Rildo Hora e Cartola, cumplicidade musical em cena
O musical “Cartola – O Mundo é um Moinho”, que retrata vida e obra do cantor e compositor carioca Cartola (1908-1980), autor, entre outras, de “As Rosas Não Falam” e “O Mundo É um Moinho” e fundador do Grêmio Recreativo e Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira, estreia sexta-feira (9) próxima (só para convidados), no teatro Sérgio Cardoso, em São Paulo.
Com idealização do ator e produtor Jô Santana, direção e encenação de Roberto Lage, dramaturgia de Artur Xexéo, coreografia de Alex Morenno, além dos atores Flávio Bauraqui, Virgínia Rosa, Adriana Lessa e grande elenco, o espetáculo conta com a direção musical de um amigo de Cartola, o maestro Rildo Hora.
Rildo Alexandre Barreto da Hora, 77, o Rildo Hora é pernambucano de Caruaru e dono de vários atributos. Gaitista, violonista, cantor, compositor, arranjador, maestro e produtor musical, Hora ocupa lugar de destaque na história da música brasileira. Toca gaita desde os seis anos de idade, ocasião em que morava em Madureira, subúrbio do Rio de Janeiro. Estudou com o maestro Guerra Peixe (1914-1993). Foi “chapa” de Cartola (1908-1980) e tocou muito violão para o autor de “O Mundo é um Moinho” e para a divina Elizete Cardoso (1920-1990), entre outros artistas. Produziu discos para Antonio Carlos e Jocafi, João Bosco, Martinho da Vila, Maria Creuza, Luiz Gonzaga (1912-1989) e Zeca Pagodinho, entre tantos. Hora continua na ativa, compondo e produzindo, sempre transbordando vigor e musicalidade.
Filho de um dentista alagoano com uma pernambucana, Hora começou aprendendo com a mãe, por meio do piano, os princípios fundamentais da música, mas o violão até hoje é o seu maior mestre. “O violão é minha bíblia”, disse o maestro em entrevista ao Música em Letras, concedida no espaço onde elenco e músicos do espetáculo ensaiavam na última quarta-feira (31).
Leia, a seguir, sobre o espetáculo, os músicos, as músicas, e saiba mais sobre esse verdadeiro “homem-música” chamado Rildo Hora e seu fiel assistente Guilherme Terra, que prepara as vozes do elenco. Assista, no final do texto, a trechos em vídeo de um aquecimento vocal com os atores e partes do ensaio.
DE DENTRO DO “CARTOLA”
Cumprindo a temporada inicial, com 30 apresentações em São Paulo, antes de ir para o Rio de Janeiro no próximo ano, o espetáculo tem pesquisa realizada por Nilcemar Nogueira, neta (não biológica) do mestre Cartola e dona Zica (1913-2003) e diretora do Centro Cultural Cartola. “A Nilcemar junto com sua equipe fez a sugestão do repertório, encaminharam para o Xexéo [Artur, jornalista e escritor]e ele escreveu a peça toda”, disse Hora sobre as cerca de 30 músicas inseridas em 24 números musicais do espetáculo.
Dezoito atores, entre eles, Augusto Pompeo (Seu Sebastião, pai de Cartola); Eduardo Silva (Carlos Cachaça, parceiro do mestre Cartola), Adriana Lessa (Deolinda, a primeira mulher de Cartola); e Virgínia Rosa (Dona Zica, última mulher do compositor) atuam ao som de oito músicos. São eles: Guilherme Terra (piano, regência e assistente de Rildo Hora), Bruno Vieira (violão de sete cordas), Eduardo Brasil (contrabaixo acústico), Ricardo Berti (bateria), Leonardo Santiago (cavaquinho), Mauricio de Souza (sopros), Marcio Guimarães e Rodrigo Sanchez, nas percussões. “Em vários momentos da peça usei o estilo regional para os arranjos. De repente, entra um contraponto, em três vozes, geralmente uma em oitava, e uma diferente, no meio. É o que os chorões chamavam de a ‘gemedeira’ dos violões. Fiz isso para lembrar bem a sonoridade dos discos do Cartola, que era muito bem liderada pelo Dino [Horondino José da Silva, conhecido como Dino 7 Cordas (1918-2006)] no violão”.
