Edgard Scandurra domina as segundas-feiras de maio como Operário do Rock
O guitarrista, baterista, compositor, arranjador e produtor Edgard José Scandurra Pereira,56, fundador do grupo Ira!, ocupa o teatro Centro da Terra, em São Paulo, todas as segundas-feiras de maio, com a série de shows Operário do Rock, na qual destaca pontos importantes de sua sólida carreira. Nessa conversa com o Música em Letras, Scandurra passa a limpo sua trajetória, revisita lembranças, ideias, e conta como vão rolar os shows.
“AMIGOS INVISÍVEIS”
A série de apresentações tem início na primeira segunda-feira (7) de maio. O guitarrista canhoto – que não inverte as cordas do instrumento para tocar – aborda nesse show o repertório de seu primeiro disco, “Amigos Invisíveis”(1989), gravado inteiramente pelo próprio. Contudo, para essa ocasião, o guitarrista conta com a participação de Taciana Barros, teclado e violão; seu filho Daniel Scandurra, baixo elétrico; Rodrigo Saldanha, bateria; e Fábio Golfetti, guitarra.
Entre as músicas, “Minha mente ainda é a mesma”, composta por Scandurra para a banda Subúrbio, que terminou em 1979 e foi embrionária do Ira!. Algumas músicas do repertório do Ira! vieram dessa banda, como ‘Gritos na Multidão’ e ‘Pobre Paulista’, que a banda não toca mais. “ ‘Minha Mente Ainda é a Mesma’ é minha visão de anarquia com 16 anos de idade”, contou o artista que na ocasião leu o livro “Seria Karl Marx Discípulo do Diabo?”, emprestado por um amigo evangélico que queria alertá-lo contra suas ideias socialistas. O livro trazia poesias de Karl Marx, escritas quando o autor era jovem, antes de “O Capital”. “Eram poesias muito anarquistas. Elas tinham uma conotação de que era preciso destruir todas as coisas para se construir algo novo. Já estava rolando uma abertura política com a anistia, mas ainda existia censura, principalmente em cima das letras de músicas. Nesse tempo, eu escrevia muito metaforicamente. Por exemplo, eu usava a palavra ‘você’ como se estivesse falando para uma pessoa, mas na verdade era para o sistema, para o governo, sobre o capitalismo, os costumes e para a caretice toda das pessoas. Achava que falar metaforicamente era poético”, contou rindo o compositor que, na ocasião, estudava no colégio estadual Brasílio Machado, na Vila Mariana, em São Paulo, que tinha um centro cívico “vigiado pela ditadura”. “A presidente desse centro cívico não era nem ligada à escola, era indicada pelos meganhas, eu acho. Ela era mulher do Décio Piccinini, que foi um dos jurados do programa do Silvio Santos.”
Outra música do espetáculo, a instrumental “1978”, é oriunda da primeira crise existencial de Scandurra, que havia terminado um namoro e enfrentava “falta de grana na família”. “Essa música tem uma evolução por meio das notas, que vão subindo de meio em meio tom, criando uma tensão que faz com que ela seja quase um rock progressivo.”
O disco “Amigos Invisíveis”, onde estão essas músicas, foi gravado após Scandurra ter feito uma reunião com o produtor André Midani, na Warner, quando discutiram sobre o “Psicoacústica”, álbum de estúdio do Ira!, o terceiro da banda, lançado em 1988. “Vivendo e Não Aprendendo” (1986), álbum anterior do Ira! rendeu um disco de ouro. “Esse disco foi uma vitória nossa, porque não ajoelhamos no milho para conseguir gravá-lo. Não fazíamos playback e não aceitávamos qualquer coisa. Na época, estávamos para entrar no programa do Chacrinha, mas viramos as costas e fomos embora. Queriam que vestíssemos uns gorrinhos de Papai Noel. Era uma coisa humilhante, e não aceitamos”, contou o artista que explicou melhor o ocorrido. “Falamos que faríamos o programa, mas sem gorrinhos na cabeça. Aí o filho do Chacrinha, o Leleco, falou: ‘Olha meu, sem gorrinho ninguém faz”. Então, disse que íamos embora e ele disse que podíamos ir. Os divulgadores da Warner disseram que estávamos loucos, que as portas seriam fechadas para nós, que todo mundo aceitava. Mesmo assim, pegamos o avião e viemos embora pra São Paulo. Isso foi uma coisa legal, porque geralmente as pessoas dizem que quando você não vai, ninguém sente sua falta, né? Só que essa foi uma ausência muito notada e muito mais sentida do que a presença de todo mundo que estava lá. Achávamos que estávamos queimados com a Rede Globo, mas pouco depois disso fomos tema da novela ‘O Outro’ (1987), com a música “Flores em você”. Nessa, vimos que não precisávamos ficar pagando mico pra ninguém e gravamos até um videoclip para o Fantástico, mas o Chacrinha nunca mais. Ainda bem, porque tinha um jabá que era uma troca onde você fazia um monte de coisas de graça pro Chacrinha em troca de aparecer no programa dele. Era um monte de shows de graça com playback, mas tínhamos uma cultura de resistência e sobrevivemos a isso.”
