Sem Noção – “Amazônia Órbita”, por Caíto Marcondes
O Música em Letras convidou o percussionista, compositor e arranjador Caíto Marcondes para participar da audição às cegas do CD “Amazônia Órbita”, do compositor Dante Ozzetti, para a série Sem Noção.
Marcondes, 62, ganhou seu primeiro cachê aos 15 anos, substituindo o baterista de um grupo argentino que se apresentou no dia 20 de julho de 1969 em uma boate de Ubatuba. “Nunca esquecerei, pois foi o dia em que o homem pisou na lua”, disse o artista.
O músico já participou de vários discos. Em sua discografia oficial, Marcondes conta com cinco registros- todos esgotados-, mas que em breve estarão disponibilizados em plataformas digitais. São eles, “Porta do Templo”, gravado em 1995, nos Estados Unidos, com quarteto de cordas, trombone e percussão, e lançado na Europa e no Brasil em 1997; “Cineasta na Selva”, de 1998, trilha para cinema feita com o músico Teco Cardoso para o filme homônimo; “North Meets South”, gravado em 2001, em Nashville, que traz um duo de violino, com o norte-americano Tracy Silverman e percussão; “Auto Retrato”, disco solo gravado ao vivo, em 2004, no Espaço Cachoeira, em São Paulo, com a participação do público e das cantoras Mônica Salmaso e Marlui Miranda; e “Caíto Marcondes Trio”, com sua filha, a violinista Micaela Marcondes e o contrabaixista Daniel Amorim, registro realizado em 2015.
O artista recebeu o Música em Letras em seu apartamento, no bairro da Consolação, em São Paulo, onde já gravou, entre outros trabalhos, uma trilha para filme, com cavaquinho, violão, teclado, percussão e voz. “Aqui, tenho o básico para trabalhar com qualidade. Não tenho nem janelas antirruídos, mas já gravei muita coisa. Eventualmente, vaza uma buzina ou um som de ambulância, mas refaço a captação e tudo bem”, disse o músico.
O percussionista gosta de privilegiar a polifonia, com melodias bonitas e contrapontos, e demonstra apreço ao escrever trabalhos orquestrais. Entre eles, uma peça de três movimentos para pandeiro amplificado e orquestra sinfônica, com cerca de doze minutos, que escreveu de encomenda para a Jazz Sinfônica, executada com a participação do pandeirista Luiz Guello. Outra peça escrita por Marcondes para orquestra de cordas foi idealizada para o bandolim do instrumentista Daniel Migliavacca. Ambas ainda inéditas.
Leia, a seguir, as impressões de Marcondes sobre o novo CD instrumental “Amazônia Órbita” do compositor Dante Ozzetti, autor e arranjador de todas as músicas, que foi produzido por ele e Du Moreira e teve pesquisa rítmica e percussão realizada pelo trio Manari formado por Marcio Jardim, Nazaco Gomes e Kleber Benigno.
O disco foi gravado no estúdio Flap C4, por Luis Lopes e pelo técnico de gravação Vitor Cabral Cesar. A percussão foi gravada no estúdio APCE, em Belém (PA), por Assis Figueiredo; cordas, no estúdio Bocaina 72, em São Paulo, por José Luis Costa (Gato) e Gustavo do vale; engenheiro de mixagem, Ricardo Labaki; masterizado no estúdio Classic Master, por Carlos Freitas; fotos e projeto gráfico, Gal Oppido e Iago Ferrão. O disco é um lançamento da Circus Produções Fonográficas.
FAIXA 1 “LUNDU DO MARAJÓ”
“Tenho uma desconfiança de que sei de quem é esse disco, mas ainda não tenho certeza. Conheço essa linguagem que nos leva por uma viagem por outros caminhos, unindo o eletrônico com uma base muito tradicional e usando elementos de uma orquestra de câmara com violinos e um solo de clarinete de maneira muito interessante, com uma base percussiva. Isso remete muito a um Brasil do Norte. Essa mistura é muito interessante por usar elementos melódicos simples, mas de uma maneira muito elegante. Bonito trabalho.”
