Em crise, Cooperativa de Música de São Paulo pode fechar
O Música em Letras recebeu denúncias de músicos, que não querem ser identificados, sobre a Cooperativa de Música de São Paulo. A associação, que existe há 14 anos, sem fins lucrativos, destina-se, entre outras coisas, a reunir profissionais (músicos, técnicos, diretores, produtores e professores) numa pessoa jurídica de prestação de serviços e criação de produtos (mais informações no sitewww.cooperativademusica.com.br).
Segundo as denúncias, a cooperativa apresenta graves problemas financeiros e tem utilizado indevidamente de verbas destinadas a projetos aprovados pelo Programa de Ação Cultural (Proac).
O programa, mantido pela Secretaria da Cultura do Governo do Estado de São Paulo, promove o incentivo à cultura, a ampliação e a diversificação da produção artística, criando novos espaços, preservando o patrimônio histórico e aumentanto as formas de circulação de bens culturais em todo o Estado.
No intuito de esclarecer as denúncias, o Música em Letras esteve na última segunda-feira (10) no sobrado onde funciona a Cooperativa de Música de São Paulo, no bairro da Vila Pompéia, e entrevistou o presidente da associação, o pianista, compositor e arranjador Luis Felipe da Gama Pinto, 46, sobre a atual situação da instituição.
Segundo ele, que admitiu enfrentar uma situação de crise grave na instituição, houve sim utilização do repasse destinado aos projetos do Proac para sanar dívidas emergenciais da cooperativa, que conta com cerca de 2,5 mil cooperados. Contudo, nega os desvios em proveito próprio e manda seu recado. “Sou otimista. Embora a situação seja grave, ainda há solução.” Veja vídeo, no final do texto, com uma mensagem do presidente.
NÚMEROS
Mário Ramalho Pereira, gerente administrador da Cooperativa de Música de São Paulo, forneceu ao Música em Letras uma relação de faturamento da cooperativa referente aos projetos do Proac desenvolvidos no período de 2013 a 2017.
Nela consta que, no período de 2013/2014, do total de R$1.520.000 recebido pela cooperativa, 4 % (R$ 60.800) foram destinados ao pagamento da taxa administrativa da associação. No período de 2014/2015, do total de R$ 790.000, 4 % (R$ 31.600) foram novamente destinados à taxa administrativa. Em 2015/2016, de um total de R$ 1.060.000, 4 % (R$ 42.400) foram destinados à taxa administrativa e, no período 2016/2017, de um total de R$ 400.000, 5% (R$ 20.000) foram destinados à taxa administrativa. O total geral é de R$ 3. 770.00, sendo que R$ 154.800 foram utilizados para os pagamentos da taxa administrativa da associação.
MANOBRA FISCAL
Contudo, a manobra fiscal realizada pelo presidente da entidade e seus administradores, ou seja, a utilização dos recursos liberados pelo Proac para o pagamento das taxas administrativas da cooperativa, é passível de ser caracterizada crime, e, se assim o for, sofrer sanções legais. “Do ponto de vista contábil, é uma mera irregularidade. Mas, na verdade, o que implica é a questão jurídica, tanto do aspecto criminal quanto cível. Isso pode ocasionar uma ameaça tanto para os dirigentes da cooperativa como aos cooperados, acarretando uma implicação criminal e penal porque configura, em tese, um crime de apropriação indébita [crime previsto no artigo 168 do Código Penal Brasileiro], por parte do responsável pela associação dele, que tem o poder da disponibilidade desse dinheiro, pegá-lo sendo que seria destinado a terceiro, e utilizá-lo para outro fim, quase como um desvio de finalidade. Essa atitude pode configurar crime de apropriação indébita”, disse Juca Novaes, advogado especializado em direito autoral e membro do comitê central do Conselho Internacional dos Autores de Música (CIAM), em entrevista ao blog, por telefone.
Segundo Novaes, do ponto de vista dos cooperados, se o administrador recebeu dinheiro público e esse dinheiro foi mal utilizado, sem destiná-lo ao fim previsto, “isso pode configurar, inclusive ato de improbidade, e gerar outras penas”.
“Ainda é possível construir uma tese de defesa dizendo que não houve proveito pessoal do administrador, mas que o dinheiro foi utilizado para pagar as obrigações da sociedade, como, por exemplo, o recolhimento do INSS. Em suma, tudo o que estou dizendo é em tese, pois há de se estudar com afinco o caso para se opinar com segurança sobre o fato. Entretanto, esses são os tipos de problemas que podem surgir para os administradores da cooperativa envolvidos nesse tipo de ação”, disse Novaes.
