Sem Noção – “Violinha Contadeira”, por Hélio Ziskind

Carlos Bozzo Junior
O compositor Hélio Ziskind, em entrevista ao Música em Letras (Foto: Carlos Bozzo Junior)
O compositor Hélio Ziskind, em entrevista ao Música em Letras (Foto: Carlos Bozzo Junior)

O Música em Letras convidou Hélio Ziskind, 61, para participar da série Sem Noção, que realiza audições às cegas de discos recém-lançados no mercado brasileiro. Compositor integrante do grupo Rumo, Ziskind teve muitos personagens e histórias embaladas por suas canções em diversas atrações para o público infantil, como as séries de TV “Castelo Rá-Tim-Bum” e “X-Tudo”, além de vários discos autorais para crianças. O artista ouviu o CD “Violinha Contadeira”, do violeiro e contador de “causos” Paulo Freire.

Ziskind, recebeu o Música em Letras em seu estúdio de gravação, ontem de tarde, no bairro do Sumaré, zona Oeste de São Paulo, para a audição às cegas proposta. Como “em casa de ferreiro o espeto é de pau”, o compositor ouviu as oito faixas do CD em seu carro. “Estamos com um computador novo, e os novos não trazem cd player acoplados”, disse Ziskind que faz show gratuito para o público hoje, Dia da Criança, no Sesc Bom Retiro, em São Paulo.

Ziskind toca guitarra e canta no show de hoje ao lado de Mario Aydar Manga (guitarra), Tiago Costa (teclado), Ivan Rocha (bateria), Sidnei Borgani (trombone) e Luciano Vieira (contrabaixo).“Vamos mostrar algumas músicas do repertório de um disco que está sendo produzido, mas sem previsão de lançamento”, falou Ziskind que deve interpretar, entre outras, “É seu, é meu, é nosso”, “Olhando pro Céu”, “Avó Avô”, “Valsa das Pulgas” além de, “Octopus Garden”, de Ringo Star – em uma versão traduzida para o português -, e “Refazenda” de Gilberto Gil.

“Estou com uma coceira de ir quebrando aos pouquinhos essa cerquinha da música infantil. Eu queria estar na música popular, eu não queria estar na música infantil”, falou rindo o artista que passa a incluir em seu repertório músicas que não foram pensadas para crianças, mas que, segundo o artista, são possíveis de despertar o interesse delas por alguma razão. “Vamos ver como elas aceitam essa ideia de um relógio das plantas marcando o tempo contida em ‘Refazenda’. No disco novo, devo incluir ainda ‘Rouxinol’, do Gil e do Mautner”. Cantigas de roda de outros CDs de Ziskind serão relembradas. Entre elas, “Banho de Gato” e “Minhoca Minhoco”. No total, 18 músicas devem acolher adultos e crianças.

A discografia oficial de Ziskind inclui “Meu pé, meu querido pé”, “Cantigas de Roda”, “Trem Maluco”, “O Gigante da Floresta”, “O Elefante e a Joaninha” e “Coração de cinco pontas”, com canções compostas por ele lembrando a história do São Paulo Futebol Clube. Há ainda quatro CDs produzidos por Ziskind com o repertório de músicas do programa televisivo “Cocoricó”.

Há cerca de dois anos, Ziskind se enfurnou no estúdio produzindo material novo, mas sem fazer show. Esse é o primeiro depois dessa pausa. “Foi um tempo para dar uma parada, desativar as velhas idéias e elaborar um novo show”, contou o artista que paralelamente realizou um trabalho para o Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro, que inclui alguns áudios-guias para crianças, adultos e deficientes visuais.

Leia, a seguir, as impressões de Ziskind sobre “Violinha Contadeira”, disco de Paulo Freire que traz dez músicas (duas de domínio público) e “causos” escritos por Paulo Freire, também responsável pela produção do CD da gravadora Tratore.

O disco foi gravado e mixado por Mário Porto, no Estúdio do Mário, com exceção da faixa “Rairu e Karo Sakaibo”, com sound design e mixagem de Nelson Pinton, gravado no Vitrola Digital Studio. Bateria e baixo nas faixas “Balão Vermelho” e “A Véia”, percussão nas faixas “Doce, não Doze” e “Curupira e os Passarinhos”, foram gravadas por Gustavo do Vale, no estúdio 185; guitarras e efeitos eletrônicos em “Mapinguari e o Capetinha” foram gravados por Marcel Rocha no estúdio Elektro Drama Studio; masterização por Homero Lotito, no estúdio Reference Master; design gráfico e ilustrações de Eleusinha Freitas/DEMACAMP, fotos de Élcio Paraíso/BENDITA.

