Ela faz a cabeça das cantoras

Carlos Bozzo Junior
A cabeleireia Gil Almeida no salão onde trabalha (Foto: Carlos Bozzo Junior)
A cabeleireira Gil Almeida no salão onde trabalha (Foto: Carlos Bozzo Junior)

Gildete São Pedro de Almeida, 51, a Gil Almeida, é cabeleireira de artistas, modelos, atrizes e, principalmente, de cantoras da MPB.

Gil atende vários nomes da música nos mais diferentes locais- de residências a camarins, passando por estúdios e caminhões de trios elétricos-para deixar cabelos prontos, “montados”, e no ponto exato para ficarem bonitos quando “desmontam”. Tudo na maior discrição, pois foi essa atitude que lhe rendeu a confiança da seleta clientela. “Vou, faço meu serviço, ouço e falo só quando solicitada. Meu negócio mesmo é o cabelo dessas cabeças”, disse.

O Música em Letras esteve no salão onde Gil Almeida trabalha há 37 anos, no Jardim Paulista, zona oeste de São Paulo. Foi lá que Gil concedeu uma entrevista contando como é o trabalho de “fazer a cabeça” de estrelas da MPB. Entre elas, Rita Lee, Ivete Sangalo e Maria Gadú.

Leia, a seguir, trechos da entrevista e assista, no final do texto, ao vídeo em que Gil mostra, cantando, porque preferiu ser cabeleireira.

PARANÁ

“Meu nome é Gildete São Pedro de Almeida. Acredito que meu pai me deu esse nome porque ele tinha certeza que eu iria virar cantora de Axé. Eu adoro. Sou conhecida como Gil Almeida, mas hoje fico pensando que deveria ter usado ‘Gil São Pedro’, um nome mais forte, né?”, contou a cabeleireira que é Gil desde os tempos de Londrina, no Paraná, onde nasceu.

A mãe de Gil, Josefa Amália de Almeida, a dona Amelinha, 87 anos, nasceu em Jequié, na Bahia, foi para o Paraná e teve 17 filhos “com o mesmo marido”. Não contente adotou e criou mais oito. “Minha mãe batalhou muito para nos criar, e nos deu uma vida digna, sempre focada no respeito e no caráter”, contou Gil.

O pai de Gil, Cassimiro Pereira de Almeida, baiano de Itabuna, foi empregado de uma fazenda no Paraná e nela criava sua extensa prole. Era comum, nos finais de tarde, Cassimiro convidar amigos e, munido de uma sanfona, embalar o povo e a família com canções, de preferência as gravadas por Nelson Gonçalves (1919-1998). “Ele adorava alegrar o ambiente com música e nós também. Nessa época, não tinha televisão, telefone e lembro que isso acontecia em uma varanda, na parte de baixo da casa. Era tudo muito simples”, contou Gil.

Contudo, nem sempre a vida no Paraná foi um mar de rosas. “Teve um momento, ainda na minha infância, que passamos necessidade. Minha mãe teve que trabalhar em cinco serviços, dia e noite, para nos sustentar. Lembro de ir em terreno baldio procurar broto de xuxu e de abóbora para ela cozinhar com água e sal para comermos”, falou.

Cabeleireira de cantoras da MPB, Gil Almeida prima pela discrição (Foto: Carlos Bozzo Junior)
Cabeleireira de cantoras da MPB, Gil Almeida prima pela discrição (Foto: Carlos Bozzo Junior)

PRIMEIROS BOBS

Aos 7 anos, Gil deixou a fazenda e veio com parte da família para São Paulo. Foram morar em uma casa nas proximidades da Avenida Cupecê, zona sul da capital. “Todos trabalhavam para pagar as contas. Todos tinham uma responsabilidade a cumprir. A minha, era fazer a feira. Deixava para ir bem no fim, para pegar as ‘baciadas’.”

Quando Gil estava com 15 anos, os irmãos a incentivaram a trabalhar. “Como todos tinham suas ocupações, ficaram com medo de me deixar em casa sozinha e eu aprontar. Falavam que eu tinha que trabalhar, mas eu não achava vaga em nada”, disse Gil que acabou sendo indicada, por um dos irmãos, para trabalhar como assistente em um salão de cabeleireiro. “Eu não tinha prática nenhuma e tudo que a mulher me perguntava, era meu irmão que respondia. ‘Você sabe colocar bob?’, eu ia respondendo não e meu irmão dizia ‘sim’. ‘Sabe lavar cabelo?’ , eu quase dizendo não e ele só dizia ‘sim’. Sei que ele respondeu a entrevista toda com ‘sim’, e eu ia ficando tensa porque não sabia fazer nada daquilo”, contou Gil, que mesmo sem saber nada, ganhou a vaga no salão que funcionava na zona sul de São Paulo.