FAIXA 2 “BOI DE BRINQUEDO”
“Pois é, agora aparece um piano de maneira também interessante. O piano nesse contexto da leitura tradicional acaba sendo um elemento estranho. Vou explicar: o piano é um instrumento europeu de sala de concerto e não pertence a toda essa manifestação popular calcada em tradições do que chamo de música espontânea, porque não gosto muito da palavra folclore, e essa música está sempre em movimento. Essa música espontânea aparece para cumprir um papel em uma comunidade e sempre tem um fundo ritualístico. Geralmente, esse tipo de música é uma manifestação de rua. Por isso eu digo que o piano é um som estranho aqui, mas ele é muito bem incorporado, assim como os elementos eletrônicos inseridos com muito bom gosto o que nos dá uma impressão extraterrena como se um disco voador estivesse planando e assistindo a cena.”
FAIXA 3 “DANÇA DO MARAMBIRÉ”
“O músico desse disco, que ainda não sei com certeza quem é, deve ter ouvido bastante Tom Jobim com os arranjos do Claus Ogerman. Engraçado, pois eu estava viajando nessa música, que é muito bonita, e apesar de não ser um profundo conhecedor de ritmos senti um toque de marabaixo [ritmo de origem africana realizado pelas comunidades negras do Amapá] misturado ao clima do disco “Urubu” do Tom Jobim. Tudo muito bonito e bem arranjado. Acredito que exista nessa faixa, com ritmos do Norte, uma releitura das obras orquestrais do Tom Jobim, que usava o samba e o baião de uma forma muito estilizada. Só que o mais importante é salientar que essa é uma releitura que aparece com novas propostas e não uma simples repetição; tudo é acrescido de novas informações. Esse é um caminho muito estimulante para a música de hoje. ”
FAIXA 4 “SAMBA DE CACETE”
“A beleza do fagote abrindo essa faixa é demais. Uso bastante esse instrumento em minhas escritas orquestrais também, porque ele tem um som que é, ao mesmo tempo, melancólico e de uma leveza e ironia únicas. É um timbre que carrega características muito interessantes. O que mais me surpreende é o virtuosismo, que não está em melodias cheias de notas, coisa muito recorrente em músicos instrumentais hoje. O virtuosismo aqui está na disposição desses elementos, muito mais do que em cascatas de notas. Tudo é muito simples e transparente do ponto de vista melódico e extremamente agradável. Me parece ser um disco cinematográfico.”
FAIXA 5 “LUNDU INDÍGENA”
“Essa faixa traz um Brasil nostálgico, que começa com uma caminhada na mata, uma procissão. Muito interessante como a percussão vem conduzindo isso e depois, aos poucos, estabelece um diálogo com a ‘cama’ das cordas e o fagote, não tão como ator principal da cena, mas como mediador entre a flauta e o clarinete. Esse trecho da música é muito bonito, conduz a gente através de algo parecido a uma procissão. É como se estivesse indo para um evento festivo, com respeito religioso. Há nostalgia nessa música.”
FAIXA 6 “VAQUEIRO DO MARAJÓ”
“Que faixa bonita! Começou parecendo uma brincadeira de terreiro e de repente a flauta puxa e empurra para uma dobrada de ritmo muito boa e bonita, dando continuidade ao diálogo que já existia entre flauta, clarinete e fagote. O assunto do diálogo parece dar margem à discussão, mas sempre com uma grande concordância. Aqui se percebe uma melodia mais ligeira e ágil. Parece um jogo em que a bola está a cada momento com um instrumento. Interessante isso de não existir um ator principal na cena, existe uma distribuição de tarefas, o que torna a música bastante estimulante. Esse é um caminho bom, vamos ver para frente se as cordas assumem a liderança em algum momento.”
FAIXA 7 “CARIMBÓ CHORADO”
“Agora acho que já sei de quem é o disco porque esse piano que introduz a faixa e que de alguma maneira conduz os rubatos, as partes mais lentas da música, posso estar enganado, mas tem o toque da minha amiga Heloisa Fernandes, que é uma grande pianista. Sou grande admirador do trabalho dela e o toque dela é muito particular e de muita personalidade. A faixa nos leva para uma modinha imperial muito bonitinha, mas ainda calcada em ritmos lá de cima do Brasil, embora traga uma leitura um pouco mais sulista. A percussão está sempre conduzindo dando a base rítmica, mas como percussionista que sou quero ouvir essa percussão se soltar mais um pouco. Gostaria de ouvi-la mais, mas vejamos mais para frente, quem sabe.”
