composições, como a “Ubaense Glorioso”, destinada ao time de futebol da cidade. A segunda aula compreende o período no qual Ary Barroso muda-se para o Rio de Janeiro para estudar Direito; o primeiro concurso carnavalesco ganho com a música politicamente incorreta “Dá Nela”, que o fez despontar como compositor, em 1930, além do início de namoro com Yvonne, que viria a se tornar sua mulher. A terceira aula traz à luz todas as habilidades e profissões de Ary Barroso, mostrando como ele se tornou um homem multimídia, adiante de seu tempo. Na quarta aula, o jornalista e cantor Roberto Seresteiro faz uma análise das crônicas, letras e cartas escritas por Ary Barroso. Na quinta aula, os temas são a ida de Ary Barroso para os Estados Unidos, seu encontro com Carmem Miranda e o convite feito por Walt Disney (1901- 1966) para que ele fosse trabalhar, em seus estúdios, como diretor artístico, o que não foi concretizado. Na sexta aula, a música “Aquarela do Brasil” será a bola da vez, sendo comentada e esmiuçada pelo jornalista Assis Ângelo, presidente do Instituto Memória Brasil, detentor de um vasto conhecimento sobre a música brasileira, seus compositores e cantores. Na sétima aula, a cantora ubaense Jordana de Souza ajudará Celma e Célia no registro do período final da vida de Ary Barroso, suas brigas com a Ordem dos Músicos do Brasil e o sofrimento causado pela cirrose que o matou. Na última aula, a oitava, o tema será a atual condição do le g ado deixado pelo artista, com foco na memória de sua obra no Brasil e em sua terra, Ubá.

Segundo Célia, as pessoas irão conhecer um compositor fértil e de muito talento, “um cara com uma personalidade muito instigante. Difícil imaginar que houve naquele tempo uma pessoa multifacetada como ele”. “Vamos mostrar um Ary Barroso que fez muito para o Brasil e deixou um legado que está aí para quem quiser ver e ouvir”, completou Celma.

Durante todo o curso, a cantora Silvana colabora com sua experiência de 60 anos de carreira para interpretar músicas de Ary Barroso. Entre peças inéditas que serão mostradas e cantadas no curso estão um jingle político que Ary Barroso fez para seu amigo, Filipi Balbi, a marcha “Ubá”, dedicada a sua cidade natal, além de “Ave Maria”, outra peça musical jamais gravada, que Barroso compôs para ser executada no casamento de sua filha Mariúza. “A primeira música dele, que nós descobrimos a letra em um lugar e a partitura em outro, ambas na Biblioteca Nacional, quando fomos há 22 anos pesquisar sobre ele, será mostrada também”, disse Celma sobre “Tristeza dos Sinos”, música de 1926 e gravada pela dupla. “Está escrito na letra dessa música ou na partitura ‘À Yvonne’, que foi a mulher dele. Imaginamos pela letra que foi [composta] num período em que ele teve de ficar em Ubá, tratando-se de uma sífilis e com medo de perder a Yvonne, que na ocasião era uma moça muito mais nova do que ele e muito bonita. Achamos que ele ficou meio inseguro e fez essa música. Como nesse período, ele ficou na casa do tio, em frente à igreja São José, acreditamos que [a música] foi inspirada pelos sons daqueles sinos”, falou Célia sobre a igreja que no final dos anos
1960 foi derrubada.

 

Célia e Celma na sala da casa onde moram em São Paulo (Foto: Carlos Bozzo Junior)

 

O disco “Ary Mineiro”, gravado pelas irmãs e lançado em 1997, estará disponível, a partir do dia 20 de março, em todas as plataformas digitais e no curso será vendido por R$ 20. “Mas também iremos presentear com um disco o aluno ou aluna que melhor cantar uma música do Ary”, disse Célia.

Celma e Célia também são autoras do livro “Por Todos os Cantos”, que estará à venda no curso por R$ 20. “Neste livro há todas as crônicas que escrevemos semanalmente para o jornal da cidade de Ubá, quando achamos que Ary Barroso estava sendo esquecido e que a memória dele estava muito apagada por lá. Então, criamos no jornal um espaço chamado de Cantinho Ary Barroso, onde publicamos mais de 60 crônicas e que foi um sucesso”, contou Celma.

Assista, a seguir, ao vídeo no qual as irmãs cantam “Teus Óio”, primeira composição de Ary Barroso, para convidarem o internauta do blog para o curso.

CURSO

AQUARELA DO BRASIL: 80 ANOS PELO MUNDO – UM ABRAÇO EM ARY BARROSO

ONDE Sesc Pinheiros, R. Pais Leme, 195, Pinheiros, São Paulo, tel. (11) 3095-9400, na Sala de Múltiplo Uso (3º andar)

QUANDO Terças e quintas-feiras, a partir do dia 12, das 10h30 às 12h30

QUANTO Gratuito. Inscrições na Central de Atendimento.

Obs: a atividade é voltada ao público com 60 anos ou mais; no caso de sobrarem vagas, pessoas com outras idades serão contempladas