Sem Noção – ‘Xodós’, por Paulo Porto Alegre
O Música em Letras convidou Paulo Porto Alegre, violonista, compositor, professor e regente da Camerata de Violões da Escola Municipal de Música de São Paulo, para participar da série Sem Noção (veja posts anteriores), que realiza audições às cegas, de discos recém-lançados no mercado brasileiro.
O CD “Xodós”, dos violonistas Paulo Bellinati e Marco Pereira, foi o escolhido para a audição realizada no apartamento de Paulo Porto Alegre, na Vila Leopoldina, em São Paulo. O disco teve produção de Swami Junior; distribuição, Borandá; gravação feita por Ricardo Marui, com mixagem no Pinus Studio. A masterização ficou por conta de Homero Lotito, no Reference Mastering Studio. A edição e produção executiva são de Paulo Bellinati, que na produção contou com Gisella Gonçalves. Fotos de Tarita de Souza e arte de Mauro Aguiar.
Conheça, a seguir, mais sobre o trabalho e os 43 anos de carreira de Paulo Porto Alegre e avaliação do músico sobre o CD “Xodós”.
PAULO PORTO ALEGRE
Reconhecido como um dos mais importantes violonistas brasileiros, o paulistano Paulo Porto Alegre, 65, nasceu no sobrado onde morou até 16 anos atrás, na rua Virgílio Carvalho Pinto, no bairro de Pinheiros.
O pai, tenente coronel do Exército, era, segundo o músico, um “militar linha dura”, e assim criou seis filhos. Como eram muitas crianças e poucos quartos, Paulo dividia um deles com um irmão que tocava bossa nova no violão. Assim, aos 10 anos, Paulo se interessou pelo instrumento, por meio da bossa nova. “Tirava tudo de ouvido.” Intrigado, perguntei se mantinha a harmonia original. “Eu achava, né? Depois que aprendi a tocar, vi que não tinha nada a ver”, contou rindo o músico que, além da bossa nova, também curtia rock.
Com 18 anos, Paulo passou a estudar violão clássico com o uruguaio Isaías Sávio (1900 – 1977), importante concertista e professor. “Antes, aprendia tudo sozinho. Com 14 anos, já lia música e tirava uns clássicos. Uma tia, que tocava violoncelo na orquestra de Rádio MEC, fez uma carta de apresentação para o Sávio. Levei para ele, que me ouviu tocar, gostou muito e me adotou”, disse o músico, que estudou quatro anos com o afamado violonista.
Junto com o violão, Paulo estudava engenharia mecânica na FAAP (Fundação Armando Álvares Penteado). “Eu gostava tanto de engenharia, que fiz duas vezes o primeiro ano, e duas vezes o segundo. Quando terminei o terceiro ano, abandonei porque ia levar uns dez para concluir”, falou rindo.
Já a vocação para a música foi descoberta logo depois de ter iniciado seus estudos com o mestre Sávio. “Dois meses depois que eu estava estudando com o Sávio, eu já queria abandonar a engenharia e ser músico, mas meus pais caíram em cima reprovando minha iniciativa”, contou o artista que, entre os estudos de engenharia e violão, passou a amealhar uma série de vitórias em concursos do instrumento.
Segundo Paulo, o pai, até pouco antes de morrer, queria que ele arrumasse “um emprego decente”. “Um emprego decente era ser caixa do Banco do Brasil. Para ele, músicos eram uns caras largados que apareciam na televisão. Ele dizia que eu iria passar fome e não poderia ter família.” O instrumentista iniciou sua carreira profissional aos 23 anos, considerado tarde para um instrumentista.
Em busca do tempo perdido, Paulo ralou, estudando com Henrique Pinto (1941-2010), Abel Carlevaro (1916- 2001), entre outros mestres do instrumento como Barbosa Lima, Turíbio Santos e Álvaro Pierri.
Paulo começou a dar aulas de violão aos 18 anos, em um conservatório no Brooklin, onde ensinou e estudou violão erudito durante 21 anos. “Pelo nível que já tinha, entrei no conservatório no equivalente ao quinto ano. Dois anos depois, com o fim dos chamados conservatórios e o ensino dividido entre escolas livres, técnicas e faculdades de música, passei a cursar a escola técnica, cujos cursos duravam três anos. Fiz dois e me encheu o saco”, falou o artista. Paulo abandonou o curso, mas não deixou de estudar música com outros professores, como o maestro Osvaldo Colarusso e o compositor e doutor em música Sérgio Oliveira de Vasconcellos Corrêa.