Para Scandurra, esse tipo de atitude foi uma herança do punk, “que não é só fazer músicas muito loucas e com barulho”. “As Mercenárias [grupo de punk rock brasileiro] me ajudaram muito a cultivar essa posição de não aceitar as coisas impostas, de ter uma certa atitude defensiva contra essas ofertas e oportunidades muito fáceis. Ter esse pé atrás ajudou muito na minha formação artística e de caráter também”, disse Scandurra, que veio de um punk contrário ao dos Sex Pistols banda inglesa de punk rock, formada em Londres em 1975, que inaugurou o movimento no Reino Unido. O Ira! tinha mais a ver com o grupo The Clash, banda inglesa de punk rock, formada em 1976, que, além do punk, experimentou outros gêneros musicais, como reggae, ska, dub, funk, rap, surf e rockabilly, forjando muitas bandas brasileiras com letras politizadas e humanistas.
Segundo Scandurra, quem for ao show vai saber como ele pensava naquela época de sua vida, além de se deparar com a essência da música do Ira!: “Há uma estética modernista que facilitará para as pessoas verem aonde eu queria chegar.”
AS MERCENÁRIAS E SMACK
No show de 14 de maio, as atrações serão os grupos Mercenárias, no qual Scandurra ataca de batera, e Smack, em que o músico polivalente empunha a guitarra. As Mercenárias conta com Sandra Coutinho, no baixo; Silvia Tape, na guitarra; e Mari (Marianne Crestani), na guitarra. No Smack, Sandra Coutinho, no baixo; Silvia Tape, na segunda guitarra, e Picchu Ferraz, na bateria. “ Na verdade, será quase como um tributo ao nosso querido Pamps [Sergio Pamplona, o Pamps, ex-guitarrista do Smack, um dos mais emblemáticos grupos do rock paulistano dos anos 1980], porque ele era a essência da banda. As músicas e letras mais importantes do grupo são dele; foi o Pamps que nos chamou para integrar a banda que era a cara dele. Pensei nisso porque nos quatro dias desse projeto quis fazer uma releitura de minhas colaborações, e não só sobre o que criei, de músicas e letras minhas, mas de projetos marcantes dos quais participei. O pós- punk foi uma evolução degraus acima do punk. Costumo dizer que foi parar de ouvir os Ramones para ouvirmos Satie [Erick Satie], como uma dimensão mais etérea, experimental e mais filosófica.”
Entre as músicas que rolam no show do Smack, “Mediocridade Afinal”, com letra crítica de Scandurra e música do Pamps, e “Fora daqui”, um clássico da banda que agrada muito os fãs.
Com As Mercenárias, Scandurra faz “Polícia”, música forte com bateria criada pelo artista. “Quando entrei nas Mercenárias, elas não tinham baterista. Estava meio que namorandinho com a Sandra e fui a um ensaio. Era a Rosália [vocal], a Sandra [baixo] e a Ana [Machado, guitarrista]. Era um puta som do além que elas faziam, muito criativo. Fiquei pirado com o som, comecei a batucar numa lista telefônica e em uma escada espiral de metal, que servia de prato. Até que um belo dia, arrumei uma bateria emprestada e virei o baterista da banda, tocando anos seguidos com elas. Isso foi em 1982 e ficamos juntos até o finalzinho de 1984.” Outra música que vai rolar com As Mercenárias é “Dá dó” (veja vídeo no final do texto).