FAIXA 1 “A Véia”, domínio público

“Musicalmente é legal. Não é uma canção que convida a criança, mas ela é engraçada e pela história com animais vai pegando. Agora, hoje em dia você falar ‘a véia’ fica difícil. É engraçado ter esse tipo de humor com os animais, mas eu já não consigo falar ‘a véia’, hoje.”

FAIXA 2 “Curupira e os Passarinhos”, Paulo Freire

“É uma contação muito bem feita. Um tom de voz que fala de igual para igual com a criança, com o cara fazendo todos os personagens e todo o cenário. A história em si é muito legal. Emendar o fim da história com o começo dela é muito divertido.”

FAIXA 3 “Doce não Doze”, Paulo Freire

“Uma brincadeira de igual para igual, mas que não facilita nada para as crianças participarem da música. Elas vão pegando um jeito engraçadinho de falar brincando com a entonação da música. Isso é legal pra caramba. Desconfio que o disco seja do Paulo Freire, mas nunca o vi contando história. Sei que ele conta, mas não sei se é ele. Pode ser ele ou um violeiro desse tipo. E a viola é muito boa.”

FAIXA 4 “Rairu e Karo Sakaibo”, Paulo Freire

“Essa eu achei mais bobinha. Esse negócio de bonitinho e feinho com criança? O que é feio para criança, né? Essa coisa de conversarmos com as crianças sobre os mitos de fundação do mundo, do nascimento das coisas…eu estou mais ligado numa visão astronômica mesmo. Pensar as estrelas. A gente vê entrevistas com astronautas e praticamente 100 % deles resolveram ser astronautas quando tinham oito anos de idade, por conhecerem alguém que gostava de olhar paras as estrelas e falar sobre aquele negócio todo. Acho bacana esse negócio do folclore, mas acho muito lindo o que acontece na nossa época, de ter uma visão sobre o espaço. Essa coisa sobre a aventura das ondas gravitacionais é uma coisa muito linda, que está acontecendo. Então da minha parte vou sempre puxar para esse lado. Achei a história dessa música meio desenganchada.”

FAIXA 5 “Baião Vermelho”, domínio público

“Esse estilo dele não é muito fácil. Muitas canções têm essa raiz popular, mas parece que não expressam mais o sentimento de alguém. Parece uma casa onde já morou gente, a casa existe até hoje, a gente vê que é uma casa, que está lá, mas a gente entra e não sente muito qual é a expressão daquele lugar. Nem por isso ela é ruim ou feia. O convívio com essas levadas sempre traz alguma coisa boa, mas propor uma coisa dessas para uma criança acho um pouco distante. Num certo sentido, é parecido com as cantigas de roda que a gente cultiva e já não significam muito. Vamos comparar, por exemplo, com a música ‘Cuitelinho’, em que transborda uma certa emoção. Mesmo que a gente não consiga descrever exatamente qual é, ainda tem um resquício de uma vontade de dizer. Se estivesse numa parada dessas, ficaria preocupado e sairia procurando um gancho de onde eu pudesse trazer mais vida, mais intensidade. Não acho que seja ruim, mas um pouco desinteressante.”

FAIXA 6 “O Sapo e o Veado”, Paulo Freire

“É legal essa relação dos cantos, com a viola fazendo os dois animais. Isso de o mesmo elemento fazer as duas coisas é muito legal, espicha a cabeça da criança de um lado para o outro. Sem dúvida, a entonação da contação é muito competente. Tem umas entonações muito típicas e divertidas, que vão mantendo sempre a história para cima. Isso é muito bem feito. Por outro lado, essa coisa de a gente contar histórias de mentira, de enganação, hoje em dia está ficando complicado. Se você se apoia no folclore para falar isso, vá lá. Mas se for contar com uma voz contemporânea, urbana, histórias sobre um enganando o outro dá em uns lugares difíceis para as crianças . Hoje, essa coisa da ética das histórias é um assunto muito forte. Um exemplo é a história “João e o Pé de Feijão”. O moleque sobe pelo pé de feijão, rouba os ovos, rouba a galinha, rouba a arma, rouba tudo e ainda fala: ‘Foi ele quem roubou do meu pai’. Ele queima tudo, gasta tudo e no final fica sem nada. Como é que vai se contar essa história hoje? Esse negócio é difícil hoje em dia. É divertida essa história, mas ela tem esse limite, o limite da esperteza que é um conceito bem complicado para a gente levar a diante. Para quem está ligado no negócio de contar história a pista não está simples, não. Está bem esburacada para se tomar decisões.”