Leia, a seguir, a entrevista concedida com exclusividade ao Música em Letras por Luis Felipe Gama.
Música em Letras- Há quanto tempo você é presidente da Cooperativa de Música de São Paulo?
Luis Felipe Gama- Tenho feito essa “bobagem” há seis anos. Fiz parte da diretoria desde que a cooperativa foi criada em 2003.
ML- Por que você qualifica o desempenho dessa função como uma “bobagem”?
LFG- Infelizmente, sou politicamente apaixonado por esse troço- não tanto como pela música-, e isso tem gasto muito mais tempo e energia em minha vida do que eu gostaria. Há três gestões, tento preparar a possibilidade de que outra pessoa ocupe esse lugar e o insucesso tem sido total. Ninguém se habilita ou se habilitou.
ML- A cooperativa passa por uma crise?
LFG- Acho que a cooperativa está passando por uma crise como a que o país está passando. Seguramente estamos vivendo uma grave crise e não tem como isso não chegar na cooperativa. Cachês do Sesc, por exemplo, diminuíram significativamente, e o volume de shows também. Diminuiu tudo, o que se paga por cada trabalho e a quantidade de trabalho.
ML- Denúncias feitas a esse blog afirmam haver um problema pontual no núcleo de projetos da cooperativa, e que o dinheiro destinado aos projetos aprovados pelo Programa de Ação Cultural (Proac) da Secretaria da Cultura do Governo do Estado de São Paulo, que já deveriam ter sido pagos aos proponentes, foram desviados ou sumiram. Isso procede? Desde quando?
LFG- Essa crise se agravou muito desde o segundo semestre do ano passado, mas há mais de um ano já estamos passando por ela. É uma crise política e econômica considerada a maior que o país já viveu, passando por um golpe branco e todo o resto de horrores que esse país já viu. Precisamos enxugar o máximo para continuarmos existindo, mas há um problema nisso. Ao se enxugar ao extremo, como fizemos, tivemos a piora do serviço que prestamos e não tivemos mais onde cortar. Entre algumas ações, diminuímos o quadro de funcionários [a cooperativa já empregou oito funcionários, hoje conta com quatro, todos assalariados, com salários entre R$ 1 mil a R$ 6 mil]; uma funcionária essencial do financeiro teve sua licença maternidade concedida em um momento muito difícil, que são os últimos meses do ano. Um funcionário, excelente, foi treinado para ocupar a função dela, mas o treinamento e o tempo não foram suficientes para ele desempenhar a função adequadamente. Isso gerou uma avalanche de problemas do ponto de vista operacional. Aliado a isso, estive muito pouco presente nesse momento por questões sérias de saúde. Imagine essa entidade como um barco avariado, em um mar difícil, com seu presidente avariado e sem alguém para assumir o timão. Nesse momento, promovi ações em proveito da preservação da entidade.
ML – Qual ação você realizou com relação aos recursos angariados pelos projetos aprovados pelo Proac?
LFG – Você não tem dinheiro no caixa e tem que pagar, por exemplo, o INSS, entre outras coisas, porque se você não pagar, a cooperativa é colocada no Cadin [Cadastro Informativo dos Créditos não Quitados de Órgãos e Entidades Estaduais] e aí acabou tudo. Por isso, você eventualmente usa um dinheiro que é destinado para uma determinada coisa para pagar hoje o que deve ser pago hoje, e, com o giro, pagar a outra coisa amanhã. Você assume esse risco porque em uma determinada situação, se você não fizer isso, o barco para e afunda.
ML – Por que, como presidente, você não avisou os cooperados que faria isso?
LFG – Porque isso é uma operação complexa, que pode gerar falta de credibilidade. Você tenta se garantir com o giro. Não tem como fazer uma assembleia para tomar uma decisão dessa. Só que você tem dois problemas, o giro não está alto, está baixo, e você está com um problema operacional grande por estar com um quadro muito reduzido de funcionários. Então, a operação fica mais emperrada do que você gostaria que estivesse.
ML – De quantos projetos você utilizou o dinheiro no intuito de depois ressarcir os valores com um suposto giro de capital?
LFG – Não sei dizer. Talvez, os das pessoas quem tem vindo aqui conversar, algo em torno de quinze a vinte projetos.
ML – Em termos de valores estamos falando de quanto?
LFG – Tem passivo de várias ordens; estamos falando de cerca de uns R$ 600 mil.