O Ira! é de 1981, mais velho do que todos esses grupos. Em 1984, o grupo começou a se esvair com a saída de Charles, o baterista, e com o Dino, baixista, querendo dar área para fazer faculdade. Foi feita uma reunião e os integrantes optaram por se dedicar com exclusividade ao Ira! para a banda não terminar. Foi quando Scandurra “parou no som” com o Smack e com As Mercenárias, além de uma outra banda, a Cabine C, na qual atacava com o músico Ciro Pessoa. “Funcionou para o Ira! porque fizemos discos e uma carreira apoiada por gravadora. Mas deixei nas Mercenárias minha colaboração de batera em muitas músicas. As meninas que vieram depois de mim deram uma continuidade a isso. Acho bacana tocar com elas porque mato saudades do instrumento. Quando era criança, antes de tocar guitarra, queria ser baterista.” Scandurra toca bateria com sua concepção de guitarrista. “Por isso fazia muito fraseado junto com a guitarra, mais com a guitarra do que com o baixo. E isso dá um barato diferente.”
A ideia desse segundo show é mostrar sons atemporais, por meio dos trabalhos de Scandurra com esses dois grupos, que soavam modernos entre 1983 e 1984, e ainda hoje mantêm essa característica. “O Pena Schmidt[produtor] ouvia As Mercenárias em 1984 e dizia: ‘Pô, mas essa banda é para daqui a 30 anos’. Passaram-se 30 anos e As Mercenárias estavam tocando para gerações mais novas. O Peninha estava certo e isso funciona também para o Smack, que tem esse poder da música transcender o simples ritmo dela. Um poder quase alucinógeno, que faz viajar sem droga, só com a música te levando pra essa viagem.”
Sandra Coutinho, 59, integrante das duas bandas, aproveitou o gancho e acrescentou: “Com minha idade e minha experiência, digo que é melhor as pessoas não terem nada em mente antes do show, porque a expectativa causa frustração. A abertura é a coisa mais sábia que existe. Assim, as pessoas poderão encontrar a experiência de multiplicidade do Edgard, nas várias formas em que ele atua e expressa suas ideias em diferentes instrumentos. Nas Mercenárias, foi ele quem formou o conceito da banda, com a linguagem dele na bateria. Ele fez o link dos instrumentos na bateria. Considero as gravações com a participação dele como contemporâneas. Se tocarmos daquele jeito agora, será um arraso. O Edgard tem um conceito que não é de bateria como acompanhamento.”
VOZ, VIOLÃO E GUITARRA
No dia 21 de maio, rola o que Scandurra chama de “lembrança afetiva”, para realizar um som com violão e voz, além da participação de Johnny Boy, no piano acústico, – que toca com o Ira!, e já atacou com Raul Seixas (1945-1989) –, e de Silvia Tape, na guitarra. “Já fiz isso há muitos anos, mas só com um repertório de músicas minhas. Agora vou fazer mais umas músicas Lado B, pouco difundidas, que não toco há muito tempo, como uma música do Ira! chamada ‘Cantos, Praias e Paixões’, do disco ‘Música Calma Para Pessoas Nervosas’ [1993]. Nesse dia, toco também músicas minhas do disco ‘Est’ [2016] como ‘Eu Acho Que Eu Posso Esperar’, que fica muito bonita com a Silvia cantando.” Outra música que a guitarrista canta com Scandurra será “Questions in a World of Blue” canção que foi interpretada por Julee Cruise e de autoria de Angelo Badalamenti, compositor ítalo-americano, famoso pelas trilhas sonoras que produziu para obras de David Lynch, como “Blue Velvet” e a série “Twin Peaks”.
“São músicas que me influenciaram e me tocaram de alguma maneira. Tem a ‘Break’, do Aphrodite’s Child, porque eu amava esses caras [banda grega de rock progressivo formada em 1968 pelo vocalista Demis Roussos, o multi-instrumentalista Vangelis Papathanassiou e o baterista Loukas Sideras]. Nessa música tem um solinho, típico de música romântica, que até hoje não sei se é um sintetizador ou uma guitarra. Outro dia, comprei um poster deles, de divulgação, original, amarelado e descolado de alguma parede de loja de discos, coisa de colecionador. Comprei na internet e, por não enxergar direito, acabei pagando 800 dólares, achei que era 80 e quando vi na fatura do cartão não acreditei”, contou rindo o guitarrista que também toca e canta outras músicas do “power pop”, como “All By Myself”, imortalizada por Eric Carmen, cantor americano que iniciou sua carreira como vocalista e líder do grupo Raspberries. Das músicas mais recentes, Scandurra canta “I Feel It Coming”, do The Weekend, produzida pelo Daft Punk, dupla de música eletrônica formada pelo luso-francês Guy-Manuel de Homem-Christo e pelo francês Thomas Bangalter.
