A música de Rita Gullo nas letras de Ignácio de Loyola Brandão
O espetáculo “Solidão no Fundo da Agulha”, no qual a cantora e atriz Rita Gullo, 33, divide o palco com o escritor Ignácio de Loyola Brandão, 79, está em cartaz no teatro Eva Herz, todas as terças-feiras, até dia 26 de julho.
Depois de assistir ao prazeroso encontro de pai e filha- Rita Gullo é filha de criação de Ignácio de Loyola Brandão-, o Música em Letras realizou uma entrevista com ela, em sua casa, na Vila Beatriz, bairro da zona oeste de São Paulo.
Leia, a seguir, sobre o espetáculo e a trajetória de Gullo que, além de formação em teatro e música, cursou história, gravou dois CDs e escreve livros para crianças. Saiba também algumas curiosidades sobre Ignácio de Loyola Brandão, que lança o livro de crônicas “Se For para Chorar que Seja de Alegria”, no dia 31 de julho, ocasião em que comemora 80 anos.
Assista, no final do texto, ao vídeo em que Rita Gullo interpreta “Estrela do Mar”, de Marino Pinto (1916-1965) e Paulo Soledade (1919-1999), ao lado da cadela Margot, uma pointer muito bonita e que parece gostar de música.
O ESPETÁCULO
A origem do espetáculo em cartaz é o livro, acompanhado por CD, “Solidão no Fundo da Agulha” (2013), de Loyola. Tanto livro quanto CD nasceram do projeto Livro para Todos, da Fundação Carlos Chagas. Inicialmente, o livro seria apenas uma publicação de memórias do autor relacionadas a músicas. Os produtores perceberam a necessidade de fazer um disco para acompanhar o livro e convidaram a cantora Rita Gullo para fazer parte do projeto. Com tiragem pequena, o livro logo esgotou.
Após lançarem o livro, Gullo quis realizar um show com o pai. “No início, ele relutou, dizendo que não saberia o que fazer no espetáculo. Mas meu pai fez palestras a vida inteira, não para quieto. Fico impressionada com a energia que ele tem”, disse a artista que se recorda do som contínuo das máquinas de escrever utilizadas por Loyola trabalhando em casa, antes de adotar o computador.
Segundo Gullo, Loyola sempre ouviu muito bolero, música italiana, Elba Ramalho, jazz e música erudita. Isso contribuiu para que adquirisse em sua formação de cantora grande diversidade musical, mas MPB e jazz são seus gêneros prediletos.
Trabalhar com o pai não é problema para a atriz. “Zero de dificuldade. Ele é muito fácil de trabalhar junto, sempre nos demos muito bem”, falou a idealizadora do espetáculo. Desde que estreou, em 2014, apresentaram- se em poucos lugares da capital paulista, mas realizaram shows em várias feiras de literatura, viajando para o Pará, Goiás e Alagoas, entre outros Estados, em mais de 50 apresentações.
Essa é a primeira vez que o espetáculo fica em temporada. “No teatro, meu pai fica nervoso e aflito para entrar em cena. Tenho que segurá-lo para que não entre no meio do terceiro sinal. Na estreia, ele entrou e o palco ainda estava escuro”, contou rindo a atriz.
Durante a temporada, pai e filha são acompanhados pelos violonistas Edson José Alves ou Edmilson Capelupi, que se revezam nas noites de apresentação. Ambos craques capazes de jogar bem em qualquer campo. Contudo, pai e filha já se apresentaram com formação maior em que figuram, além dos dois exímios violonistas, Olivinho (acordeon) e Bré (percussão).
LETRAS QUE TRANSFORMAM
Gullo fica impressionada ao fim de cada espetáculo. Segundo ela, sempre aparece alguém contando, com os olhos marejados, uma experiência que também teve relacionada a uma música, ou de identificação com personagens descritos por Loyola. “Muita gente diz que depois de ter ouvido algumas dessas histórias, vai mudar de vida. Como se uma outra porta tivesse sido aberta na vida da pessoa ”, contou Gullo sobre o show que não detém especificidade, por não ser só música ou teatro, mas causa grande impacto no público.
O Música em Letras assistiu ao espetáculo e constatou tal impacto. Delicioso de assistir, quando a luz do palco se apaga, a sensação é de querer mais. Durante a apresentação, perde-se completamente a noção do tempo. Ouvir, quase beirando a informalidade, histórias que cabem a todos nós, independentes de um repertório para compreendê-las, conduz à identificação. Embalado por músicas bem executadas- na noite em que o blog esteve no teatro, Edmilson Capelupi estraçalhou na harmonia, sem estraçalhar ou encobrir a cantora-, o show casa texto com som e leva ao prazer.