ML – Como solucionar isso?
LFG – Temos alguns projetos, mais antigos, que devemos dar conta deles primeiro. Acho que devemos esperar um pouquinho, pois temos todas as condições de reverter a situação por duas razões. Neste momento, temos a vantagem de sermos pequenos no mercado. Se ocupássemos o lugar da Cooperativa Paulista de Teatro, que é [uma associação] grande, teríamos muito menos soluções possíveis, porque eles não têm como expandir. Em uma retração econômica séria, eles não tem como não sofrer essa retração. Nós temos como nos livrar dessa retração porque somos muito pequenos. Mesmo que haja uma retração grande, temos como expandir nosso perímetro de atuação, mesmo com ele sendo diminuído. Oferecemos um produto bom e por um preço bastante competitivo. Portanto, t em como haver um crescimento. Essa é uma das maneiras de solucionar, mas não é a mais importante porque não dá conta do emergencial. Temos cinco projetos grandes em vias de fechamento com seus patrocinadores, cujo dinheiro referente à cooperativa é significativo. É um dinheiro que começamos a trabalhar junto ao BNDES. O valor supera bastante o passivo que nós temos [o valor não foi mencionado]. Esse dinheiro financiaria não só o passivo, mas o crescimento da cooperativa também.
ML – Qual a garantia desses grandes projetos acontecerem e terem suas verbas liberadas? Qual é a segurança que você tem disso?
LFG – Segurança não tenho nem de que vou estar vivo amanhã, mas esses projetos, especialmente os de incentivo fiscal, estão em níveis bem avançados. Junto ao BNDES, com as conversas que temos tido, nada indica que isso não possa acontecer.
ML – Qual e como tem sido a reação dos proponentes contemplados pelo Proac?
LFG – A reação é ruim. Na situação deles, talvez eu também me sentisse assim. Em primeiro lugar, tenho pedido desculpas, pois houve uma quantidade bastante de tempo em que eu estive afastado. Mas eu peço desculpas e cobro deles, pois é um absurdo que, em uma associação dessa importância e envergadura, eu tenha que permanecer presidente por duas gestões, praticamente sozinho, e que a gente não consiga o mínimo de participação dos associados, suficiente para que houvesse um outro presidente com uma diretoria mais participativa. Peço desculpas porque minha saúde não permitiu que eu estivesse à altura dos compromissos, mas ao mesmo tempo cobro.
ML – Por que você não renunciou?
LFG – Cheguei a me perguntar se isso tinha sentido e que talvez fosse até melhor acabar mesmo com a cooperativa. Porque estou passando por um nível extremo de sacrifício pessoal, artístico e financeiro. Não precisaria estar passando pela penúria econômica que estou passando, pelo artista que eu sou; não digo isso com arrogância, pois tenho uma carreira e um currículo. Sou parceiro do Pablo Milanês, e meu trabalho é admirado por Chico Buarque e Ney Matogrosso, entre outros artistas. Mas, atualmente, meu tempo é 80% tomado por uma entidade que, por questão da crise econômica, não tem como me pagar um pró-labore à altura desse meu investimento. Por isso, pensei se há sentido em ser presidente de uma associação que não disponibiliza uma diretoria participativa e as pessoas a utilizam como se fosse uma loja de notas fiscais. Pensei em renunciar e dane-se. Mas quando perguntei em assembleias se alguém queria assumir minha posição, pois estou muito cansado, ninguém quis. Além disso, não renunciei porque entendo a importância da cooperativa e há uma quantidade muito grande de energia, tempo e vida investidos por mim aqui. Aprendi com meu pai, que foi comandante de avião, que quem ocupa o lugar que ocupo tem que ser o último a deixar o barco. Por ter responsabilidade, fui ficando.
ML – Qual o futuro da cooperativa diante dessa situação?
LFG – Estamos em uma importante encruzilhada. Só existem duas alternativas nesse momento para a cooperativa, acabar ou voltar a crescer com energia.
ML – A cooperativa “acabar” significa cair em uma situação de insolvência?
LFG – Sim. Mas isso não pode mais depender de mim apenas, depende da gente. Temos como honrar tudo, se trabalharmos por isso. Se o coletivo entender isso está em nossas mãos salvar essa entidade.
ML – Segundo as denúncias recebidas pelo blog aventou-se a possibilidade de parte desse coletivo acionar a cooperativa judicialmente. Qual sua opinião sobre isso?