Em suma, um show que traz um panorama de influências e “lados B”. Um som que, mesmo não tendo nada a ver com o que Scandurra faz usualmente, cumpre a função de mostrar as marcas indeléveis deixadas no músico.
BENZINA
Nesta segunda (28 de maio), é a vez do grupo Benzina, com Scandurra, na guitarra e voz; Sandra Coutinho, no baixo e voz; e Michelle Abu, bateria, percussão e voz. No show, do qual também participam Dainel e Joaquim, filhos de Scandurra, músicas como “Eu Estava Lá”. “Nela, falo da época que servi o Exército, meu primeiros contatos com o underground, nomes de casas e clubes noturnos que tocamos em São Paulo, como o Madame Satã, Carbono 14 e Napalm. É música eletrônica, mas ao mesmo tempo muito orgânica, porque ela é um pouco minimalista, mas com muito espaço para o baixo e para a guitarra.”
Scandurra tem algumas máquinas sonoras, como sequenciadores, entre outras traquitanas, nas quais criou muita música. O Benzina teve o primeiro disco gravado pelo produtor Mitar Subotić, que era conhecido como Suba, (1961-1999), músico, compositor e produtor musical sérvio radicado no Brasil. “Comecei a ser bem aceito em uma cena eletrônica que era muito hermética, mas na qual via muita semelhança com o que rolava no Napalm, por exemplo. Aquela coisa de uma galera que tinha uma identidade visual, sonora. E o clube com a porta do banheiro arrebentada, que remetia a uma espécie de submundo com ar revolucionário. Por exemplo, o Hell’s Club, que foi um clube de música eletrônica importante do começo dos anos 1990, que eu associava ao Napalm. Apesar de serem tribos muito diferentes, vejo uma essência meio revolucionária de estar descobrindo uma coisa nova de atitude e na música”, falou o artista que quando partiu para a música eletrônica sofreu uma estranheza por parte da ala mais careta e tradicional do rock. “Preconceito de fãs e músicos que diziam que o som era só ‘bate estaca’, quando sabemos que há um leque muito amplo nesse tipo de música. E isso aconteceu também com quem era da música eletrônica e não gostava de rock afirmando que não curtiam guitarra, porque só ouviam música eletrônica”, falou o compositor que passou a ver na música eletrônica uma possibilidade de construir uma ponte entre sua praia e a pegada subterrânea do movimento.
O primeiro disco do Benzina, “Dream Pop” (2003), foi muito bem aceito, com Scandurra metendo a mão em tudo e produzindo a bolachinha. Além de ter uma sonoridade muito rica, o CD atingiu plenamente seu objetivo de realizar uma música para dançar e viajar. “Me realizei com esse disco porque consegui fazer a tal ponte. Tocava rock com o Ira! em um lugar extremamente roqueiro, chamado Kasabre, na zona Leste, até umas 3h da manhã. Depois, pegava uma van e ia tocar música eletrônica no Susi in Transe, que era no centro de São Paulo, às 4h30 da manhã. Rendeu um barato muito legal, Não vendi disco pra caramba, não deu grana, mas era muito legal porque abriu muito minha mente e meu som.”
O Benzina foi um projeto muito promissor, principalmente quando Scandurra tocava com Sandra e Michele, pois antes ele se apresentava sozinho, com suas máquinas. Com elas, surgiu uma potência muito forte, trazendo do passado um pouco do punk, do pós-punk, e dos improvisos. Quando o Ira! deu uma parada, em 2007, esse projeto fez com que Scandurra segurasse a onda e desenvolvesse seu lado mais “músico”.
Assista, a seguir, ao vídeo, no qual Edgard Scandurra, Sandra Coutinho e Silvia Tape ensaiam músicas do grupo As Mercenárias, com exclusividade para o Música em Letras.
SCANDURRA, O OPERÁRIO DO ROCK
QUANDO Toda segunda-feira de maio, às 20h; dia 7, “Amigos Invisíveis”; dia 14, As Mercenárias e Smack; dia 21, Voz, Violão e Guitarra; e dia 28 Benzina
ONDE Teatro Centro da Terra, r. Piracuama, 19, Perdizes, São Paulo, tel. (11) 367 1595
QUANTO R$50