Em uma oportunidade, Paulo esteve na casa do “príncipe dos pianistas brasileiros”, João de Sousa Lima (1898-1982). “Toquei para ele que depois me levou para uma sala com as paredes cobertas de livros e me disse: ‘Isso aqui é tudo o que comprei minha vida inteira sobre música e li. O conselho que quero te dar é: compre livros de música, leia e aprenda por si só, porque ninguém vai te ensinar música’. E eu fiz isso, embora não tenha metade do que ele tinha”, falou o músico, que formou uma biblioteca que abarca vários estilos, gêneros, métodos, além de partituras e biografias de músicos.
Com 43 anos de carreira, o violonista que se tornou arranjador e compositor e, há cinco anos, é regente da Camerata de Violões da escola Municipal de Música, onde também leciona desde 2002, ainda escreve métodos e faz palestras. “Tenho um curso de técnica avançada, onde ensino como estudar, como conhecer a musculatura [utilizada para tocar violão] e o instrumento, entre outros tópicos. No fundo, ofereço os embasamentos teóricos e mecânicos para que o aluno conheça o violão e possa resolver suas dificuldades.” Paulo ainda é membro fundador do Trio Opus 12 de Violões, além de professor titular da Escola de Música do Estado de São Paulo e da Escola Municipal de Música de São Paulo. Como solista, apresentou-se no Canadá, Estados Unidos, em países da Europa e da Ásia.
Mas como alguém, com tanto conhecimento e talento, decidiu deixar a carreira de concertista em tempo integral para ensinar? “Uma vez, eu ia tocar no teatro Cultura Artística e estavam em minha casa o luthier Thomas Humphrey, que já morreu [conceituado artesão norte-americano, morto aos 59 anos, em 2008], e o violonista Sérgio Assad. Eu estava estudando como um louco. Em uma de minhas pausas, o Thomas perguntou se eu abandonaria tudo, mulher, filhos e casa para ser concertista de violão. Respondi que era claro que não, pois isso era o principal em minha vida. De fato, às vezes, são dez meses de turnê e não tem casamento que aguente. Eu vi que ser concertista não era o que eu queria para minha vida. Hoje, acho que escolhi certo, pois como é bom estar em casa, dar aulas e tocar só de vez em quando. Tenho meus alunos, que tocam milhões de vezes melhor do que eu”, disse o músico que, embora tenha diminuído sua atuação como concertista, desenvolve um trabalho didático significativo, escrevendo vários estudos para violão, editados e utilizados internacionalmente.
Por fim, perguntei a ele como se definiria: “Sou um músico esforçado. Lutei contra uma série de limitações teóricas. Tive a possibilidade, de uma maneira informal, de ter contato com a música em casa, pois meu pai, embora não visse com bons olhos a profissão de músico, adorava serenata e choro. Um irmão gostava de jazz, outro de bossa nova e minhas irmãs tocavam piano clássico. Eu gostava de rock, bossa nova e tudo isso virou uma mistura na minha cabeça. Se você me perguntar sobre os três discos que marcaram minha vida, com um choque musical, eu diria que o primeiro foi o ‘Sargent Pepper’s’ [“Sargent Pepper’s Lonely Hearts Club Band”, 1969], dos Beatles; o segundo disco é o ‘El Maestro’ (1961), do Segovia [Andrés Segovia (1893-1987)]; e o terceiro, ‘A Sagração da Primavera’, do Stravinsky”, contou o músico, que disse também ter“pirado” quando ouviu pela primeira vez o violonista Baden Powell (1937-2000).
O CD “XODÓS”, DE PAULO BELLINATI E MARCO PEREIRA, POR PAULO PORTO ALEGRE
FAIXA 1 “De Volta pro Aconchego”, de Dominguinhos e Nando Cordel
“Acho que é o Marco Pereira e o Paulo Bellinati. Isso é uma preciosidade. Ainda não ouvi esse disco, mas conheço esses caras há mais de 40 anos e já tocamos juntos. Não pude ir ao lançamento desse disco, por isso não tenho ainda, mas na hora em que entrou a corda de aço do Bellinati pensei: são eles! Essa faixa é um tema maravilhoso do Dominguinhos, harmonizado e improvisado de um modo incrível, e com uma coisa que gosto muito que é esse contraste do nylon [das cordas] com o metal, que aí funciona de uma maneira maravilhosa. Um detalhe interessante é que o Bellinati toca cordas de metal com palheta, mas a palheta dele é maravilhosa porque não é barulhenta como tendem a ser. Esse violão do Bellinati é um violão de seresta antigo pra burro, que ele reformou e sabe tirar dele um partido incrível. O Marco é aquele som firme, bonito. Além de um grande solista, ele é um grande acompanhador. Aliás, os dois são, pois quando um está solando, o acompanhamento do outro é maravilhoso, suingado e todo cheio de molho, né?
