Conheça e Assista- Luís Filipe de Lima
Conheça e Assista é a nova seção do Música em Letras dedicada a perfis de artistas e profissionais relacionados à música. Muitos desses artistas, embora com carreiras estabelecidas e reconhecidas por seus pares, não têm seus nomes identificados imediatamente pelo público.
Mesmo para quem milita na área, como é meu caso, histórias e trajetórias de personagens que contribuem de modo relevante para nosso universo sonoro podem passar despercebidas. Por isso, aproveito para contar aqui como acontecem esses encontros, misto de atenção, acasos felizes, contatos e um pouco de sorte.
Nesse primeiro relato, Conheça e Assista o carioca Luís Filipe de Lima, 49, artista de variados domínios e mais uma pá de coisas, aqui registrado em letras, fotos e vídeos.
PRIMEIRO CONTATO
Conheci Luís Filipe de Lima, pelo som. Ouvi-o tocar violão de sete cordas, fazendo seus contracantos ao conhecer o disco da cantora, jornalista e compositora Cecília Leite “Enquanto A Chuva Passa”. Ao ouvir a gravação, o som do violão de sete cordas me chamou muito à atenção.
Pesquisando sobre o instrumentista, deparei-me com sua imagem. Dela, veio a sensação de que eu já o conhecia. Era de se esperar, pois Filipe, além de músico, foi ator de novelas da Rede Globo, portanto teve seu rosto visto por milhares de pessoas, talvez incluindo a mim.
No histórico de sua carreira, constam várias produções e direções musicais, além de também ter os títulos de Mestre e Doutor em Comunicação e Cultura pela Escola de Comunicação da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).
Entretanto, o que me chamou mais a atenção foi saber que Filipe foi aluno de Horondino José da Silva, o Dino 7 cordas (1918-2006). Talvez, fosse essa a razão de seu som não ser chato, esporrento, cheio de técnicas, manhas e artimanhas, ao contrário do festival excessivo das rajadas de bordões que assola o planeta. Talvez tenha sido com o mestre Dino que Filipe aprendeu a ser certeiro, bonito, elegante, comedido e muito bom de ser ouvido. Em seu som há muita música.
Além disso, Filipe escreveu livros sobre candomblé, atualmente escreve um sobre samba, é envolvido com o carnaval carioca, cozinha muito bem e entende bastante de vinho.
O descrito acima, aliado ao som de seu violão de sete cordas, foi o bastante para eu “pegar amor” na pauta! Decidi entrevistar o sujeito, mas não sabia quando. Aguardaria uma oportunidade e pronto.
OPORTUNIDADE
Com uma matéria a ser realizada no Rio de Janeiro para este blog e para o jornal, em janeiro, decidi aproveitar a estadia na cidade e descolar mais uma pauta legal. Sim, não desprezo oportunidades, e no Rio elas saem da torneira.
Dias antes de embarcar, conversando com a atriz e amiga Adriana Lessa, contei sobre minha viagem, e perguntei se ela tinha alguma sugestão de pauta. O carnaval já estava próximo e Lessa é da festa, e do samba. Depois de aventarmos nomes iniciados pela letra M, de música, passando por Monarco, Martinho da Vila, Mart’nália, entre outros, Lessa perguntou: “Por que você não entrevista um músico instrumentista?”
Com “M” maiúsculo? Perguntei, já respondendo que seria uma boa, inclusive tinha na manga, um cara que havia me surpreendido ao escutá-lo. Quem? Perguntou Lessa. E citei o nome de Luís Filipe de Lima. Espantada, me disse: “Você tem que conhecer e entrevistar esse cara! Ele é o máximo. Aposto que você vai fazer uma superentrevista. Daquelas que você gosta. Vocês vão se curtir muito. Ele vai te abrir muitas portas”, disse a atriz em tom profético.
Foi assim, que descobri o fato de ambos serem amigos. Ela fez a ponte. A partir daí, tudo conspirou para que Filipe fosse o eleito da vez. Trocamos mensagens no Whatsapp, expus minhas intenções diante da possibilidade de ele ser o primeiro a participar do Conheça e Assista. Na mesma hora, ele achou legal, mas ficou de confirmar sua disponibilidade para a entrevista, pois estava ensaiando o espetáculo “Deixa a Dor por Minha Conta”, peça escrita por Marcos França e Hugo Sukman, sobre a obra do compositor Sidney Miller (1945-1980), com 28 músicas e direção musical de Filipe. O espetáculo, que conta com quatro personagens e um coro de oito figuras, estreia dia 9 de março, no Sesc Copacabana.
No final, tudo deu certo. Nos conhecemos, rimos, ouvimos e falamos para cacete. Filipe me aturou durante 4 horas, perguntando, fotografando, gravando, perguntando, fotografando, gravando e perguntando, fotografando e gravando.
Conforme a premonição de Lessa, o multiartista abriu “muitas portas” para mim. Entre elas, a de sua generosidade, humildade, dedicação e devoção que tem pela vida e pela arte.
GENÊSE
Segundo Filipe, seu nome completo “é um testamento”: Luís Filipe Esplendore de Lima da Silva. “Sempre digo que na próxima encarnação, se eu puder escolher, vou querer nascer como Josa, que é o nome mais curto, com nome, sobrenome. E, em quatro letras já matou, né?”, disse rindo.