FAIXA 7 “Pato Pinta”, Paulo Freire

“Legal essa ideia das rimas nonsense. Parece uma coisa circular que colhe umas piadas de rimas com números. E também tem um negócio da guitarra com a viola. Engraçado como a viola está entrando aos poucos como um instrumento que convive bem com os outros, em qualquer tipo de gênero. É uma coisa que podia se expandir bem mais na música brasileira. Penso, por exemplo, na função do violão de aço nos Beatles. É um instrumento básico para tudo. Tudo nasce no violão de aço, com milhões de jeitos de colocá-lo na música. A viola ainda vai passar por essa transformação, abrir mão desses toquinhos típicos do mundo onde ela nasceu e ganhar espaço. Ela é um instrumento ao mesmo tempo muito delicado e muito poderoso harmonicamente. Tem quem toque heavy metal com ela e isso é muito bom também. A gente ainda vai assistir a muitos capítulos da história da viola.”

FAIXA 8 “Mapinguari e o Capetinha”, Paulo Freire

“É uma história bacana com o diálogo de dois instrumentos. É difícil aproximar a natureza dos instrumentos. A guitarra destorcida parece um borrão perto da viola. Legal a história de passar de um bicho para outro. É legal isso de ir trazendo a história para dentro do instrumento. Mas se dermos uma espremida, vamos ver que a música está sendo tratada como uma ilustração para a história. Não só nessa última faixa, mas no trabalho como um todo, é uma música que já existe e vai sendo aplicada na narração, vai em paralelo. No sentido de a música trazer a criança ou o ouvinte para dentro do tempo da história fica um pouco superficial porque é meramente ilustrativo. Não chega a ser algo em que música e história se alimentam uma da outra. Num certo sentido, isso se torna cansativo. Porque a gente se cansa de seguir estruturas em paralelo. É raso, ainda, no sentido da construção. ”

O compositor Hélio Ziskind no seu carro, ouvindo o CD “Violinha Contadeira”, de Paulo Freire (Foto: Carlos Bozzo Junior)
O compositor Hélio Ziskind no seu carro, ouvindo o CD “Violinha Contadeira”, de Paulo Freire (Foto: Carlos Bozzo Junior)

AVALIAÇÃO PONTUAL

INTÉRPRETE

“Ótimo.”

COMPOSIÇÕES

“Bom.”

HARMONIA

“Se dissermos que a harmonia não é boa é porque achamos que se fosse mais complicada seria melhor do que uma harmonia mais simples, mas não se trata disso. A harmonia tem uma capacidade gigantesca de carregar o tempo dentro dela e nesse sentido o músico trabalhou com o tempo pré-existente. Às vezes, ele não usa harmonia. Vai no timbre direto e funciona. Acho que a avaliação da harmonia não é relevante para esse universo.”

RITMO

“Bom.”

MELODIA

“Bom.”

ARRANJO

“Tem momentos interessantes e de delicadeza, que chamam a atenção para os sons no arranjo. É legal, mas é estático. O arranjo entra, se apresenta e acaba. A próxima coisa que começa não tem a ver com ele, é algo que vem e se justapõe. Essa ausência de transformação faz com que a gente vá se cansando dos elementos, quando eles se repetem. Estou falando de um ponto de vista técnico. Porque se você estiver numa roda de crianças e contar essas histórias, vai dar certo também. O que eu não sei é se a criança diante de um IPad vai buscar isso para ouvir. Regular.”

SOM (CAPTAÇÃO, MIXAGEM E MASTERIZAÇÃO)

“O som é bom, mas não tem coragem. Os fortes são amenizados, está tudo gravadinho, mas na hora de dar ‘punch’ no negócio, recua. Bom”

ASPECTO LÚDICO

“Ótimo.”

CONSIDERAÇÕES GERAIS

“Eu teria escolhido outro caminho. Mas não acho o trabalho feio, ruim ou tosco. Tem seu mérito. É escudado pela ideia do folclore. Se você tirar o folclore e for enfrentar a história de mão limpa, fazer uma trilha para ela, precisaria descer mais na história. A sobreposição de sonoridades é bem interessante também. Aquele eco bem estranho, dentro da barriga do cara, é interessante, mas são estados estáticos. Não é uma coisa que se transforma em outra. É como se fosse um desfile de estados, mas não é cinema. Hoje em dia vivemos no cinema. No cinema, as coisas se transformam, se misturam, se contaminam. Então, por oposição, uma criança poderia achar interessante, algo que ela nunca ouviu, mas tem uma certa aridez na construção que produz um certo cansaço. Está aquém de onde eu acho que poderia chegar. ”

CD REVELADO

Após a audição às cegas, foi revelado a Ziskind que “Violinha Contadeira” é disco do violeiro e contador de “causos” Paulo Freire, assim como todas as outras informações sobre o disco, seus participantes, ficha técnica, capa e encarte.

