Sem Noção – “Miragem de Inaê”, avaliado por Mônica Salmaso

O Música em Letras convidou a cantora Mônica Salmaso, 45, para participar da série Sem Noção (veja posts anteriores) que realiza audições às cegas de discos recém-lançados.
Salmaso já gravou dez CDs. O último foi “Corpo de Baile”, e o próximo, com músicas de Edu Lobo, ainda não tem nome. A artista recebeu o Música em Letras em seu apartamento, no bairro da Aclimação, São Paulo, para a audição às cegas proposta. Salmaso ouviu, sem receber nenhuma dica, o CD “Miragem de Inaê” das cantoras e compositoras Anna Paes e Iara Ferreira.
A cantora escutou as dez faixas do começo ao fim, por meio de uma aparelhagem de som que conta com um par de monitores (caixas de som) Dynaudio, que além de reproduzir um som rigorosamente claro, limpo, definido e real, parece ter o poder de materializar os integrantes do disco. “Impressionante a qualidade desses monitores. Ouço a ponto de ‘ver’ coisas que não havia ‘visto’, antes”, comentei. “É para ‘ver’ mesmo. Precisa, né?”, comentou a experiente artista cujos discos são muito bem gravados.
Leia, a seguir, as impressões de Salmaso sobre “Miragem de Inaê”, disco da gravadora Biscoito Fino, com todas as composições de autoria e interpretadas pelas cantoras Anna Paes e Iara Ferreira; direção musical de Jayme Vignoli; gravação, Carlos Fuchs e Gustavo Krebs; mixagem e masterização, Carlos Fuchs; projeto gráfico, Dora Reis; e fotos de Silvana Marques. Os arranjos foram distribuídos entre Jaime Vignoli, faixas 1 e 7; Pedro Paes, faixas 2, 3, 9; Glauber Seixas, faixas 4 e 10; Guinga, faixa 5; e Paulo Aragão, faixas 6 e 8. Três participações especiais abrilhantam as faixas 5 (Guinga), 7 (Paula Santoro) e 8 (Quarteto Maogani).
FAIXA 1 “Canto pra Oyá”
“Não conheço esse trabalho, mas gosto muito dele já de cara. Fiquei aliviada porque gostei. É criativo. Tem um [compasso] seis por oito, um lance meio Moacir Santos. É bonita a instrumentação com clarone, violão e percussão. Aparentemente, não reconheci as vozes e também não conheço a música, ela é inédita para mim, mas achei boa. É uma abertura de disco bem bonita, viva e criativa. Gostei, forte.”
FAIXA 2 “Se eu pedir, tu me dá?”
“Muito bom! A música é muito boa. Divertida, bem feita, legal, variada, criativa e segura. Parece que todo mundo sabe o que está fazendo. Não sei quem fez, mas é muito bom.”
FAIXA 3 “Carta Escondida”
“A impressão que eu tenho é que as canções são herdeiras do Chico Buarque. Parece que estou ouvindo um disco novo, mas do Chico, do ‘Caros Amigos’. Tem umas surpresinhas harmônicas, de vez em quando, mas é tudo na medida, não é para ser difícil. É para ser brasileiro, poético e, de vez em quando, vem um tempero. Muito bonito também. Bonita a escolha de usar poucos instrumentos para fazer uma canção como essa, que é uma valsa. Muito legal.”
FAIXA 4 “So Sentimental”
“Essa é uma faixa que tem menos força do que as outras. É boa de ouvir. É uma liberdade estética de ir parar em um outro lugar. Havia [nas faixas anteriores] uma coisa de estrutura e cultura brasileira e, de repente, vem uma guitarra, uma estrutura de música americana. Não é ruim, mas é uma quebra para mim. Eu disperso ouvindo essa música e não disperso ouvindo as outras. Não é uma coisa em que a linguagem musical me chame a atenção e me leve por caminhos. É uma novidade um pouco chocante, se bem que a palavra chocante talvez não seja adequada, mas a entrada da guitarra na introdução, de cara, em comparação com o que vinha ouvindo, me parece meio E.T. [extraterrestre], meio turista.”
FAIXA 5 “Valsa de Aprendiz”
“Acho que sei quem é. Essa faixa é linda. Tem o Guinga também. A música é linda e faz voltar o meu interesse, faz com que eu siga a melodia para ver para que lado ela vai e que história ela conta. Isso é o que mais gosto. Além de muito linda, é muito bem cantada, muito bem gravada. Está tudo certo. Bonita a soma do Guinga, sensacional. Baita música. “Perguntada se gostaria de arriscar de quem se tratava, a artista revelou : “Acho que é a Mariana Bernardes, não sei se é, mas tem alguma coisa nessa voz que me lembra a Mariana”.