FAIXA 8 “MAZAGÃO VELHO”
“Com essa música, reparei que, embora cada faixa tenha sua própria história e possa ser ouvida em qualquer sequência, também existe um caminho se você ouvir o CD na ordem. Esta faixa tem menos orquestração, com um grupo menor de instrumentos e os mesmos atores: fagote, flauta, piano e clarinete que dialogam entre si, mas o interessante é como o disco vai ficando mais dançante. Há um aumento de densidade rítmica. Começa contemplativo, com um pouco de suspense, mas vai se tornando bem mais dançante.”
FAIXA 9 “VERÃO DO MEIO DO MUNDO”
“Minha impressão se confirmou. Realmente o ritmo vem crescendo e acelerando. Temos no final dessa música um quase solo de percussão, que nos deixa com vontade de ter ouvido um pouco mais. Nota-se que são todos excelentes instrumentistas e o compositor vai construindo com pequenas frases que se repetem, em várias tessituras e timbres diferentes, dando um colorido muito bonito à música. Mesmo assim, sinto a necessidade de se soltar um solo aberto para a percussão, pois há todos os elementos para isso acontecer. O disco veio crescendo e tem o formato de um discurso muito bem construído. Estou ansioso para ouvir mais. ”
FAIXA 10 “KASEKO NENA”
“Uma alegria. Esse disco tem que ser ouvido. Dá vontade de voltar na primeira faixa porque parece que não fechou. Dá vontade de ouvir mais. Ele realmente tem um discurso ascendente e sem volta. O interessante é como ele vai enxugando os elementos e se tornando menos orquestral, enquanto o ritmo cresce.”
AVALIAÇÃO PONTUAL
INTÉRPRETES
“Ótimo.”
COMPOSIÇÕES
“Ótimo.”
HARMONIA
“Ótimo.”
RITMO
“Ótimo.”
MELODIA
“Ótimo.”
ARRANJO
“Ótimo.”
SOM (CAPTAÇÃO, MIXAGEM E MASTERIZAÇÃO)
“Ótimo.”
CONSIDERAÇÕES GERAIS
Nas considerações finais, Caíto Marcondes foi certeiro ao confirmar o autor da audição proposta pelo Música em Letras: “Esse disco tem uma escrita primorosa e só pode ser do Dante Ozzetti. Já era fã dele e agora fiquei mais ainda. Ganhei esse disco dele recentemente, em um sarau em que estivemos juntos, mas ainda não tinha ouvido. Estou até arrepiado, porque tive que ouvir com a maior atenção possível para realizar a missão que você me propôs e mergulhar totalmente nesse som me deu um prazer enorme. Infelizmente, hoje em dia, temos pouco tempo disponível para ouvir um trabalho desse peso e dessa profundidade com a atenção que ele merece. Como você me deu essa excelente oportunidade, vou ouvir esse disco mais vezes com outro ouvido. Fiquei bastante feliz com sua escolha.”
Perguntado se há lugar para essa CD no mercado o percussionista Caíto Marcondes respondeu: “Espero que haja. A nossa geração, minha e do Dante traz uma experiência profissional e de estudo de musica, séria. Por tanto temos que ser ouvidos e existe mercado para isso, embora tenhamos dificuldades principalmente na mídia que busca audiência. Está mais difícil você prender as pessoas durante muito tempo em um assunto só o que infelizmente provoca uma certa superficialidade na leitura de todas as coisas. As pessoas passam por cima sem perceber de trabalhos como esse trabalho que é gostoso de ouvir. Ele não é difícil de escutar. Você não precisa de um momento de paz para ouvi-lo, ele já traz essa paz e alegria. Ele tem em seu bojo várias sensações que você pode experimentar ouvindo-o como a nostalgia, sem ser piegas e propondo novas soluções. É um trabalho muito bem realizado. O Dante chegou em um ponto de domínio técnico e artístico muito grande e tenho certeza que isso só deve crescer. Esse é um disco que deve e merece ser muito tocado.”
AVALIAÇÃO DO CD “AMAZÔNIA ÓRBITA” POR CAÍTO MARCONDES
“Ótimo.”
CD “Amazônia Órbita”
ARTISTA Dante Ozzetti
GRAVADORA Circus
QUANTO R$ 30