“Meu nome de guerra é Luís Filipe de Lima”, falou. O Esplendore, vem da família da Maria Stella Splendore, a primeira top model brasileira, que foi casada com o estilista e pioneiro da moda no Brasil, Dener (1937-1978). Filipe é do Rio, a mãe de São Paulo e o pai era de Lisboa. “Ele morreu com 77 anos, em 2002. Hoje, teria 92 anos”, disse referindo-se ao pai Luis de Lima que foi ator, diretor, mímico, professor de teatro que ouvia gêneros musicais diversos em casa. “Da música concreta de Edgard Varèse a músicas de protesto. Tínhamos o compacto do [Geraldo] Vandré cantando ‘Pra Não Dizer que Não Falei das Flores’, comprado no dia em que chegou às lojas e que no dia seguinte foi recolhido. Esse disco virou nosso troféu, pois era proibido. Também tínhamos discos da Tropicália e um, em especial, de 1951, que meu pai comprou em um sebo, com gravações da Aracy de Almeida cantando as músicas do Noel Rosa. Era um estojo de cartolina coberto por tecido, com ilustração do Nássara”, contou.
A mãe de Filipe, Maria Luiza Esplendore, 85, é bailarina clássica. Dançava no Ballet do IV Centenário de São Paulo. “Fui tocar no Sesc Belenzinho, em São Paulo, com o Bezzerra da Silva, com quem toquei por quatro anos. Quando entrei, vi uma exposição que estava acabando de ser montada sobre o Ballet do IV Centenário e havia um painel, de tamanho maior do que a escala natural, com uma foto de corpo inteiro de minha mãe”, contou Filipe sobre sua progenitora que dançou por um tempo no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, antes de trabalhar em emissoras de TV.
“Todas emissoras tinham seus corpos de baile. Minha mãe dançou na primeira abertura do Fantástico, da Globo, mas antes passou pelas TV Excelsior, TV Continental, Tupy do Rio e TV Rio.” O músico lembrou que nesse tempo sua mãe era amiga da Rogéria, nascida Astolfo Barroso Pinto, 73, atriz transexual brasileira, que começou como maquiadora na extinta TV Rio e vedete. “Até hoje, quando me encontra, me chama de filho. O primeiro show que o Astolfo fez como Rogéria foi usando uma calça minha emprestada por minha mãe.”
Shows de música costumavam ter corpos de baile e Maria Luiza Esplendore participou de vários deles. “Acho que no show ‘Brasileiro Profissão Esperança’, com o Paulo Gracindo e a Clara Nunes, ela estava no palco”, falou sobre a mãe que, além de bailarina, estudou piano durante nove anos em um conservatório, em São Paulo.
Segundo Filipe, depois de se formar no conservatório, Maria Luiza deu diploma para a mãe e nunca mais tocou piano. “Ela tocava violão. Nos anos 1960 e 1970, era muito comum ter rodas de música em casa embaladas pelo som do instrumento. Eu era garoto de colo e ficava grudado nele. Depois minha mãe vendeu esse violão”, disse o artista que nas visitas às casas dos amigos dos pais, na maioria músicos, corria para abraçar o instrumento alheio.
Nos anos 1970, Luís de Lima, pai de Filipe, trabalhava muito como professor e ator em teatros de Portugal e da França. De uma dessas viagens à Europa, trouxe de presente para o filho, que completava 7 anos, um violão espanhol Roca, de bojo pequeno, próprio para criança. “Eu achava que era o melhor violão do mundo. Depois, quando já tocava, passei a levar esse instrumento para usar nas rodas e percebi que ele não tinha som nenhum e sua madeira era cheia de nós. Mas guardo esse instrumento com o maior carinho.”
Filipe não se recorda de uma música específica de quando era criança, mas sim de um caleidoscópio de sons. Contudo, a primeira música que aprendeu a tocar no violão que ganhou do pai foi o “Vira”, imortalizada pelo grupo Secos e Molhados. “Nessa ocasião, violão parecia Kama Sutra porque, ao invés de acordes, todo mundo falava que me ensinaria umas posições”, contou rindo.
A segunda música aprendida no instrumento foi “Charlie Brown”, de autoria de Benito di Paula. “Trinta e cinco anos depois, fui convidado para participar do DVD do Benito di Paula, tocando violão de sete, nessa e em outras músicas dele.”
Embora seja canhoto, Filipe aprendeu a tocar violão como destro. Um professor o orientou a tocar da maneira que quisesse, pois teria de utilizar as duas mãos e, como todo mundo, teria as dificuldades iniciais de um aprendiz, e isso não importaria. Contudo, segundo o professor, se empunhasse o violão como destro poderia ser um violonista mais sociável. “Ele me deu um argumento convincente, quando explicou que se eu invertesse as cordas do violão só eu e outros poucos violonistas tocariam em meu instrumento. Se eu tocasse como destro, chegaria em festas onde a música rolava e sairia tocando em qualquer violão.”
O ALUNO E SEUS PROFESSORES
Filipe seguiu aprendendo violão, mas de modo irregular. Abandonava as aulas, mas voltava sempre que podia. “Coisa de geminiano”, explicou o músico que utilizava bastante as revistas “Violão e Guitarra” para completar o aprendizado. “Aquelas harmonias eram sempre muito erradas, mas aquilo era legal porque ficávamos tentando achar os acordes certos”, falou o músico que não tem ouvido absoluto, nem obsoleto, como se diz na piada, mas “Absolut”, como disse em tom de galhofa em referência à marca de vodka.