LFG – Isso é uma irracionalidade total por uma razão muito simples. Se acionar, você vai quebrar a entidade, obviamente, por que isso vai gerar uma crise de credibilidade gravíssima e, se a entidade quebra, ela não tem bens. Eu, como presidente, não tenho bem nenhum, aliás não tenho carro e nem plano de saúde mais, sem querer fazer draminha. Por isso, eu digo para os camaradas que eles não vão conseguir garantir recursos para nada, porque não tem de onde vir. Vão secar os recursos da cooperativa se entrarem na justiça. Estamos em uma situação de crise, mas que é absolutamente administrável. Se entrarem na justiça, esse dinheiro não vai vir de lugar nenhum, porque não temos bem nenhum com que honrar esse compromisso. Isso não terá como ser honrado se você for para a justiça, ao passo que, se você não for e trabalharmos juntos para essa entidade, temos como gerar esse recurso. É simples assim. Agora, se fechar a entidade, eu quero saber quem ganha com isso?
ML – Além do dinheiro, o que os proponentes dos projetos, que tiveram seus repasses utilizados para pagarem contas emergenciais, estão solicitando?
LFG – Fui solicitado por uma representante deles a enviar um e-mail pessoal, explicando, passo a passo, como pretendo resolver a situação toda. Em primeiro lugar, isso não é uma questão pessoal minha. Eu, junto a outros diretores, estamos discutindo o que faremos e depois disso poderemos enviar um e-mail, mas em nome da cooperativa.
ML – Você se arrepende de utilizar a verba de projetos para pagar outras contas da cooperativa?
LFG – Não. Eu só me ressinto de não ter tido condições de saúde para, no momento em que a coisa se agravou, eu estar mais presente e ter pensado mais meticulosamente no que se fazer. Fora isso, não me arrependo de jeito nenhum. Sei da decisão que tomei e da responsabilidade dela por uma razão muito simples. Se eu não tivesse feito isso, a cooperativa teria acabo. Tudo o que se fez foi para que a associação não acabasse.
ML – Em resumo, você utilizou o dinheiro dos projetos para sanar dívidas que poderiam ter posto fim à cooperativa?
LFG – Sim, por exemplo, uma eventual dívida do INSS. Por isso, você toma um dinheiro, um recurso emprestado, que é para outra coisa senão a entidade acaba.
ML – Como conciliar a vida artística com a de presidente da cooperativa?
LFG – Minha vida artística e profissional passa pelo pior momento que já tive. Não há como conciliar essas coisas. Mas não quero me fazer de coitadinho, porque assumi a presidência por livre e espontânea vontade. Era algo que fazia parte de um projeto de vida em que acredito. Tenho orgulho de ter feito isso e, às vezes, sacrificamos uma coisa pela outra, quando as duas são importantes. Continuo compondo e tocando, mas a performance da minha obra ficou muito prejudicada
ML – Qual o maior aprendizado que você teve sendo presidente da cooperativa?
LFG – Tenho certeza de que, daqui para frente, serei mais atencioso, responsável e cuidadoso quanto a qualquer juízo que eu faça, acerca de qualquer pessoa que esteja em uma situação de exposição pública e de responsabilidade que envolva coletivo. Porque algumas vezes você é obrigado a tomar decisões muito difíceis e você não tem uma solução simplesmente irretocável. Você sempre corre o risco de, em proveito coletivo, ser acusado de coisas e de intenções que não têm nada a ver com o que você fez. A principal lição é essa, ter um certo comedimento no juízo e em entender o porquê, quem fez o quê e aonde. Há quem diga que fui um sacana. Não fui e só tive prejuízo do ponto de vista econômico e da minha carreira.
ML – Qual o maior prejuízo que você contabiliza por ser presidente da cooperativa?
LFG – Um prejuízo moral, que é muito ruim porque vem de colegas que fazem isso de maneira precipitada, irresponsável e equivocada a meu respeito. Isso não tem como não te agredir e ferir de alguma maneira. Além de um prejuízo econômico sem igual. Estou sem pagar a escola da minha filha de 13 anos e a mensalidade do meu filho que está na faculdade.
ML – Quais são suas intenções com relação à presidência da cooperativa?
LFG – Nessa gestão, quero preparar gente para que eu possa ir largando um pouco a função para que, em uma próxima diretoria, eu seja um sócio usuário da cooperativa, participante.
Assista, a seguir, ao vídeo no qual o presidente da Cooperativa de Música de São Paulo, convoca os cooperados a reverterem a atual situação da entidade, em crise.