Músicos levam calote
Há muito, polêmicas referentes a não pagamento de cachês para profissionais da música assolam o meio musical. Além de empresários que somem com a grana, gravações e ensaios não pagos, entre tantas outras práticas ilícitas, geram reclamações. Entretanto, a falcatrua da vez estabeleceu-se da seguinte forma: a maioria dos músicos que acompanham artistas famosos, em programas de TV, não recebem por isso. Se reclamarem correm o risco de “perder a boca”, como disse um dos entrevistados pelo Música em Letras.
Contudo, nem todos os artistas deixam músicos a seu dispor. Paulo Ricardo, Ivete Sangalo, Zeca Baleiro e Rolando Boldrin, segundo alguns dos entrevistados, são alguns dos poucos artistas que pagam músicos em apresentações televisivas. Grupos que atuam fixamente nos programas ficam fora da polêmica, pois recebem. Quem não recebe, na maior parte das vezes, são instrumentistas que acompanham as estrelas que, por meio deles, brilham nas telinhas dos telespectadores.
“Se falamos sobre isso dançamos e somos limadas da banda na hora. De uma maneira velada, tipo imposta, somos obrigadas a fazer a apresentação. Fazemos sob pressão, mas fazemos para mantermos o trabalho rolando”, contou uma backing vocal, endossada por todos os músicos que falaram ao blog, com a garantia de terem, obviamente, suas identidades não reveladas.
A vergonhosa prática de não pagar a quem deve receber, ou seja, de dar calote parece ser uma realidade longe de ter fim. Justificada pelos mais absurdos argumentos, entre eles o de que “aparecer na TV gera visibilidade para o instrumentista; você deveria agradecer por isso”, fomenta o hábito que estabeleceu-se como “normal” e infelizmente tem sido acatado pela maioria dos instrumentistas.
Entre os cerca de 20 instrumentistas, compositores e arranjadores entrevistados, figuram músicos extremamente talentosos, reconhecidos e com muita experiência em acompanhar artistas, orquestras e gravações, além de desenvolverem trabalhos próprios.
O blog apurou a questão com profissionais que formam a nata da música brasileira composta por acordeonistas, guitarristas, contrabaixista, maestros, arranjadores, percussionistas, violonistas, violeiros, backing vocals e pianistas, entre outros.
Questões como dividir o mesmo quarto em viagem com companheiros de banda, ou não receber cachê em troca de tocar na Europa ou nos Estados Unidos, com hospedagem e comida pagas, apareceram aos montes durante essa apuração, mas o blog deteve-se apenas na questão de cachês referentes à realização de trabalhos veiculados em programas de TV.
Afinal, de quem seria a responsabilidade de pagar por um trabalho realizado? Da emissora, do artista, do empresário ou de Deus?
Leia, a seguir, o que os músicos revelam sobre essa prática em voga e abusiva, apurada pelo blog que, nessa questão, se declara ateu.
MSC-MÚSICOS SEM CACHÊ
“Bicho, isso é uma coisa muito estranha. Ninguém paga. Raros são os caras que honram esse compromisso. Trabalho com dois artistas que fazem parte dessa raridade, mas pode escrever que isso é uma puta raridade. Somos constantemente chamados para tocar de graça em troca de aparecermos na TV, mas não precisamos disso”, disse um guitarrista.
“Pagam nada! Pior ainda é se você reclamar porque perde a boca na hora! Eu aproveito e mostro bem o instrumento que toco, porque foi feito por um superlutier, que, como eu, também é injustiçado. Pelo menos faço uma propaganda gratuita para ele, mas não ganho cachê. Quando ganhava, era um cachê de show, e quem pagava era a gravadora. Hoje, nem gravadora existe mais, quanto mais cachê pra músico. É o fim do mundo, porque além de não receber, o músico ainda tem que investir nos artistas, que geralmente não precisam desse investimento, mas o músico sim”, disse um violeiro.