Embora seja doutor em Comunicação e Cultura pela Escola de Comunicação da UFRJ, onde defendeu tese sobre o choro carioca, e mestre pela mesma instituição, com dissertação sobre a música das religiões afro-brasileiras, Filipe não enveredou pelo mundo acadêmico. “Cheguei a dar aulas na própria UFRJ e em cursos de outras universidades, mas a necessidade de um comprometimento com essa atividade, enquanto continuava a atuar como músico, impossibilitou que eu continuasse a ser professor.”
Para Filipe, a música parte de uma ligação mecânica e física que temos com o instrumento, mas ela está em nossa cabeça. “A música é uma linguagem, que se dá em um conjunto de idiomas. Duvido de quem afirma que ela é um idioma universal; ela não é. É um outro tipo de linguagem que promove a combinações de elementos, signos e sinais. É possível, por meio da música, obter um entendimento que não se dá falando. Mas você não vai tocar a música de um cara do Azerbaijão do jeito que ele toca e vice-versa. Por isso, é preciso relativizar essa ideia de que a música é uma linguagem universal.”
Filipe foi aluno, entre outros professores, de Lourenço Baeta, cantor, instrumentista (violonista e flautista), ator e compositor carioca do grupo Boca Livre. “Essas aulas eram mais direcionadas à percepção musical. Ele me abriu mais os olhos para a questão do repertório e de pensar a música. Um dia pediu para que eu tocasse um samba, e eu disse que não sabia. Espantado, disse que eu era brasileiro, carioca, e tinha que saber tocar samba, mesmo se eu não seguisse por esse caminho na música”, contou o músico que na ocasião estava com 9 anos.
Com 12 anos, Filipe passou a ouvir muita música clássica. Entre os compositores preferidos, Joseph Haydn (1732-1809), Beethoven (1770-1827) e Vivaldi (1678-1741), por quem se encantou. “Comecei a ler música na escola, quando aprendi a tocar flauta doce e tocava música barroca”, falou o artista que estudou na escola Luiza Prates, instituição com um ensino mais direcionado às artes. Depois, ainda garoto, Filipe foi estudar na Escola de música Villa-Lobos, no centro do Rio de Janeiro. Apesar de tocar muita música de ouvido com a flauta, embora com técnica limitada, o menino impressionava por sua aptidão no instrumento de sopro, que acabou por ser tolhida. “Uma professora, especialista em flauta doce, me disse que eu não podia tocar com vibrato porque flauta doce não se toca com esse recurso. Isso cortou minha onda, fiquei puto e abandonei o instrumento.”
Prestes a completar 13 anos, enquanto o pai trabalhava novamente em Portugal, Filipe recebeu a proposta de ganhar um instrumento da “terrinha”. Entre as sugestões do pai para o pimpolho houve a oferta de uma guitarra portuguesa. “Vacilei, deveria ter aceito porque adoro fado e esse instrumento, mas queria uma guitarra elétrica. Não para tocar rock, porque nunca me interessei por isso, mas para estudar timbres diferentes com pedais e distorções. Meus pais eram artistas, mas caretésimos e cortaram meu barato. Acho que ficaram com medo de eu virar rockeiro, maconheiro, que incomodasse os vizinhos com o barulho, sei lá. Disseram para eu pedir outra coisa, menos a guitarra. Pedi um bandolim”, falou o músico que assistia aos domingos o programa Concerto para a Juventude e se encantava com o som do bandolinista Joel do Nascimento, 79, tocando com orquestra.
De posse de um bandolim Del Vecchio- o primeiro foi um Giannini, que estourava as cordas-, Filipe disse ter descoberto definitivamente o Brasil. Procurou Afonso Machado, bandolinista do grupo Galo Preto, pois Nascimento estava muito ocupado fazendo shows. Depois de estudar com Machado, Filipe também teve aulas com Joel Nascimento.
NA TELA E NO PALCO
Em 1975, o pai de Filipe trabalhava como ator na novela “Bravo”, de Janete Clair (1925-1983) e Gilberto Braga, produzida pela Rede Globo, representando o empresário de um maestro. “Meu pai frequentava muito a casa da Janete e do Dias Gomes, no Recreio dos Bandeirantes, que nessa época era zona rural. Eles eram muito festeiros e faziam reuniões, almoços, jantares e festas juninas muito legais. Eu era pirralho, muito espoleta e brincava com o Alfredo e a Denise, filhos do casal. Um dia a Janete, que simpatizava comigo, me chamou de lado, disse que iria escrever um papel, uma pontinha, para a novela em que meu pai trabalhava e se eu queria fazer. Topei na hora, porque para mim aquilo era uma brincadeira. Ela escreveu o papel e eu gravei com a Bete Mendes, Aracy Balabaniam, Carlos Alberto e o Denis Carvalho. Ainda era o tempo da TV em preto e branco. Fizeram uma ficha minha e deixaram no departamento de elenco.”
Quatro anos depois, quando fizeram a novela ‘Os Gigantes’, do Lauro Cesar Muniz, que mostrava um triângulo amoroso entre a Dina Sfat (1939-1989), Francisco Cuoco e Tarcísio Meira, precisavam de crianças para o flashback dos três personagens quando pequenos. Chamaram Filipe para fazer um teste com Regis Cardoso (1934-2005). “Ele era o diretor da novela e me escolheu porque eu falava bem e tinha uma ‘pinta’ do Tarcísio Meira”, contou o artista que só depois de ter abocanhado o papel revelou ser filho do ator Luís de Lima e de Maria Luiza Esplendore. “O fato de eu ter entrado na novela, por conta própria, garantiu segurança extra para que eu desempenhasse o papel.” Ainda na Globo, participou das novelas “Olhai os Lírios do Campo” (1980) e “As Três Marias” (1980) na qual contracenou com Glória Pires.