Sem destreza, a moçoila tentava colocar os bobs nos cabelos das clientes, mas eles teimavam em cair. “Tirem essa menina da minha cabeça. Ela não sabe fazer nada!”, diziam as mulheres, freguesas do salão, em que Gil trabalhava e adoecia. “Eu tinha enxaqueca atrás de enxaquecas. Todos os dias. Fingia que estava dormindo para não ir trabalhar. Mas não tinha jeito, minha mãe me arrancava da cama e me mandava ir.”

Como não era do ramo e temia perder o emprego, Gil era a primeira funcionária a chegar no salão e fazia uma faxina, antes de abrirem as portas. O gerente vendo seu empenho e esforço a escalava para desenhar números em cartazes de promoção, entre outras funções, no intuito de mantê-la empregada. Deu certo.

Gil Almeida em entrevista ao Música em Letras (Foto: Carlos Bozzo Junior)
Gil Almeida em entrevista ao Música em Letras (Foto: Carlos Bozzo Junior)

PRIMEIROS CORTES

Como assistente, Gil fazia escova, colocava bobs, aplicava tinta preparada por um profissional, mas não cortava. Contudo, foi aprendendo só de olhar. A garota, depois de passar o dia observando os profissionais cortando cabelos no salão, chegava em casa e aproveitava os muitos irmãos para testar o que havia aprendido por conta própria. “Treinava na cabeça de meus irmãos, mas sempre cortando menos. Esse é o segredo. Fazer sempre um dedo a menos, seja do que for” disse dando uma das suas regras de ouro como profissional.

Depois de um ano como assistente, o salão fechou. Gil sempre gostou de embelezar e ver o resultado “que deixa as pessoas muito felizes”. Não se abalou e buscou vaga em outro salão, dessa vez, na praça Roosevelt, no centro de São Paulo. Era uma unidade da rede Jacques Janine. Conseguiu a vaga e depois de quatro anos como assistente passou a profissional, no mesmo Jacques Janine, onde trabalha há 37 anos. “Sou cria deles. Tenho carreira solo, mas nunca deixei ou mudei de salão. A Janine [proprietária] sempre me apoiou muito. Devo tudo a ela porque fui abraçada como filha e para onde eles forem, eu vou.”

Atualmente, Gil atende na matriz da rede, na rua Augusta, de terça a sábado, salvo dias em que presta serviços para artistas como Ivete Sangalo, embarcando para alguma viagem ao lado da cantora.

Gil Almeida capricha no visual (Foto: Carlos Bozzo Junior)
Gil Almeida capricha no visual (Foto: Carlos Bozzo Junior)

NAS PASSARELAS

Cursos com nomes renomados do hairstyle como Orlando Pita e Alexandre de Paris, entre outros, foram frequentados por Gil, mas cursos profissionalizantes nunca tiveram sua presença garantida. “Eu ia, olhava e não gostava. Daí, nunca mais voltava”, disse Gil que é autodidata.

Conheceu Duda Molinos, que considera um “mestre”, e dele recebeu a dica de que estavam precisando de profissionais para trabalhar em desfiles. Gil se candidatou, agradou o mestre e trabalhou com êxito nessa área por 20 anos. Sua clientela passou a ser formada por atrizes e modelos. “Era a época dos desfiles da Phytoervas, do Morumbi Fashion. Tinha que ficar a postos porque havia muita troca de roupa e era muito estressante. Lembro que uma vez fiz um babyliss megafininho na Ana Hickmann, que estava com um cabelão crespo. Tinha dez minutos para resolver. Resolvi e vi que dali para frente podia trabalhar até em troca de pneu da Fórmula 1”, contou rindo a cabeleireira que penteou bailarinas do Teatro Municipal, durante um espetáculo, dispondo de apenas três minutos. “Voltavam dançando para o palco perfeitas, sem nenhum fio fora do lugar”, disse a experiente profissional que abandonou os cachos das passarelas.

CABELEIRAS FAMOSAS

Com a experiência dos desfiles, Gil passou a atender atrizes e modelos. No mundo da moda, mexeu na cabeça das belezas mais famosas, como Ana Beatriz Barros, Gisele Bündchen, Carol Ribeiro, Daniela Raizel, Mariana Bittencourt e Luciana Curtis, entre outras.