FAIXA 2 “Gostoso Demais”, de Dominguinhos e Nando Cordel
“A gente quase não percebe o início dessa faixa, porque a passagem de uma para a outra é bem rápida. Para mim, era praticamente a mesma música porque tem a mesma levada, o mesmo suingue, com melodias diferentes, claro. Mas eu estava percebendo que isso estava virando uma suíte, porque eles agruparam essas peças do Dominguinhos e gostei bastante.”
FAIXA 3 “Eu Só Quero Um Xodó”, de Dominguinhos e Anastácia
“Essa é a famosa ‘Xodó’, né? Sempre me remete ao Dominguinhos ou à Elba cantando. Essa música tem um suingue, uma melodia tão doce, e a gente sempre lembra da letra, é inevitável. Eu adoro, curti demais.”
FAIXA 4 “Isso Aqui Tá Bom Demais”, Dominguinhos e Nando Cordel
“Fantástica, com suingue total. Isso é uma alegria, uma festa na roça. Parece uma daquelas festas do interior do nordeste, superanimada, alegre demais. Uma coisa que a gente sempre tem que falar sobre o violão brasileiro, é que ele é fantástico não só pelo suingue e pela harmonia, mas também pela qualidade dos intérpretes. De algumas décadas para cá, nossos grandes violonistas populares também tiveram uma formação de violão clássico. O Paulo e o Marco foram alunos do Sávio, na mesma época em que eu fui, e todos temos amor pela música popular. Acho que isso torna o instrumentista melhor, mais capaz tecnicamente. É perceptível nessa e nas outras faixas que são caras que têm uma base e a desenvoltura de quem estudou a sério o instrumento.”
FAIXA 5 “Café Compadre”, de Marco Pereira
“Lindo, lindo! Parece um bolero, né? Deve ser do Bellinati, não sei, mas é maravilhoso. Acho impressionante a musicalidade dele com esse violão com cordas de aço, é incrível. A sonoridade é maravilhosa, é um som único.”
FAIXA 6 “Santo Amaro”, de Marco Pereira
“Essa é do Marco, acho que é uma chula baiana [dança e gênero musical do Recôncavo Baiano], que tem esse suingue todo, essa quebradeira. É [uma interpretação] superprecisa, os dois têm que estar cronometrados, se der uma escapadinha um do outro, não dá certo. Então tem que ser assim, do jeito que está, preciso, rítmico, mas sem perder o tempo nunca, senão não se sente o suingue da chula.”
FAIXA 7 “Fandango”, de Paulo Bellinati
“Faixa maravilhosa, pelo jeito parece ser do Marco, não conheço e não me lembro de ter ouvido. Esse efeito do começo é incrível, porque você sente muito bem as mudanças de timbres em frases parecidas, alíás idênticas, mas em outra tonalidade, com essa diferença de timbres. Um é metal e o outro, nylon. Acho importante deixar bem claro que esse disco mostra que os violões não precisam ser iguais. Entre o Paulo e o Marco, vejo uma formação muito próxima. Fizeram violão clássico com o mesmo professor, gostavam do mesmo tipo de música e compuseram em uma linha muito próxima. Os dois juntos são muito melhores do que cada um sozinho.”
FAIXA 8 “Jongo”, de Paulo Bellinati
“Essa é o clássico do Paulo. O ‘Jongo’ foi gravado por John Williams [consagrado violonista australiano], pelo duo Assad, e todo mundo toca. É uma das músicas mais antigas do Paulo, composta na década de 1970. Aqui a gente vê a excelente qualidade de arranjador que os dois músicos têm, além da maneira como o Paulo pensou em inverter essa música para duo, porque o original dela é para violão solo. Essa versão é maravilhosa, pois eles acrescentam coisas deles. Com o violão de aço, você tem mais possibilidades de timbres, então essa música é uma felicidade absoluta. Tem um ‘chorus’ inteiro, só com percussão, um momento que deixa todo mundo surpreso. A interpretação a dois é mais legal que na versão solo, porque tem uma possibilidade rítmica maior e mais sonora. Incrível.”
FAIXA 9 “Amigo Leo”, de Marco Pereira
“Essa é muito séria. Para mim é a melhor faixa até agora. Primeiro, a melodia é excepcional, e com esse clima de samba canção traz os improvisos mais bonitos que eu ouvi no disco. Os dois estão iluminados nesses momentos do improviso. O Marco, supermelódico, e o Paulo, desenvolvendo fragmentozinhos rítmicos até sair da tensão do ritmo repetitivo. No final, uma surpresa, o chamado ‘turnaround’, que é essa cadência final que o Marco faz. É só um acorde final, mesmo porque não tem mais nada para se falar. A faixa é excepcional, maravilhosa.”