No teatro, em 1979, Filipe dividiu o palco com Fernanda Montenegro e Fernando Torres (1927-2008), interpretando o filho de ambos, na peça “Assunto de Família”, de Nuno de Oliveira, com direção de Paulo José, 79. Em “Os Meninos da Rua Paulo” (1983), adaptação para o palco de Claudio Botelho da tradução de Paulo Ronai (1907-1992) do romance do húngaro Ferenc Molnár (1878-1952) Filipe foi dirigido pelo próprio pai. Agnaldo Silva, 73, dramaturgo, escritor, roteirista, jornalista, cineasta e autor de novelas assistiu à montagem, e convidou Filipe para atuar na novela “Partido Alto” (1984), sabendo que o adolescente de 16 anos tocava bandolim. “Pedi uma ajuda para o Afonso Machado, pois pediram que eu indicasse músicos para me acompanharem nas gravações. Todos que tocavam comigo eram do grupo Galo Preto. Foi assim que comecei a tocar de verdade.”
O pai de Filipe, ao lado do amigo Mário Lago (1911-2002), apresentava as festas de 25 de abril, em comemoração ao aniversário da Revolução dos Cravos, ocorrida em Portugual. Eram shows gratuitos que reuniam a nata da MPB. No ano de 1984, o show foi no teatro João Caetano com capacidade para mais de mil pessoas. “Lembro do teatro lotado, com gente sentada no chão. Tinha Chico Buarque, João Nogueira, Gonzaguinha, Fagner, Fafá de Belém e mais um monte de gente que era sucesso na MPB dos anos 1980. Me puseram para abrir o show, pois eu era o nome menos conhecido de todos. Eu nunca tinha tocado bandolim em público, só em casa. Essa foi a primeira vez que toquei esse instrumento diante de mais de mil pessoas”, contou o músico que pela primeira e única vez ficou nervoso antes de tocar. O artista acabou com o nervosismo dando uma talagada de um uísque Red Label que dava bobeira em um dos camarins do teatro. Tocou “Noites Cariocas” de Jacob do Bandolim (1918- 1969) e “Amarelinho”, choro de Elton Medeiros e Téo de Oliveira, músico e compositor que integrava o regional de choro Galo Preto e acompanhou o valentão mamado.
A novela “Partido Alto”, escrita por Agnaldo Silva e Glória Perez, estreou um mês depois do show. Nela, Filipe interpretou Felipe, filho do personagem Célio Cruz, um bicheiro interpretado por Raul Cortez (1932-2006). “Nessa novela, o sonho do bicheiro era que o filho herdasse seus pontos e também trabalhasse com isso. Não sei qual dos dois autores da novela escreveu essa fala, mas eu a disse saboreando. A cena era o pai enchendo o saco do filho, dizendo: ‘Pô, Filipe, você tem que trabalhar comigo no bicho’. E eu dizia: ‘Que é isso pai? Bom mesmo é Pixinguinha’. Pô, eu poder dizer isso em horário nobre, na novelas das oito da noite…”, falou rindo.
Esse trabalho foi o divisor de águas na vida do ator que acabou enveredando pelo caminho da música. Apesar de ter feito ainda algumas minisséries e outras novelas, o trabalho na TV foi rareando.
Como ficou conhecido como o garoto que tocava bandolim na novela, passou a tocar em rodas de choro e samba, em alguns bares na noite carioca. Ainda insistiu em trabalhar com TV, fez curso de vídeo, “pois na época a onda era ser videomaker”. Mas não virou e o bandolim foi ficando de lado.
PROFISSÃO MÚSICO
Filipe nunca imaginou que fosse se tornar músico profissional, pois queria que a música se tornasse uma fonte de prazer e não de obrigação. “Era o papo de adolescente horroroso que eu tinha, achando que como profissional teria que abrir concessões. Mas o tempo passou e sou um cara muito feliz com meu trabalho, afinal concessões fazemos cotidianamente, em tudo. No meu trabalho, faço menos concessões do que imaginava que teria que fazer quando era adolescente. Pepinos sempre aparecem, mas o índice de satisfação que tenho é altíssimo. Nem sempre tem grana, mas alegria tenho a toda hora.”
Além de acompanhar tocando violão em shows de Bezzera da Silva (1927-2005); Elton Medeiros, 87; Nelson Sargento, 92; Dona Ivone Lara, 95; e Noca da Portela, 84, Filipe tocou em muitos bares. Durante dez anos, apresentou-se também nos carros de som dos blocos do carnaval carioca Simpatia é Quase Amor, Suvaco do Cristo, Imprensa que eu gamo, entre outros. Contudo, os bares foram essenciais em sua formação musical.
Na faculdade, Filipe já havia abandonado o bandolim e se reaproximado do violão, até então o de seis cordas. “Tocava nas rodas do famoso laguinho da ECO (Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro) e no Sujinho, bar que fica no campus da Praia Vermelha. Tocava choro e samba com uma rapaziada da minha idade. Passamos a tocar nos bares de Botafogo que já tinha umas rodas com um pessoal mais velho, uns 15 anos a mais do que nós. Na maioria, eram da mesma faixa de idade do pessoal do Galo Preto. O Paulão 7 Cordas, o Henrique e o Beto Cazes, além do Maurício Carrilho, já tocavam nesse circuito. O pessoal da velha guarda de Botafogo, como o Paulinho da Viola, nascido e criado em Botafogo, além de Walter Alfaiate e Zorba Devagar faziam esse movimento de samba. As casas eram O Samba de Fato, o Dezenove do Dois, um bar da rua Dezenove de Fevereiro, o bar do IAB (Instituto dos Arquitetos do Brasil) e o Asa, um clube judaico que tinha rodas de samba memoráveis. Os grupos eram Branco no Samba e o Sem Colarinho, do pessoal que fundou o bloco Simpatia É Quase Amor [nome inspirado no personagem da zona norte carioca, Esmeraldo Simpatia é Quase Amor, do livro de crônicas “Rua dos Artistas e Arredores”, de Aldir Blanc]”, contou o músico que, entre outros, andava em companhia dos compositores e músicos Eduardo Gallotti, Rodrigo Lessa e Eduardo Neves.