O trabalho com as cantoras teve início há 15 anos, com Rita Lee. “Eu viro amiga de quem atendo e que tem boas vibrações. A Rita sempre foi muito honesta e verdadeira, além disso me divirto muito com ela. É uma excelente profissional e isso me atrai em uma pessoa. Com a Rita foi assim, amor à primeira vista”, contou a cabeleireira que atendeu a roqueira já na sua fase dos cabelos vermelhos. “Hoje, está natural. O cabelo da Rita é lindo, e ela é linda também.”

Dia desses, Gil postou na rede social uma foto da roqueira oferecendo laranjas Bahia recém-colhidas. “Atendo a Rita em vários lugares, mas naquele dia fui cortar o cabelo dela em sua casa, e ela me ofereceu aquelas frutas da foto, colhidas na hora, para eu fazer um suco. Menino, elas têm muito mais suco do que as laranjas que vemos por aí. Uma delícia”, disse a cabeleireira acrescentando não ter uma regularidade no atendimento à roqueira. “Às vezes, ela mesma corta os próprios cabelos.” Fica bom? “Fica, depois passo lá só para acertar.”

Ivete Sangalo é outra cantante que deixa a cabeça nas mãos de Gil. “Atendo a Ivete há oito anos. Ela é como a Rita, engraçada e alto astral sempre. Adoro trabalhar com elas. Só trabalho, e continuo a trabalhar, quando a energia é boa e circula, sem estresse. Quando tem estresse é porque a pessoa é muito incompetente. Pessoas assim passam só uma vez na minha vida”, disse a cabeleireira que já esteve acompanhando a baiana em shows em Las Vegas, Amsterdã e Lisboa.

No Brasil, já esteve em todos os Estados, alguns muitas vezes. “Eu a acompanho porque o cabelo que eu faço é o cabelo que fica.” Quer dizer que o penteado que a Ivete Sangalo usa ao entrar no palco é o mesmo até o fim do show? “Não porque o cabelo transpira e desmonta. Mas do jeito que eu faço ele desmonta bonito. Cabelo, você tem que fazer e ele tem que ficar. Porque cantora, além de pular, jogar, sacudir e mexer, não tem tempo. Fico no show só para dar uma ajuda, quando cai uma presilha ou fazer um rabo de cavalo rápido porque o cabelo está incomodando. Cabelo que faço aguenta até o fim. E é no fim que ele fica bonito. Desmontado, desmanchado e suado. Eu gosto, acho que fica mais bonito.”

Que fique claro, Gil Almeida não é a única profissional que faz a cabeça dessas cantoras. “A Ivete, por exemplo, é atendida por mais duas pessoas, além de mim.”

Já a cantora e compositora Maria Gadú, que se mudou para São Paulo, Gil atende há menos tempo. Como é trabalhar com ela? “De boa. Tenho muita sorte com as pessoas que atendo. Todas são transparentes, são gente como a gente e isso faz a diferença”, falou a cabeleireira que também cuida dos fios de Karina Buhr e Vanessa da Mata, entre outras.

A cantora Mariene de Castro, atualmente na telinha como Dalva, a empregada atrevida da novela “Velho Chico”, também tem seus cabelos tratados por Gil há pelo menos quatro anos.

Gil Almeida gosta de trabalhar com quem tem boa energia (Foto: Carlos Bozzo Junior)
Gil Almeida gosta de trabalhar com quem tem boa energia (Foto: Carlos Bozzo Junior)

PÁSSARO FERIDO

Quando jovem, Gil tentou enveredar pelo caminho da música. Participava de um grupo que se reunia aos sábados e domingos para cantar sambas com o acompanhamento de um cavaco e do tamborim tocado pela irmã. “Não rolou porque minha praia é cabelo mesmo, mas acho que por isso a energia me puxa paras as cantoras. Adoro cantar. Não estou cantando muito pela fatalidade que ocorreu em minha vida, mas adoro”, disse Gil referindo -se ao acidente de trânsito, que recentemente tirou a vida de seu filho Raphael, 26, publicitário e motociclista. O alívio para suportar a perda do filho é bastante trabalho aliado à malhação na academia e música. “Se pudesse malhava todos os dias. Antes, malhava de manhã e de noite. Atualmente só vou de manhã. Fico só uma hora na academia, mas adoro, tanto quanto a música.”