Diante das revelações, Ziskind complementou sua avaliação. “O Paulo é um cara muito verdadeiro e foi nadar num rio longe de onde ele nasceu. Essa busca dele nesse tipo de raiz mostra que ele cultiva a viola e cultiva essas histórias, mas você nota a distância entre a voz que canta e a voz que conta, que fala. Quando ele vai cantar no meio da história é uma outra voz que entra. O Paulo contador tem um repertório de entonações, gestos e intensidades muito desenvolvido. Ele não é um caipira narrando. Tem uma antropologia nessa contação dele. Agora, ele é mais bossa nova no canto e fica longe dos caras que cantam. Os caras que cantam mesmo, cantam mais forte. O Paulo traz um valor com ele que não é de cantar tão forte e isso o coloca numas enrascadas, principalmente na hora que ele vai passar da voz que conta para a que canta. Para mim isso traz um questionamento sobre o lugar da música no meio da história. Porque a música é outra coisa. A música não é contação. Eu tenho muitas histórias cantadas, mas não contadas, faladas. Eu vou ter o mesmo problema que ele tem na passagem da voz que canta para a que fala. Existe uma distância entre cantar e falar porque, sem dúvida, a música está ligada à ideia de repetição. As músicas a gente repete, as histórias muito menos. E isso é um mistério. Somos capazes de ouvir o disco ‘Transa’, do Caetano, até hoje, mas você não vai ficar assistindo o [filme] ‘Amarcord’ do Fellini até hoje, apesar de ser o ‘Amarcord’ do Fellini. Quantas vezes você vai ver aquele filme na vida? Quatro? Mas discos você passa a vida ouvindo. Outra dificuldade é você passar da história para a música e da música para história. Dou muito valor à contação de histórias, que tem um lugar muito forte no mundo de hoje. É difícil você desenvolver um estilo, O Paulo é um vitorioso em muitas maneiras de falar, muitas entonações de serviço que ele tem para levar a história para frente, mas ainda não sinto uma coisa que fecunda história e música e gera um terceiro elemento, formado pelos dois juntos. Ainda acho que são dois mundos tentando se aproximar. ”

Perguntado se há espaço para esse disco no mercado, Hélio Ziskind respondeu: “Cara eu não tenho a menor ideia disso porque não conheço o mercado, não olho para ele e acho muito difícil responder. Por um lado, se você pensar no mercado como uma coisa genérica, que serve a muita gente, quase não tem sentido mais essa ideia. Porque ter um objeto cultural que sirva para muita gente é um acontecimento bissexto. É um cometa que passa na cultura, não se controla isso. O Paulo fazer o trabalho dele, que ele vê sentido e serve para pouca gente. Hoje há maneiras de você se comunicar com o público. Você reúne as pessoas, coloca-as à sua volta, acende a fogueira e as pessoas ficam te ouvindo. Então, o artista faz esse trabalho de acender a fogueira e ficar lá, porque você tem que ser constante nisso. As pessoas tem que aprender onde te achar, aí tem mercado. Não sei se gostaria de levar esse trabalho do Paulo de contação e repetir algumas vezes. O trato com o monstro, o mal e a esperteza nesse disco tem sempre uma escapada desses elementos. Isso não é muito para criança. É contado para elas. Espero que o Paulo não fique bravo, mas é um adulto brincando no mundo das crianças. ”

AVALIAÇÃO DE HÉLIO ZISKIND

“Bom”

Capa do disco “Violinha Contadeira”, de Paulo Freire (Foto: Carlos Bozzo Junior)
Capa do disco “Violinha Contadeira”, de Paulo Freire (Foto: Carlos Bozzo Junior)

CD VIOLINHA CONTADEIRA

ARTISTA Paulo Freire

GRAVADORA Tratore

QUANTO R$ 30

 

SHOW DE HÉLIO ZISKIND

QUANDO Hoje, dia 12 de outubro, às 16h

ONDE Sesc Bom Retiro, Alameda Nothmann, 185, Bom Retiro, São Paulo – SP, 01216-000, tel. (11) 3332-3600

QUANTO Gratuito