Mandrake era o nome do bar que a turma de Filipe achou, no Botafogo, em 1987, para se reunir e tocar sem ganhar nada. O som atraiu fregueses, e os músicos foram contratados para tocarem toda terça-feira à noite, sem hora para terminar, por um cachê simbólico mais uma cota de chopp e tira-gosto. Isso durou oito anos e ensinou Filipe a tocar samba, no violão de seis cordas, acústico, na marra e sem amplificação. “Foi minha principal escola. Aprendi repertório e a harmonizar direito, além de adquirir a habilidade de achar tom na hora para alguém cantar, ou de acompanhar cantores que não são profissionais e mudam de tom no meio da música, ou que comem um tempo do compasso, e a dinâmica de uma roda de samba, tudo tocando nesse bar. Nos dias que o bar estava cheio, nem eu me ouvia tocando. O cavaco que é mais agudo com frequência mais alta, tem alcance maior. Voz, as pessoas se esgoelavam. Com a percussão estava tudo certo, estava em casa, mas o violão…Às vezes, eu só conseguia tocar se encostasse o ouvido no corpo do instrumento. Por isso, eu podia experimentar e errar à vontade. No final da noite, eu tinha crises de consciência porque eu errava e ainda por cima recebia por isso. Tem quem chame isso de desonestidade ou de ‘pão da vergonha’”, contou rindo o artista que passou a usar dedeira no violão de seis cordas para dar volume ao instrumento.
Segundo o músico, o público ouve e participa muito mais de uma roda de samba acústica do que uma amplificada. “A relação toda muda. A roda acústica é mais dinâmica, as trocas são mais ricas e as canjas também”, falou Filipe, acrescentando que apareciam Zeca Pagodinho, Beth Carvalho, Sombra e Sombrinha, entre outros, para apreciar a “garotada de Botafogo” como passaram a ser chamados.
Surgiu o Sobrenatural, bar em Santa Tereza, onde Filipe já estava tocando com mais desenvoltura e atacava de quarta a sábado. O Mandrake fechou e o artista passou a tocar toda terça-feira, em Laranjeiras, no bar chamado inicialmente de Severina e depois de Carne de Sol. Nessa casa permaneceu dez anos mostrando seu som. “Toquei regularmente na noite durante 18 anos. Tenho asma e nunca fumei, mas fui fumante passivo todos esses anos.”
VIOLÃO DE SETE CORDAS
A Casa da Mãe Joana, em São Cristóvão, foi outro lugar em que Filipe fez muito som. Como gostava e tinha facilidade para harmonizar, foi se aprimorando até que, em 1992, começou a tocar o violão de sete cordas. “Sempre namorei o sete cordas, mas existia um pensamento dominante entre os músicos de choro de que primeiro você começa com o violão de seis cordas para ter o fundamento da levada. Primeiro se aprende a harmonizar para depois fazer as ‘baixarias’. Antes tem que aprender a fazer o ‘trabalho sujo’, centrando. Hoje, o violão de sete cordas ficou muito mais popular do que era naquela época.”
Filipe gravou pela primeira vez com esse instrumento, só com bambas, em um disco de Paulinho Tapajós (1913-1990), no qual o compositor canta e convida outros artistas da MPB. Uma das faixas gravadas por Filipe, “No tempo dos Quintais”, traz Tapajós cantando com Beth Carvalho, Sivuca (1930-2006) no acordeom, além dos violões de seis e de sete cordas de Filipe. “O Sivuca me deu o caminho das pedras nessa música. Ele foi muito generoso”. A outra faixa gravada foi o samba “Coração Poeta”, de Paulinho Tapajós, em parceria com Nelson Cavaquinho (1911-1986), nas vozes de Chico Buarque e João Nogueira (1941-2000), que segundo Filipe, deveria ser mais lembrado. “É um samba lindo”.
Paulão 7 Cordas, 59, além de tocar muito, é um colecionador de violões diferente, pois usa todos eles. Um dos itens de sua coleção, um violão Dusouto de 1986, foi vendido para Filipe, tornando-se seu primeiro instrumento de sete cordas. “Esse violão foi reformado pelo Mario Jorge, um luthier que deixou de trabalhar com luteria. Ele fazia os violões do Raphael Rabelo. Esse violão, especificamente, tinha o rastilho [peça de resina, plástico ou osso que apoia as cordas no tampo do violão e serve para captar e passar a vibração das cordas para o tampo e o captador do instrumento] para cordas de nylon e de aço. Comecei usando nylon, mas quando mudei para cordas de aço, me encantei. Passei a usar um encordoamento, que o Dino 7 Cordas usava e que foi popularizado por ele entre os músicos. Não sei se foi ele quem inventou, mas é um encordoa mento híbrido. As duas primeiras cordas [mi e si] são de nylon, e da terceira à sexta [sol, lá, ré, mi] são cordas de aço flat, lisas para guitarra, e para a sétima corda, dó, usamos uma quarta corda de violoncelo.”