CABELOS FÁCEIS PESSOAS DIFÍCEIS

Em meio a artistas, shows e viagens, Gil não se deslumbra com nada. “Faço meu trabalho e vou embora. Sou amiga, sem atravessar o samba. Não tenho intimidade, não pode. Isso atrapalha. Tem que ser profissional nesse ponto. A discrição é essencial para mantermos as contas pagas e as amizades ativas” falou a profissional que já atendeu, no salão, 35 pessoas durante um sábado.

Para Gil, algumas vezes os problemas não estão nos cabelos, mas nas pessoas. “O cabelo não se manifesta em nada, coitado. Os donos, sim. O cabelo nasce em uma cabeça e, se tiver sorte, ninguém mexe com ele. Só que tem muita gente, que se incomoda com o cabelo. Aí quer mudar cor, corte e textura. Na verdade, cabeleireiros estão no mundo para alinhar isso, ou seja, deixar a pessoa em paz com o próprio cabelo. Tem gente que chega com uma tinta preta e quer sair com o cabelo branco. Antes eu fazia isso. Hoje, sugiro para pessoa comprar uma peruca. É mais rápido, mais barato e menos traumático. Se não gostou é só tirar.”

O contrário também acontece e para a cabeleireira também é difícil. “A pessoa chega loira e quer sair com o cabelo preto. São mudanças muito radicais. A hora em que ela olha no espelho e não se ‘enxerga’ é um horror. Uma pessoa loira nunca acha que está loira, sempre quer mais. Tem mulheres que são insaciáveis.”

O fato é que a felicidade com uma mudança provoca o constante retorno de suas clientes. Elas buscam novamente a sensação de terem passado por um “gate” e atingido um novo estágio, mais evolutivo e contrário à mesmice do enfadonho cotidiano.

Segundo Gil, um dos segredos para o sucesso na sua profissão é saber se adequar a cada cliente. É ficar atento desde que ela entra no salão, dá bom dia e bota a mão no cabelo. Aí já tem que saber o que a pessoa quer. “Estou aqui para atender as expectativas da cliente. Tenho que saber ler os sinais de cada uma que entra aqui antes que me digam o que querem fazer com seus cabelos. Aí sugiro as melhores opções para o desejo de cada pessoa. O atendimento que faço é muito individual, mas todas as clientes têm a mesma importância para mim. Brinco, mas trato todas igual, com respeito e discrição.”

A cabeleireira Gil Almeida cultiva o alto astral (Carlos Bozzo Junior)
A cabeleireira Gil Almeida cultiva o alto astral (Foto: Carlos Bozzo Junior)

NO CASE DA PROFISSIONAL

Quando em viagem de trabalho, na mala de Gil não podem faltar tesouras, dois secadores -um 110 volts e outro 220 volts-, três escovas de tamanhos diferentes, babyliss, chapa, máquina, pentes, clips, tinturas, toalha, roupão, shampoo, condicionador, capa de corte, finalizadores, sprays e outros produtos. “Despacho uma mala com tudo isso e separo um kit menor para a mala de mão. Já perdi uma mala em uma viagem com Ivete e só eu sei o que passei. A sorte é que ela é bonita e não precisa de cabelo arrumado, mas fiz o que deu na casa dela e ela fez o show de boa.”

Para quem está começando no som das tesouras, a cabeleireira dá o toque. “A vida vai te levando. Nunca procurei atender artistas ou famosos, fui levada a isso. Sempre procurei fazer meu trabalho de maneira correta. Vim de baixo, aprendendo e já fazendo. Tem que ter foco e paciência para chegar lá. Hoje, a pessoa sabe fazer uma escova e já abre um salão. Aí não dá. Tem que aprender bem antes e ser discreta. Muito discreta.”

Dos truques que utiliza, Gil revela dois deles para o cabelo “durar” mais e ficar mais bonito. “Não colocar tanto spray [fixadores, o antigo laquê] porque quando ele desmonta não fica grudado, fica mais bonito. Eu também uso muito óleo reparador de pontas para ir retocando. Mas cada cabelo é um cabelo”, adverte.

Gil tem uma irmã, um ano mais velha, que era comissária de bordo da Varig. A empresa quebrou. Gil acolheu e ensinou a irmã a cortar, pintar e pentear. Hoje ela é profissional requisitada e também trabalha em um salão Jacques Janine. “Aprendeu a profissão comigo começando como minha assistente. Graças a deus, todos os meus assistentes se tornaram excelentes profissionais. Ela é uma dessas pessoas de quem me orgulho.”

Assista ao vídeo, a seguir, com Gil Almeida mostrando com sua voz quem é a cabeleireira de sucesso que atende as estrelas da MPB.