Há dois meses, atores e músicos ensaiam com afinco, de segunda a sexta-feira. Os primeiros encontros reunindo elenco e músicos começaram há pouco tempo. No dia da entrevista, era a terceira vez, que elenco e músicos atuariam juntos. Perguntado se o fato de estarem a menos de dez dias da estreia, e de terem ensaiado juntos apenas três vezes, não era pouco para a monta do trabalho, Hora respondeu: “O tempo é suficiente. Estou muito contente com o rendimento dos atores, músicos e do Guilherme. Todos são muito talentosos e estudiosos. O Guilherme me ajuda e muito. Sou muito grato ao trabalho dele, porque além de amigo, ele é muito competente ao ensaiar e preparar músicos, cantores e os atores, além de fazer com que a relação do diretor musical com os músicos seja a melhor possível. É ele quem interpreta a minha ‘Constituição’”, falou rindo Hora.
O INTERPRETADOR DA HORA DE HORA
O interpretador da “Constituição” de Hora, ou seja, o preparador vocal e assistente de direção Guilherme de Freitas Hansen Terra de Souza, 33, tem larga experiência na área. Paulistano, Terra é formado em piano pelo conservatório Gomes Cardim e, em regência e composição, pela UNESP (Universidade Estadual Paulista). O músico estreou com o espetáculo “Comunitá- O Musical”, antes de integrar “Sweet Charity”; regeu “Noviça Rebelde”; fez parte de “Zorro”, “Crazy for You”, “Antes Tarde Do Que Nunca”, “Wicked”, “O Palhaço e a Bailarina” e “A Vingança”, entre outros. Em Cartola também foi responsável pelos arranjos vocais. “O Rildo fez os arranjos instrumentais, além de uma primeira direção com os cantores, dizendo como ele queria que as músicas fossem trabalhadas, fornecendo algumas especificidades de como algumas melodias deveriam ser executadas em suas interpretações. Em cima disso, fiz um trabalho de adequar as músicas às situações dramáticas do espetáculo.”
Segundo Terra, a música a que deu mais trabalho foi “Fiz por Você o que Pude”. “Essa música traz o momento em que Cartola desiste de escrever novamente um samba- enredo para a Mangueira, porque um samba anterior ganhou nota zero de um jurado. Esse é o único coro que desenhei, não com as vozes do personagens, mas como se fosse a voz da consciência do Cartola. Enquanto na música o clima é de aceitação de que o tempo dele já passou e que há um novo compositor no seu lugar, o coro entra atrás dizendo ‘Não Mangueira’, colocando toda a mágoa que está por trás disso. O mais difícil foi chegar nessa sonoridade, conseguindo essa neutralidade do coro, que representa um momento diferente do que é cantado dramaticamente durante o espetáculo.”
Das dificuldades encontradas durante o decorrer dos ensaios, Terra cita a heterogeneidade do elenco. “Tem gente que vem do teatro, do samba, do teatro musical e da dança. Tem gente de todos os lados. Houve um trabalho em conjunto com a direção musical e com a direção de movimento e coreografia para conseguirmos encontrar uma unidade sonora, de movimentação corporal e de presença cênica, com um tipo de interpretação bem específico.”
Se houve algum obstáculo musical a ser superado com atrizes, atores, músicos e cantores, Hora não soube afirmar. “Se houve, o Guilherme resolveu. Quando vim para ouvir, já estava tudo com o tom tirado e bem encaixado. O Bauraqui [Flávio, ator que interpreta Cartola] é um espetáculo como ator e cantor. Ele canta muito bem. Está sendo um Cartola perfeito.”