Após anos usando esse Dusouto, Felipe colocou o instrumento para descansar. “Comprei outro Dusouto mais antigo, de 1983, do Lucas Porto”, falou o instrumentista referindo-se ao violonista carioca.
DINO 7 CORDAS: O MITO, A LENDA
O violonista carioca Dino 7 Cordas aparece na vida de Filipe da seguinte maneira. Ele já tocava o violão de sete cordas e ouvia Dino como um mestre, mas só por meio de discos. “Aprendia tudo ouvindo o Dino pelos discos. Em 1994, fui ter aula com ele para conhecer de que mãos saiam aquilo”, falou o músico que também ouvia os discos de Cartola (1908-1980) que tinham a direção musical de Dino, e todos os discos do Jacob do Bandolim, especialmente “Vibrações”, o último do artista, no qual o violão de sete cordas tem grande destaque.
Filipe procurou Dino, o mito do violão de sete cordas. A lenda dava aulas em dois lugares: na Casa Oliveira de Música, localizada desde 1948 no Largo da Carioca, no centro do Rio de Janeiro; e no Bandolim de Ouro, que na época funcionava na rua Marechal Floriano, também conhecida como Rua Larga de São Joaquim ou Rua Larga, logradouro situado entre o Morro da Conceição e a Avenida Presidente Vargas, no centro do Rio de Janeiro, segundo Filipe “um lugar muito interessante, com muita história em volta”.
O músico, que já tocava profissionalmente, foi à Casa Oliveira, onde Dino dava aulas terças e quintas-feiras, sabendo que a lenda do sete cordas não gostava de dar aulas desse instrumento para quem já tocava. Dino gostava de ensinar, violão de seis cordas para iniciantes, de preferência para quem ainda nem soubesse afinar o instrumento. Nessa ocasião, era comum entre os músicos “esconder o leite”. “Quando um novato ficava olhando um violonista de regional tocar, eles viravam o braço do violão, para não mostrar como estavam tocando. Era uma mentalidade competitiva que os fazia pensar que ‘não podiam criar uma cobra para serem picados’. Nesse ambiente, que também incluía muito de vaidade, o receio era de ensinar os caras que depois pegariam os trabalhos deles”, contou o músico revelando uma cena diferente da atual em que os músicos costumam trocar muitas informações.
Filipe foi na Casa Oliveira, esperou a aula de um aluno acabar e encontrou o mestre para quem manifestou seu desejo de aprender o instrumento. “Você já toca, rapaz?”, perguntou Dino. “Um pouquinho”, respondeu Filipe, embora já tocasse profissionalmente. “Então pegue aquele violão, e vamos ver o que é que você está tocando”, mandou Dino já com o violão nas mãos e começando a solar uma melodia simples de um samba. “Toca aí”, ordenou Dino para Filipe, que prontamente o atendeu passando a acompanhá-lo com o violão que havia sido indicado pelo professor. Filipe pegou o tom e foi harmonizando, quando, no meio do lance, Dino berrou: “Para! Para!”. Filipe pensou, abraçando o braço do violão: “Meu Deus, que merda que eu fiz?”. E o mestre prosseguiu: “Você já sabe tocar!”.
Filipe insistiu, já sabendo que esse era o sinal de que não seria aceito como pupilo. “Tá bom, mas eu queria ter aula com você…”, tentou sem conseguir nem esboçar o início de uma justificativa e foi interrompido pelo professor: “Mas você quer aprender o quê?” Filipe explicou que estava em busca de se aprimorar, tocar melhor do que tocava e que gostaria de aprender “baixarias”.
O tempo já estava ruim e piorou. “Baixarias? Baixarias? Baixarias são escalas maiores e menores, melódicas e harmônicas. Tem um método do Rodrigues Arena, com dez volumes; estuda ele, mas não vou te dar aula”, disse vigorosamente Dino a Filipe, que chegou a comprar o método, escrito por um violonista argentino clássico, mas não passou do primeiro volume.
Três anos depois desse primeiro encontro, Filipe resolveu voltar a procurar o mestre, no mesmo local, em busca de aulas, pensando que Dino não iria se lembrar dele. Além disso, se Dino pedisse para Filipe tocar, seu plano era tocar errando tudo. Aguardou um aluno sair e, da mesma maneira que antes, entrou e disse suas intenções. Dino olhou para Filipe e soltou: “Você já esteve aqui. Você já sabe tocar!”. Para Filipe, a frase funcionou como um “xeque mate” e concluiu que jamais teria aulas com Dino.
Mais três anos se passaram e Felipe, que já havia desistido das aulas com Dino, estava no Bandolim de Ouro, comprando cordas e acessórios, como as famosas dedeiras “fabricadas com sucata de porta de trem japonês, moedas de níquel plainadas e até cafeteira de inox antigas, que o falecido Julinho cortava em chapas”, quando aconteceu o inesperado.