“Sou do tempo que a gente recebia cachê para gravar determinados programas de TV, como os da TV Cultura, Globo e Tupi. Agora mudou tudo, mas se você é artista, você tem que propagar sua imagem, e para isso nada melhor do que aparecer num programa de TV. Mas se você for um músico acompanhando um artista, você deve receber sim, pois você estará contribuindo para a imagem do artista e não para a sua. Se continuar do jeito que está, vai chegar o dia em que o músico terá que pagar para aparecer na TV. Nossa profissão de músico teria que ser remunerada em qualquer tipo de trabalho, seja ele realizado na TV, num palco, em uma gravação, ou coisa que o valha. Não temos nem onde reclamar”, disse um contrabaixista .
“O único programa que paga cachê, que eu saiba, é o Sr. Brasil [TV Cultura], e paga só para os músicos acompanhantes, para os artistas principais não. Para ser bem simplista, acho que isso faz parte da desvalorização nacional que existe em relação à música brasileira”, falou uma percussionista.
“Não recebemos. Não recebemos, como alguns desses apresentadores cobram para nos apresentar”, disse um contrabaixista, sem revelar nomes ao blog.
“Participo muito do Sr. Brasil e recebo cachê. Assunto difícil esse, porque se, por exemplo, você toca com um cantor, cantora, dupla sertaneja ou grupo de pagode e a sua renda vem desse trabalho, possivelmente você irá se submeter a fazer programas de TV sem receber. Eu não me enquadro em nenhuma dessas opções, mas acredito que se eu participasse de um trabalho que eu curta muito, eu talvez topasse”, falou um violonista.
“Faz tempo que eu não toco na TV, mas nas vezes em que toquei, quem me pagou cachê foi o artista. Um cachê menor que de show, mas pagou. No entanto, essa é uma prática vergonhosa. Afinal, estamos trabalhando e um trabalho deve ser sempre remunerado. Trabalho voluntário deveria ser com o consentimento do profissional, sem coagi-lo a fazer isso”, disse um acordeonista.
“Acho isso um absurdo, pois deixamos de fazer outras coisas para fomentar emissoras, que apresentam como desculpa não ter cachê. Mentira! E a verba publicitária que recolhem nos comerciais? A partir do momento que cedemos nosso tempo, competência e anos de estudo, temos que ser remunerados, e bem, pelo trabalho”, disse um guitarrista.
“Só recebi uma vez, foi da Roberta Miranda, no começo de meu trabalho com ela. Depois nunca mais recebi. O Boldrin [Rolando] sempre dá uma ajuda de custo para os músicos que ele chama ao programa, isso é fato. Fora ele, ninguém mais paga. Nas vezes em que fui tocar com um artista superfamoso da MPB, em programas de TV, nunca recebi nada pelo trabalho”, disse um acordeonista, pedindo para não revelar o nome do artista.
“Faz tempo que não vou a programas de TV, porque a programação já não tem mais nada a ver com a música que faço, mas que eu me lembre nunca recebi de televisão para aparecer em programas. Recebi de um programa que passava bem tarde na Rede Globo, Som Brasil ou Bem Brasil, não me recordo o nome, mas pagavam um cachezinho pequeno. Aquilo, foi uma exceção. Eu sempre fui acompanhando alguém, nunca para mostrar o meu trabalho. Mas não acho legal isso, porque músicos deveriam ser remunerados para se apresentarem na TV ou em qualquer outro lugar. Entretanto, como sabemos que as emissoras estão em crise, acho que a cada vez mais esse é um objetivo distante, porque quando a TV estava em uma fase de vacas gordas já não pagavam nada, então agora pagam menos ainda”, disse um pianista.
Segundo o homem que tinha um instrumento no nome e a genialidade na escrita, Millôr Viola Fernandes (1923- 2012), mais conhecido como Millôr Fernandes: “O dinheiro não dá felicidade. Mas paga tudo o que ela gasta”.