FAIXA 6 “Choro de Madrinha”
“Essa segunda voz, não faço a mínima ideia de quem seja. Mas esse disco me localiza algo que está acontecendo no Rio, na Escola Portátil de Música, na Furiosa. É lindo, fico emocionada. Ouço uma voz jovem, um trabalho novo, mas também ouço uma referência de uma história da música, do choro, das polcas, das valsas, das modinhas. Então, localizo esse disco nessa história que acontece no Rio, que é das coisas mais bonitas que eu já presenciei. Trazer o ensino da música de um jeito respeitoso está formando muito músico com essa bagagem histórica. Essa é uma canção, como as outras, superestruturada, que conta uma história melódica e tem uma letra. Vem de trabalho, não é uma música que sai espontaneamente de um clima. É uma música que tem uma construção de horas de trabalho para achar o caminho consciente. É um trabalho lindo, outra música linda.”
FAIXA 7 “Miragem de Inaê”
“Paula Santoro arrasando. Voz de cobertor, quente. Linda também. Virou uma toada mineira. Não sei como seria se não fosse cantada pela Paula. Parece que entrou um disco da Paula, mas é muito bonito. O arranjo é muito bonito com essas frases de flautas superlindas e o som de tudo está bom. É uma toadona mineira, boa para caramba.”
FAIXA 8 “Réquiem para os Vinte Anos”
“É bonito de novo. A forma como ela canta tem uma coisa que puxa para ouvir mais a melodia do que a letra, apesar de entendermos bem a letra. Mas é um canto que parece preocupado em procurar chegar direito nas notas para mostrar a melodia. Isso é bom e fundamental, mas às vezes você perde um pouco da percepção da letra. É difícil conseguir cantar uma melodia como essa, que tem um monte de saltos, e vai parar em uns intervalos malucos, pois tem uma história importante de ser explicada melodicamente. Isso vale para o disco todo até agora, mas essa música me chamou mais a atenção. É difícil cantar uma melodia como essa sem prestar a atenção na dificuldade que ela traz e ainda falar a letra. É uma tarefa grande, mas é lindo estar nessa situação, porque é uma música de gente grande. Uma música com assunto melódico de verdade. Talvez, seja o Maogani tocando junto. Não sei se é, mas achei bonita a escolha dos violões.”
FAIXA 9 “Mudei de Esquina”
“Um samba sambão, tipo ‘Vai Passar’. Tem bastante nota, bastante palavra, é um samba denso de realização. Não é um samba descansado, é um samba que você tem que conduzir. É bonito e bem feito também. Toda a instrumentação é muito boa e bem escolhida no disco todo. Bem legal, cola, mas acho que é uma música um pouco difícil de cantar. Fico meio atordoada com tanta palavra e tanta nota. Tenho a impressão de que talvez ela tenha sido gravada em um andamento mais rápido do que pede, porque eu senti um pouco desse peso no cantar. Mas é um belo e bom samba.”
FAIXA 10 “Mamãe Bonita”
“Fomos para Minas Gerais. É a floresta, mas é muito mineira. É uma música brasileira muito próxima do que gosto. Tem uma veia poética e melódica da cultura brasileira. Passa por uma toada, vai parar em Minas Gerais e é um pouco religiosa. É muito bonito isso. É nosso.”

AVALIAÇÃO PONTUAL POR MÔNICA SALMASO
INTÉRPRETES
Bom
COMPOSIÇÕES
Muito bom
HARMONIA
Muito bom
RITMO
Muito bom
MELODIA
Ótimo
ARRANJO
Ótimo
SOM (CAPTAÇÃO, MIXAGEM E MASTERIZAÇÃO)
“O som é bom, mas acho que peca nas vozes. Tem uma coisa agora de fazer as vozes com menos ‘reverbe’ que os instrumentos, o que tira um pouco da voz. Tenho a sensação de que no tratamento das vozes parece que elas não estão no mesmo lugar que os instrumentos. A voz é seca e está mais à frente, o que faz com que pareça uma voz guia, uma voz que não estava naquele lugar junto com todo mundo. Por exemplo, as vozes do Guinga e da Paula não estão assim, mas as vozes das meninas estão mais secas do que eu gostaria em relação aos instrumentos. Elas somam menos, fica mais difícil, a afinação fica mais exposta. Fica tudo mais exposto.”