Filipe via Dino no local, mas nem chegava perto do mestre. Julinho, o homem das dedeiras, também era músico e dava aulas de cavaco, dividindo a mesma saleta, no Bandolim de Ouro, com Dino. Em um final de expediente, com a loja quase fechando. Filipe entrou para comprar uma corda e viu Dino ao lado de Julinho, no térreo do estabelecimento. Não se conteve, chamou Julinho de quem era conhecido e falou sobre sua vontade frustrada de ter aulas, com o mito das sete cordas. Julinho explicou o que Filipe já sabia: Dino só gostava de ensinar quem não sabia. Entretanto, sensibilizado com a situação, Julinho aproximou-se de Dino e apresentou Filipe como um fã que queria ter aulas. Dino começou a fechar a cara e já ia dizer que não, quando Filipe foi salvo por uma balconista, de quem só não lembra o nome. “Era uma senhora que devia regular em idade com o Dino. Gordota, usava um cabelo pintado de loiro, com um coque achatado no alto da cabeça. O batom era cor de carmim, com o contorno do lábio desenhado por cima. Foi ela quem se aproximou do Dino e disse que eu era freguês da loja há muitos anos, coisa e tal, antes de pedir para me dar aulas. Acho que ele devia gostar dela, pois deu um tapa no meu ombro e disse: ‘É garoto, quem tem padrinho não morre pagão’.”
A convite do mestre, subiram para a saleta usada como sala de aula para Dino consultar se havia algum horário disponível. Dino abriu o caderno com a grade de horários e passou a olhá-lo fazendo um ar de suspense. Entrevendo um monte de horários disponíveis, Filipe segurou a onda e permaneceu em silêncio até que o professor disse: “O único horário vazio é segunda-feira, às 9 horas da manhã”. Filipe respondeu em looping: “Eu, posso. Eu posso. Eu posso…”
Filipe teve aula com Dino durante quase um ano. Aprendeu muitos choros de João Pernambuco (1883-1944), Garoto (1915-1955) e Aymoré (1908-1979), entre outros. “Pouca gente soube que o Dino tinha um repertório considerável de choros para violões, no qual ele solava tudo. Não era só de acompanhar.”
Segundo Filipe, que colheu a informação com Dininho, filho de Dino, muitas vezes o mestre das sete cordas estudava músicas em tons esdrúxulos. “Aqueles que só tem cordas presas como ré bemol, fá sustenido e si maior. Ele estudava muito para se preparar e tocar com qualquer cantor, em qualquer tom. Além disso, ele estudava escalas com acordes alterados, como o Jacob do Bandolim. O Jacob tinha aquela coisa do nacionalismo, mas é sabido que ele estudava temas de jazz. O Dino foi um dos primeiros músicos de regional que aprendeu a ler e escrever música. Ele tocava em shows, gravava, viajava tocando, mas quando chegava em casa ainda estudava. Era muito aplicado.”
As aulas prosseguiram com Filipe se dedicando e levando a lição de casa feita, fosse um exercício de técnica, uma música ou uma frase. A dedicação e desempenho fez com que Filipe ganhasse o apreço de Dino. Filipe tocava no domingo à noite, em Niterói, mas não atrasava para as aulas de segunda-feira, às 9h.
Contudo, muitos trabalhos apareceram e começaram a impedir que Filipe frequentasse as aulas com afinco. Abandonou-as durante um período para, depois de alguns meses, retornar e estudar por mais um período de dez meses com o mestre.
“O Dino me contou que quem o fez dar aulas foi o Jacob do Bandolim. Pouco antes de morrer, o Jacob o levou na Casa Oliveira e disse que ali havia um lugar para dar aulas. Ele aceitou e anos depois, quando o trabalho escasseou, o Dino também passou a dar aulas no Bandolim de Ouro, segundas, quartas e sextas-feiras ”, contou o músico.
LIÇÕES DO MESTRE
A maior lição que Filipe teve com o mestre foi aprender o sentido de concisão: “Tocar as ‘baixarias’, frasear na hora certa, não sair tocando indiscriminadamente”. Normalmente as frases do violão de sete cordas acontecem nos intervalos da melodia solista, nos intervalos da voz. “Você toca naquele buraco, é como se o violão ajudasse a empurrar a harmonia por evidenciar a passagem de um acorde para outro. Claro que tem outras funções, como a função rítmica e de condução, por exemplo, mas quando se faz um frase, em geral se está nessa situação. Mas, para o Dino, o importante era saber o contexto da música. Em outras palavras, ele quis me dizer que nenhuma frase é gratuita. Toda frase faz parte de um contexto e, se o violão de sete tem esse sentido de contracanto, ele precisa dialogar com o solista, com uma melodia que já existe.”
Filipe aprendeu que, dependendo do contexto musical, o violão de sete cordas deve se portar conforme algumas regras. Se o instrumento for tocado solo, haverá um apoio maior na harmonia. Quando o instrumento é tocado em um regional, com cavaquinho, pandeiro e outros instrumentos de percussão, fica-se livre, à vontade. Se aparece um instrumento de sopro agudo ou um bandolim, deve-se tocar menos, mas com mais liberdade, porque esses instrumentos estarão fraseando em outra região, outra frequência. Mas se há um sax tenor ou um trombone, que são instrumentos que fraseiam na região do violão de sete cordas, há de se prestar atenção, saber se colocar melhor. E se há um baixo acústico ou elétrico, um diálogo se estabelece entre os dois instrumentos.
Uma piada resume bem o que Filipe aprendeu e adotou para o seu som de violão. Um guitarrista toca 20 anos em um bar e nunca faltou. Um dia precisou faltar e enviou um de seus alunos para substituí-lo. Mais jovem, o garoto foi ao bar e estraçalhou a guitarra, tocando muitas notas, frases e o escambau. Na semana seguinte, o guitarrista veterano retornou ao bar para tocar e ouviu do proprietário do estabelecimento: “Escuta, porque você não faz como o seu aluno que toca um monte de notas, que dão o maior efeito e fez dele o maior sucesso?”. O veterano respondeu: “Ele toca essas notas todas porque ele ainda está procurando. Eu já achei.”