Entretanto, quando foi apresentado na periferia de São Paulo, tanto atriz quanto escritor ficaram temerosos pela reação do público. “As histórias são cheias de referências. Pensamos que o fato de as pessoas não terem esse repertório e não conhecerem as músicas e os personagens- por exemplo, Gilda interpretada pela Rita Hayworth- poderia tornar o espetáculo chato. Mas foi o contrário. Descobrimos que a referência não importa. O que importa é a história e sua essência. Embora as músicas sejam de outra época, e o funk domine em alguns desses lugares, elas couberam direitinho nessas apresentações. No final, várias pessoas pediram os nomes das músicas para conhecê-las melhor.”
GILDA PREMONITÓRIA
Entre as histórias e músicas do espetáculo que Gullo “ama” cantar, figura “Amado Mio”, de Doris Fisher (1915–2003) e Allan Roberts (1905-1966), da trilha sonora do filme “Gilda” (1946). Nela, Loyola volta aos seus 12 anos, em 1948, quando subornou um porteiro do cinema de Araraquara, sua cidade natal, para “ouvir” o filme, pois assistir não podia, era proibido para menores. Segundo o escritor, “os netos desse porteiro trabalhavam, até pouco tempo, na Petrobrás”, contou no show, arrancando gargalhadas da plateia.
Anos mais tarde, decepcionou-se ao assistir “Gilda” e fez duas constatações. A primeira, que o tal strip-tease de que tanto falavam, e que em seu entendimento supostamente acontecia ao som de “Amado Mio”, era apenas uma luva sendo lentamente retirada do braço da atriz. Além disso, a música era outra, “Put The Blame On Mame”, também dos autores de “Amado Mio”.
O autor de “Zero” reencontrou “Amado Mio”, anos mais tarde, sendo tocada em uma vitrola de uma loja da rua Capitão Salomão, centro de São Paulo. Na ocasião, em 1957, com 21 anos , o escritor estava quebrado, só com o dinheiro para voltar para Araraquara, pois tentou a sorte na capital, mas tinha dado em nada. Não conseguiu emprego, o dinheiro -três mil cruzeiros dados pelo pai, um ferroviário que segundo Loyola era praticamente um operário- havia acabado.
Ao ouvir a música, foi até a loja e perguntou ao balconista o porquê de ele ter colocado aquela música para tocar. Afinal, para o escritor, desde aquela época, nada era de graça. Deveria haver um significado naquilo. O empregado da loja, acabando com qualquer possibilidade de uma epifania, disse: “Coloquei essa música porque o dono mandou”. Desiludido, e sem nenhuma grande revelação, ao final da música o jovem Loyola pegou seu rumo de volta para Araraquara, triste e acabado. Uma frase de Ernest Hemingway (1899- 1961), um dos autores prediletos de Loyola, o moía por dentro: “Você nunca deve voltar para sua terra natal fracassado”.
Mal saiu da loja, topou com um colega, Amauri Medeiros, ex-repórter do jornal araraquarense “O Imparcial” no qual Loyola também havia trabalhado. Loyola colocou o amigo ciente de sua situação, e foi convidado por ele para disputar uma vaga que acabara de abrir no “Última Hora”. Loyola acompanhou Medeiros, foi apresentado por ele e conseguiu a vaga. O fato deu início a um dos períodos mais importantes na vida profissional do escritor e jornalista, que permaneceu por dez anos no jornal. O resto é história.
A BARRA DE BARRA
História é o que não falta no show. Algumas capazes de tirar as pessoas de suas zonas de conforto. “Que Reste-t-il de Nos Amours”, de Charles Trenet (1913-2001) e Léon Chauliac (1913-1977), é a música que veste a história do Barra, amigo de Loyola, que abdicou de ser ator, embora já integrasse a companhia de Tônia Carreiro. Virou dentista. O motivo? Teria mais estabilidade financeira. Trocou o palco pelo consultório, mas vivia frustrado. Recebeu herança milionária de parentes, mas se deu conta de que dinheiro não era o que lhe faltava. Faltava-lhe ainda o palco. Ricamente endinheirado, teve um AVC (acidente vascular cerebral) e logo depois morreu, frustrado, sem ter entrado novamente em cena.
Segundo Rita Gullo, familiares de Barra assistiram ao espetáculo há algumas semanas, e relataram para Loyola que o infeliz amigo fizera a troca do palco pelo consultório por conta do último pedido realizado pela mãe, no leito de morte: “Para com essa história de querer ser ator!”. “Nem meu pai sabia disso; soube ao conversar com a família de Barra, após o espetáculo”, revelou a cantora.
Gullo faz um alerta sobre o espetáculo: “É preciso estar aberto para ouvir e rever um pouco da própria vida. O que meu pai faz escrevendo é rever a própria vida. Quando ele faz isso, nos contando os caminhos que tomou por meio de histórias, ajuda muito quem as escuta. Escutar de maneira aberta a história do outro, pode nos modificar”.