“AH, TOCA VOCÊ”
Do mestre Cartola, Hora tem várias lembranças. “Convivi muito com ele. Frequentávamos muito a casa do Sergio Cabral e estávamos sempre juntos quando rolavam aqueles shows contra a ditadura, em que ele e o Nelson Cavaquinho participavam como convidados. Nem digo que eles fossem engajados na luta, mas estavam lá como convidados dos intelectuais. Minha relação sempre foi muito boa com o Cartola porque nós éramos amigos de violão. Quem toca violão, tem um negócio, uma ligação com outro violonista. Eu gostava muito dos acordes dele e, modéstia à parte, ele também gostava muito dos meus. Tinha uma coisa boa que acontecia comigo e com o Cartola. Quando eu ia em sua casa para ele cantar uma música inédita, para ser mostrada e posteriormente gravada por algum cantor, ele fazia com que eu a tocasse no violão. Por exemplo, o caso de ‘As rosas não falam’, que a Beth Carvalho gravou. O Cartola passava para mim o violão e, na hora de gravar, ele dizia: ‘Ah, toca você’. Ele mandava eu tocar o violão e ele cantava. Tem um disco da Funart em que reproduziram uma dessas fitinhas em que ele está cantando e eu estou tocando violão. Ele gostava do meu violão.”
Hora é gaitista, com prêmio abocanhado, com apenas doze anos de idade, no Concurso das Gaitas Hering, na Rádio Mauá do Rio de Janeiro, no início dos anos 1950. Foi convidado a fazer parte do grupo de gaitistas do programa, mas o violão sempre foi seu instrumento de trabalho mais frequente. “Sou gaitista, mas em todas as orquestrações que faço, sempre tiro a harmonia base do violão. Na hora de distribuir para a orquestra, violinos, violas e violoncelos, as aberturas dos acordes, a distribuição das vozes podem ficar bastante diferentes do violão, mas ele é como se fosse a minha bíblia. Faço consultoria ali, nele, para ver se tem acento ou não na palavra. O violão é quem me diz.”
Perguntado sobre quem mais merece um musical, além de Cartola, Hora respondeu: “O Brasil tem gente muito importante. Tem o Garoto, Ismael Silva, mas a lista é muito grande porque a música e o país são muito ricos. Não vamos falar só das pessoas ligadas ao samba. Não nos esqueçamos do sul do país, com aqueles garotos tocando sanfona, como o Borguetinho; da música rural tão boa, com o Renato Teixeira. Pros lados do Nordeste também tem muita gente. A lista é muito grande. Mas vamos falar de samba? O grande Zé Kéti é um sambista espetacular, que ainda não teve o reconhecimento que merece e é o sambista favorito do Elton Medeiros e do Paulinho da Viola”, disse o maestro que também gosta dos novos talentos que apareceram na chamada geração de Cacique de Ramos, como Arlindo Cruz e Sombrinha, entre outros.
A dica do “homem-música” para quem for assistir ao musical “Cartola” é boa. “Quem for ao espetáculo deve comparar as composições do Cartola, com as dos grandes mestres da música internacional. Cole Porter, por exemplo. A conversa melódica do Cartola é de alto nível, do mesmo nível que a de um Cole Porter. E olha que estou me prendendo apenas a harmonia e melodia, porque a poesia também é incrível. Acho que o mestre, lá em cima deve estar tomando café com o Cole Porter e conversando de igual para igual, não vejo nenhuma diferença em se tratando de talento.”
Assista aos vídeos que o Música em Letras fez com os atores aquecendo suas vozes, além de um trecho do ensaio do espetáculo.
CARTOLA- O MUNDO É UM MOINHO
ARTISTAS Flávio Bauraqui, Virgínia Rosa, Adriana Lessa, Augusto Pompeo e grande elenco
ONDE Teatro Sérgio Cardoso, R. Rui Barbosa, 153, Bela Vista, São Paulo, tel. (11) 3373-7220
QUANDO De 11 de setembro a 31 de outubro. Sextas e segundas-feiras, às 20h. Sábados, às 20h; domingos, às 18h.
QUANTO De R$ 30 a R$ 100