Segundo Filipe, ninguém escrevia partituras para Dino, ele tocava improvisando. Era um virtuose que tocava com muita consciência, propriedade e bom gosto. O último show realizado por Dino fez parte de uma série dirigida por Filipe em 2003 para o CCBB (Centro Cultural Banco do Brasil), “Sete Cordas- Um Violão Brasileiro”, em homenagem aos 85 anos comemorados pelo mestre. A série incluía outros exímios violonistas de sete cordas: Walter Silva 7 Cordas, Swami Jr., Mario Eugênio, Jorge Simas, Luizinho 7 Cordas, Zé Barbeiro, Yamandú Costa, Rogério Caetano e o próprio Luís Filipe de Lima. Contudo, a apresentação de Dino foi só com ele e o Conjunto Época de Ouro. “Na ocasião, ele já não desempenhava tanto. Ele tinha uns lapsos. Por exemplo, ele pegava um choro como ‘Noites Cariocas’, em sol maior, e no meio começava a tocar em ré. Ele mudava o tom, mas de qualquer modo era o Dino tocando.”
MULTIARTISTA EM AÇÃO
Filipe é ator, diretor musical de peças de teatro, violonista, compositor, jornalista, mas há muito sua ocupação maior é a direção musical de shows. “Já perdi a conta de quantos já fiz, só para o CCBB foram 16 séries de shows, que idealizei e dirigi”, disse o proprietário da empresa de produções artísticas Sete Cordas Empreendimentos Culturais, onde, além de empresário, atua na concepção, pesquisa, roteiro, direção geral, direção musical, “e ainda sirvo cafezinho, além de dar um sorriso, se precisar. Não posso perder esse emprego”, completou rindo.
Entre os projetos de Filipe que ficaram conhecidos está “Toca Raul” (2013), reunindo nomes fortes da MPB, como Zélia Duncan e Lucas Santtana; BNegão e Letuce; Zeca Baleiro, Chico César (substituindo Baleiro) e Katia B; Marcelo Nova e O Terno, além de Vivi Seixas, filha do Maluco Beleza que pilotou picapes tocando discos do pai. O projeto teve muito alcance, com shows realizados em espaços públicos, em São Paulo, Minas e Brasília, alcançando entre 25 e 35 mil pessoas por apresentação.
Contudo, “Toca Raul” é um ponto fora da curva, pois Filipe geralmente faz espetáculos mais ligados ao samba. Entre outros do gênero, trouxe para os palcos as obras de Lupicínio Rodrigues, Ismael Silva, Noel Rosa e Carmem Miranda. “Sassaricando”, outro espetáculo dirigido por Filipe, completou dez anos de palco no dia 25 de janeiro, com mais de 500 apresentações. E a festa não tem hora para terminar. “Logo, logo vamos reestreiar no Sesc Tijuca e em Niterói”, disse o artista que já apresentou o musical em Portugal.
Como produtor de discos, Filipe destaca os dois últimos trabalhos do cantor Pedro Miranda, “Pimenteira” (2009) e “Samba Original” (2016). Quando produz discos, Filipe também se desdobra em muitas funções. “Em geral faço tudo, de ponta a ponta. Desde pensar a concepção do disco com o grupo ou o artista, elaborarmos a história que se está querendo contar, além da pesquisa de repertório. Procuro não ser invasivo. Ofereço depois de procurar entender que figura é o artista, para eu poder oferecer mais possibilidades de escolha.”
Entre outros discos, Filipe produziu os três CDs do cantor e compositor Oswaldo Gusmão, além dos CDs do violinista francês radicado no Brasil, Nicolai Krassin.
PROJETOS FUTUROS
Vários são os nomes de brasileiros que Filipe gostaria de ver e ouvir em musicais. Entre eles, o de Haroldo Barbosa (1915-1979), humorista, jornalista e compositor; Luís Peixoto (1889-1973), letrista, dramaturgo, poeta, pintor, caricaturista e escultor; além de Cacaso (1944-1987) poeta, letrista e professor universitário. “Esses são os três primeiros nomes de uma lista muito grande. Há muito para se fazer e inventar a partir do material que essas pessoas tão ricas e interessantes nos deixaram.”
Para o músico e diretor de espetáculos musicais, em se tratando de musicais, atualmente temos de tudo. “A produção de musicais no Brasil é muito irregular, em vários aspectos. Apresentam coisas boas e ruins. Mas de qualquer forma o que podemos celebrar é que existe um avanço, sobretudo em tudo que diz respeito à técnica. Hoje temos atores preparados, com formação em interpretação, canto, dança, e alguns que tocam instrumentos. Dos anos 1970 para cá, um leque de oportunidades se abriu também para os músicos, diretores musicais e arranjadores que passaram a entender que uma coisa é escrever para um disco, um show, e outra é escrever para servir à cena. Sem falar em avanços em termos de produção técnica, luz e áudio. Devemos isso a quem começou a produzir musicais no Brasil, remontando os espetáculos da Broadway. Com isso, os musicais brasileiros ganharam um impulso.”
Assista, a seguir, aos vídeos que o multiartista Luís Filipe de Lima e a atriz e cantora Lu Vieira gravaram com exclusividade para o Música em Letras. No primeiro vídeo, interpretam “O Sol Nascerá”, de Cartola (1908-1980) e Elton Medeiros. No segundo, interpretam “Folhas Secas”, de Nelson Cavaquinho (1911-1986) e Guilherme de Brito (1922-2006).