Para o filósofo e matemático Bertrand Russel (1872-1970), a matemática era detentora não apenas da verdade, mas de suprema beleza. Para Loyola, a ciência é bem mais que isso. Na história, a última do show, o escritor prova cabalmente como dois mais dois é igual a cinco. Contudo, contar final de piadas não é o intuito desse blog. Vá ao show e descubra como o escritor chegou a esse resultado.
ATRIZ E CANTORA
Maria Rita Gullo Lopes, 33, é Rita Gullo, cantora, atriz e historiadora. Entretanto, gosta mesmo é de cantar e atuar. Em 2005, depois de se formar em história pela PUC (Pontifícia Universidade Católica) de São Paulo, fez o curso técnico profissionalizante de teatro no Teatro-Escola Célia Helena. A história cursada na PUC ficou para a história. “Assim que saí da faculdade, fiz alguns estágios dando aulas, mas nunca foi minha praia. Acabei entrando no teatro e fui para esse mundo”, disse Gullo.
Durante os anos em que cursou teatro, participou de algumas peças de professores da instituição e depois ingressou na Cia. Elevador de Teatro Panorâmico, dirigida por Marcelo Lazzaratto, com a qual participou, em 2010, da peça “A Ilha Desconhecia”, de José Saramago (1922-2010), baseada no livro “Conto da Ilha Desconhecida” do escritor português.
A atriz integrou outras montagens teatrais, mas se recorda com muito carinho de ter participado, em 2011, de “A Hora Em Que Não Sabíamos Nada Uns dos Outros”, de Peter Handke. A peça permaneceu pouco tempo em cartaz. Foram três semanas, no parque da Luz, na capital. “Fazíamos uma apresentação de dia, e outra à noite, quase sem fala. Eram trezentos e tantos personagens para 16 atores, realizando quase um balé. Foi maravilhoso”, disse a atriz que foi elencada para encenar, em 2017, “Diáspora”, com direção de Marcello Lazzaratto.
Para o segundo semestre de 2016, Gullo já tem outro projeto teatral, a peça “Máscara”, com texto de Carla Kinzo e direção de Vera Egito. O trabalho é resultado da mistura do livro “Mutações”, da atriz Liv Ullmann; da peça“Casa de Bonecas”, de Henrik Ibsen; e do filme “Persona”, de Ingmar Bergman.“Temos muito a ver com essa história, que é a do feminino. Há nela relatos sobre o universo feminino muito atuais”, adiantou a atriz.
MÚSICA VIOLÃO E CANTO
A música está presente na vida de Gullo desde os 8 anos, quando começou a estudar violão clássico. Durante quatro anos, o professor Eduardo Meirinhos, concertista e atualmente professor na EMAC – UFG (Escola de Música e Artes Cênicas da Universidade Federal de Goiás), toda semana ensinava a jovem. Nessa toada, percebeu que a aprendiz se interessava mais por música popular do que música clássica. “Ele passou a mesclar uma com a outra nas aulas. Eu lia mais partitura que cifra”, disse Gullo, que lembra ter recebido do mestre os primeiros ensinamentos para tocar “A Noite do Meu Bem”, de Dolores Duran (1930-1959), e “Guardei Minha Viola”, de Paulinho da Viola.
Mas não era só de MPB que se alimentava a moça. Música gringa fazia parte do cardápio. “Tinha Beatles também. Lembro que achava ‘Yesterday’ dificílima de tirar no violão”, disse a artista que ainda tem o mesmo instrumento, feito pelo exímio luthier brasileiro Raimundo Saraiva. “Esse ‘Saraiva’ foi presente do meu pai. Só que do outro pai. Minha mãe se separou dele quando eu tinha um ano e depois ela se casou com o Ignácio, quando eu tinha três anos”, disse a atriz referindo-se a seu pai biológico, o flautista José Rubens Lopes.
Do pai músico, Gullo tem lembrança de ouvi-lo bastante. “Quando era criança, ficava com ele e adorava ouvi-lo tocar sax e flauta. Ele estudava muito esses instrumentos, pois tocava em uma orquestra sinfônica.”
Entretanto, sua história com a música tem raízes na família da mãe. “Minha avó Marise e suas irmãs, Luiza, Dilina e Landa, eram cantoras. Amadoras, cantavam em coral, mas minha avó participou de uma ópera em Araraquara. Um maestro vindo de São Paulo chamou as pessoas da cidade para realizarem a ópera no teatro municipal local. Ela passava o dia inteiro cantando e ouvindo música”, contou Gullo que ficava atônita ouvindo “Saudade Mal- estar que se Bendiz”, de Jaime Redondo (1890-1952), nas vozes da parentada.