FAIXA 10 “Choro de Juliana”, de Marco Perreira
“ O ‘Choro de Juliana’ é o sucesso do Marco mais antigo, gravado em seu primeiro disco solo. É o ‘Jongo’, do Marco. Uma maravilha esse chorinho que ele fez para a filha Juliana. Aqui, com os improvisos mais malucos e virtuosos de todos. No final, quando os dois entram juntos, é um absurdo, uma surpresa total. Muito incrível e suingado. Eu tocava isso, mas de modo mais lento. Eu não consigo tocar assim, desse jeito, não.”
FAIXA 11 “Uma Valsa e dois Amores”, de Dilermando Reis
“Depois daquela introdução toda, desembocar em ‘Uma Valsa e Dois Amores’, do Dilermando Reis, é realmente muito criativo. Fiquei pensando como é que eles iriam improvisar em cima disso porque é um tema tão seresteiro, né? Mas eles pegaram um momento da introdução, que fica na tônica e subdominante o tempo todo, para ficar improvisando em cima só desses dois acordes. Foi uma ideia ótima. O Dilermando eu escuto desde criança e adoro, aqui ele ficou maravilhoso.”
FAIXA 12 “Magoado”, de Dilermando Reis
“ O ‘Magoado’ é tradicionalmente tocado dessa maneira. O Dilermando, quando gravava essas músicas era acompanhado por um segundo violão, o do Dino [ Dino 7 Cordas 1918-2006] e quando chega na segunda que tem umas oitavas que no original são terças é um momento em que a plateia fica enlouquecida. Se o cara toca só uma nota melódica todo mundo acha bonito, mas como ele toca as terças, a plateia aplaude de pé. Nessa gravação, o interessante foi um barroquismo que rolou dando uma frases meio vivaldinas, com Paulinho Nogueira lembrando ‘Bachianinha número1’. Ficou demais, os caras são muito criativos.”
FAIXA 13 “Xodó da Bahiana”, de Dilermando Reis
“ Essa faixa é o ‘Xodó da Bahiana’, que virou um pagode planaltino, né? O Marco é o rei de fazer esses ‘slaps’ muito bem, que é a batida na corda, com uma puxada que dá um suingue, um ritmo, um negócio meio funk brasileiro. É engraçado porque é uma música muito simples. Como é que eles conseguem transformar isso em uma coisa incrível assim? Uma surpresa do começo ao fim.”
FAIXA 14 “Se Ela Perguntar”, de Dilermando Reis
“A faixa é uma perfeição. Acho que essa é a valsa mais famosa do Dilermando, e talvez uma das mais bonitas da música brasileira. No disco tem um arranjo simples, mas maravilhoso, porque a beleza da música é tão grande que, acho, eles não quiseram mexer muito. Incrível terminar o disco com uma música assim lenta e tão meditativa. Essa música tenho em meu repertório desde sempre, porque é aquela que você não consegue parar de tocar. Depois que você tirou não a esquece nunca mais.
AVALIAÇÃO PONTUAL
INTÉRPRETES
“Ótimos”
COMPOSIÇÕES
“Ótimas.”
HARMONIAS
“Ótimas.”
RITMOS
“Ótimos.”
MELODIAS
“Ótimas.”
ARRANJOS
“Ótimos”
SOM (CAPTAÇÃO, MIXAGEM E MASTERIZAÇÃO)
“Ótimo.”
CONSIDERAÇÕES GERAIS
O violonista Paulo Porto Alegre identificou de imediato, ao ouvir a primeira faixa do disco, o duo dos renomados instrumentistas Paulo Bellinati e Marco Pereira, mas não conhecia o disco.
Após a audição às cegas, foi revelado a Paulo Porto Alegre as autorias das músicas, assim como todas as outras informações sobre o disco, seus participantes, ficha técnica, capa e encarte.
“Esse é um disco perfeito, que mantém você ouvindo do começo ao fim. Um trabalho que prende a atenção, com momentos mais emotivos e outros muito rítmicos, feito por dois instrumentistas com muita experiência, além de músicos extraordinários. Esse é um disco imprescindível. Todo mundo tem que conhecer esse trabalho para ouvir a música instrumental brasileira de primeiríssima qualidade. Curti demais você ter escolhido esse disco para que eu avaliasse.”
AVALIAÇÃO DO CD “XODÓ”, DE PAULO BELLINATI E MARCO PEREIRA POR PAULO PORTO ALEGRE
“Ótimo”
CD “XODÓS”
ARTISTAS Paulo Bellinati e Marco Pereira
GRAVADORA Independente
QUANTO R$ 30 em média