CONSIDERAÇÕES GERAIS
“Ainda não sei quem são, desconfio que uma das meninas é a Mariana Bernardes, mas não tenho certeza. A segunda voz não sei quem é. Soube identificar alguns músicos e as participações. É um disco muito bom, que tenho interesse em ouvir. Até perguntei se vou ficar com ele de presente porque tenho vontade de ouvir de novo e de conhecer essas músicas melhor. Ele é completamente inédito para mim em termos de composição. O disco muito bom.”
CD REVELADO
Após a audição, revelei à cantora Mônica Salmaso que “Miragem de Inaê” é o primeiro disco das cantoras e compositoras Anna Paes e Iara Ferreira, autoras de todas as músicas. Um breve histórico sobre as carreiras das artistas também foi fornecido a Salmaso, assim como todas as outras informações sobre o disco, seus participantes, ficha técnica, capa e encarte.
Diante das revelações, Salmaso complementou sua avaliação. “Fiquei surpresa de ver que era a Anna porque eu a conheço, mas pouco a ouvi cantar. Era ela que desconfiava que fosse a Mariana Bernardes. Elas têm uma voz que se destaca em meio a outras, chamando a atenção e trazendo-as para frente. A Iara, acho que não a conheço, mas certamente não tinha ouvido ela cantar. As impressões que tive sobre o disco se mantêm. A única música que para mim destoa é a música em inglês, o standard [“So Sentimental”]. Não porque é uma música com letra em inglês ou que eu tenha preconceito contra isso. Mas as composições das duas [Anna Paes e Iara Ferreira] contam histórias harmônicas e poéticas tão cheias de assunto, que uma canção à ‘la americana’ como essa é parte de um universo melódico, rítmico, harmônico e poético muito mais simples. Nesse sentido, a instrumentação também faz um contraponto ali. É um ponto de diferença no disco, com relação às outras músicas. A densidade das outras canções é muito maior e isso faz com que destoe, deixando-a meio estranhinha ali. Mas acho lindo saber que temos essas duas compositoras juntas fazendo um material tão bonito. Dá vontade de cantar. Entendi perfeitamente porque a Paula escolheu cantar ‘Miragem de Inaê”, você jura que está em um disco dela. É uma super música, a cara dela. Assim como o Guinga cantando essa ‘Valsa de Aprendiz’, parece que ele está envolvido na parceria. Muito bonito tudo. A instrumentação, os convidados é muito bacana. É um disco bem bonito de ouvir. Gosto, estou até com vontade de ouvi-lo de novo, de verdade. ”
Perguntada se há espaço para esse disco no mercado, Mônica Salmaso respondeu: “Espero que tenha, porque é o mesmo lugar que eu ocupo com o que eu faço. Então, tenho que acreditar que tenha lugar no mercado. Essa entidade, o mercado, é muito incerta. Não sabemos nem mesmo para qual mídia temos que produzir; se acaba o CD, se não acaba, ou o que vem no lugar dele; se faremos um disco inteiro ou músicas soltas. Esse é um momento de muitas incertezas, então não sabemos para que lado vai. Essa música, como a que eu faço, é do Brasil, fala daqui e de quem é daqui, para quem é daqui ou para quem está interessado no Brasil. O lugar para essa música nunca vai deixar de existir. Acredito nisso. É o que me emociona e me apaixona. Temos uma riqueza em que o interesse sobre o nível de linguagem, tempero, religiosidade, natureza desse povo misturado e tudo isso que forma o Brasil, traz um assunto musical muito rico. Então é uma questão de identidade, não é nem de mercado. Como isso vai andar, para quem e de que maneira, confesso que nesse momento não dá para saber. Mas acredito que isso sempre tem lugar, porque se a gente não tiver um lugar para nós mesmos vai ficar esquisito, a gente nunca mais se acha. Então temos que ter essa fé. Mas eu fiquei bem feliz por você ter escolhido esse disco para eu fazer a avaliação. Gostei muito de conhecê-lo. Muitão.”
AVALIAÇÃO FINAL DE MÔNICA SALMASO
Muito bom

CD MIRAGEM DE INAÊ
ARTISTAS Anna Paes e Iara Ferreira
GRAVADORA Biscoito Fino
QUANTO R$ 30