Dos 12 aos 17 anos, Gullo estudou violão popular com o músico do grupo Barbatuques, Renato Epstein, na escola de música Domus, em Pinheiros. Começou a travar conhecimento com outros violonistas e vendo que eles eram muito melhores do que ela, deixou de lado o instrumento e passou a cantar. “Junto com o Jonas Tatit [violonista], filho do Luiz, comecei a tocar em barzinhos. Nessa época, descobri que eu gostava mesmo era de cantar”, disse a artista, que recorreu a excelentes profissionais para adquirir conhecimentos específicos.
Gullo começou seus estudos pelo canto lírico, com Leila Farah (1925-2004), por “adorar” ópera. “Ela era uma sumidade, eu a adorava. Ela tinha certeza de que eu seguiria o caminho da música erudita, mas talvez por conta de ser a única da minha turma de adolescentes que cantava ópera, desisti”, falou a cantora que estudou com Farah dos 15 aos 18 anos. “A dona Leila me deu formação de cantora, principalmente no que diz respeito à respiração, além de me ensinar muito sobre colocação de voz. Ela formou minha voz”, disse a cantora soprano, que tinha tendência para soprano dramática, tipo de voz poderosa, de timbre pesado como de Maria Callas (1923-1977), e geralmente escolhido, na ópera, para interpretar papéis heroicos.
Após essa experiência erudita, Gullo estudou com a cantora Ná Ozzetti durante um ano, antes de virar aluna de Regina Machado, com quem permaneceu por dois anos . Segundo Gullo, com Ná Ozzetti, aprendeu a colocar sua voz em “um lugar mais popular”; e com Regina Machado, a “focar melhor o que quero fazer, além de tirar um pouco da voz impostada que tinha”.
No universo da música popular, Gullo aprecia, entre outros, os astros Chico Buarque, Milton Nascimento, Noel Rosa (1910-1937), Lenine, Mario Gil, e Kristoff Silva. Das estrelas, gosta de Roberta Sá, Tulipa Ruiz e Blubell, mas as que “ama de paixão” e simplesmente venera são Ella Fitzgerald (1917-1996) e Mônica Salmaso.
CDS E LIVROS
Gullo lançou um CD homônimo, em 2011, com 13 faixas, pela Tratore, além do disco de 11 faixas, que acompanha o livro “Solidão no Fundo da Agulha” (2013). Na primeira bolachinha, entre outras, “Sentinela”, de Milton Nascimento; “Oração ao Tempo”, de Caetano Veloso; e “A Mulher de Cada Porto”, faixa com participação especial de Chico Buarque, autor com Edu Lobo da belíssima canção.
Poucos exemplares sobraram das seis mil cópias do primeiro disco. O CD anexo ao livro “Solidão no Fundo da Agulha” também está esgotado. Contudo, isso não faz de Gullo uma pessoa “esgotada”. Além de levar adiante o espetáculo com Loyola, lança outro CD até o final de 2016.
“Quem está gravando o disco novo para mim é o Hélio Ziskind com o Manga [Mário]. Levantamos repertório e estamos partindo para a gravação”, contou a artista do CD que deve chamar “Uma Canção Me Trouxe Até Aqui”, uma referência a “Una Canción Me Trajo Hasta Aquí”, de Jorge Drexler.
Duas curiosidades sobre Drexler: além de otorrinolaringologista, o compositor e cantor uruguaio é autor de “Al Otro Lado del Río”, primeira canção em espanhol a ganhar um Oscar (2005). A música, trilha do filme “Diários de Motocicleta”, de Walter Salles, abocanhou o prêmio de melhor canção original, anunciado e entregue por Prince (1958-2016).
Na companhia dos jornalistas Carla Gullo (sua tia) e Camilo Vannuchi, Rita Gullo elaborou uma coleção de livros sobre música brasileira, divididos por gêneros musicais, para crianças entre nove a dez anos. O primeiro volume é “Samba e Bossa Nova”; o segundo, “Choro e Música Caipira”; e para o segundo semestre deste ano, “Jovem Guarda e Tropicália”, o terceiro dessa série paradidática da editora Moderna. “Tratamos as crianças com respeito e sem abordar o assunto da música de maneira chata. Contamos um pouco sobre o ritmo, as músicas, os autores e seus intérpretes. A ideia é estimular a criança, por meio da leitura, a descobrir quem são esses personagens e como são essas músicas e ritmos.”
SOLIDÃO NO FUNDO DA AGULHA
ARTISTAS Rita Gullo (cantora), Ignácio de Loyola Brandão (escritor), Edmilson Capelupi / Edson José Alves (violonista)
QUANDO terças-feiras até dia 26 de julho, às 21h
ONDE Teatro Eva Herz, livraria Cultura, Conjunto Nacional, av. Paulista, 2073 – Bela Vista – São Paulo, tel. (11) 3170-4033
QUANTO R$50