Música e cinema se casam ao vivo
O espetáculo Cinepiano, criado e encenado pelo pianista paulistano Tony Berchmans, 45, acontece amanhã (29), na praça do Sesc Santo Amaro, às 19h, com a projeção do filme “O Circo” (1928), de Charlie Chaplin (1889-1977). Durante os 76 minutos do filme, Berchmans fica sem tirar as mãos de um piano, acompanhando o desenrolar da película enquanto toca, ao mesmo tempo, com o intuito de dar sentido às cenas. Sim, a música muitas vezes é quem define o significado de uma cena. Entretanto, para isso, ela deve se adequar ficando a serviço da imagem. Ao vivo, a performance do pianista é um exercício de improvisação constante, embora muitos clichês sonoros sejam utilizados.
O Música em Letras esteve na casa do compositor e “acompanhador”-termo utilizado em Portugal para músicos que realizam essa proeza- em Perdizes, São Paulo. Leia, a seguir, parte de uma conversa didática, prazerosa e interessante que o artista teve com o blog e assista ao vídeo, no final do texto, no qual ele mostra um pouco da técnica para promover uma união feliz e estável entre essas duas artes que dependem de movimento.
COMPASSOS E FRAMES
Berchmans estuda piano desde os sete anos de idade. Trabalhou com produção musical de peças publicitárias, formou-se em engenharia e abandonou, embora sempre tocasse, o estudo do piano. Retornou com afinco ao estudo do instrumento há três anos.
O aprendizado musical teve início no colégio Sagrado Coração de Jesus, no bairro da Pompéia, em São Paulo. Quando ainda se alfabetizava, foi matriculado no conservatório da escola. “O conservatório era muito bom, mas havia a obsessão por formar um intérprete e não um músico completo. Ficava irritado, não conseguia tocar as músicas que vinham em minha cabeça. Tinha que tocar o que o professor queria. Nunca me adaptei a isso”, disse o músico que permaneceu por um ano na instituição.
Berchmans mudou com a família para Piracicaba e retomou os estudos musicais na Escola de Música de Piracicaba, hoje parte da Universidade Metodista de Piracicaba. Na ocasião, o artista tinha 8 anos. Foi nessa escola que, por meio do estudo da flauta, violoncelo e piano, o menino enveredou pelo caminho da música erudita. Isso até os 12 anos, quando passou a ter contato maior com o pop e o rock. “Comecei a escutar Pink Floyd e pirei. Queria tocar aquilo e não o que me passavam na escola. Mas o que me fez sair de lá foram as cifras. Um dia, fui chamado para tocar em um festival de música e me deram uma partitura com cifras. Não sabia o que era aquilo, apesar de estudar piano há cinco anos. Quis aprender imediatamente”, contou o músico que teve a ajuda da irmã mais velha para aprender a ler cifras, e com essa ferramenta entrou para o mundo da música popular.
A partir desse momento, Berchmans passou a integrar várias bandas de pop, rock e MPB em Piracicaba. Tocava em festas, bailinhos, escolas, festivais e bares da cidade. Aos 20 anos, escutava música instrumental, principalmente o som da banda Spyro Gyra e do grupo Wheather Report. “Ouvia aquilo e pensava: preciso fazer esse som”, falou o pianista que montou um quarteto (teclado, bateria, baixo e saxofone), o New Jazz, grupo que não durou muito.
O artista não acreditava que a música seria seu ofício principal. Sua família o influenciou a pensar que não conseguiria “viver de música”. “Achava que iria passar fome. Por isso, entrei no curso de engenharia mecânica”, falou Berchmans, formado pela Escola de Engenharia de Piracicaba. Contudo, nunca exerceu a profissão.
Durante o curso de engenharia, o músico continuou a tocar em bares e bandas, até que recebeu de um irmão a proposta para abrir uma produtora de música na cidade. A Lay Audio foi aberta em 1991 e absorveu praticamente toda a produção publicitária local. “Ninguém fazia isso lá, só em Campinas. Durante três anos, fizemos peças musicais para padarias, escolas de inglês e o que aparecesse. Mas não fazíamos muita grana porque a realidade do mercado no interior é outra. Lá tudo era cobrado mais barato”, disse o produtor musical que encerrou as atividades da Lay Audio, em 1994, por não conseguir substituir o equipamento análogo pelo digital.
O ENGENHEIRO QUE VIROU SOM
Berchmans mudou para São Paulo e ingressou como estagiário no departamento de Rádio e Televisão da agência de propaganda Standard Ogilvy & Mather. O departamento, responsável por lidar com produtoras de cinema e de som, trouxe vários contatos para o artista. Entre eles, Thomas Roth e Julio Moschen, ambos da produtora Lua Nova, onde o pianista foi convidado a trabalhar.
Na Lua Nova, onde permaneceu entre 1994 e 2001, Berchmans realizou algumas campanhas de fôlego, como o lançamento do portal Terra, para o qual produziu todas as peças musicais. Contudo, lembra que a mais nababesca de todas as produções foi a trilha sonora criada para o sabonete Vinólia, com gravação realizada em Roma, em 1997. “Alugamos o estúdio, contratamos a orquestra e um coro de 16 cantores de ópera”, contou o produtor que registrou uma das árias da ópera “Lakmé”, do compositor francês Léo Delibes (1836-1891). A versão da trilha, com letra em italiano, foi um sucesso. “Fizemos uma paródia dessa composição que virou case e até hoje é lembrada”, disse Berchmans sobre a trilha para o filme publicitário.
PARTICIPAÇÃO EM CD
O trabalho publicitário fez com que Berchmans deixasse o piano em segundo plano. Mesmo assim, participou do disco “Celso Pixinga & A Gig” (2002), do contrabaixista Celso Pixinga.
Na bolachinha, duas músicas são do pianista. Uma delas, “Aventura”, um pop “grooveado”, cantado por Maria Diniz. Outras três cantoras, Rita Kfouri, Cida Souza e Tatiana Parra, também participam do disco, que traz ainda releituras de músicas de Ivan Lins e Vitor Martins.
PROPAGANDA E ARTE
Após trabalhar na Lua Nova, Berchmans se associou à produtora de áudio Sound Design, onde permaneceu por 14 anos. Lá também seu lado artístico ficava em segundo plano. Na publicidade, teve que aprender a lidar com diretores “malas”. O truque para isso era usar a máxima de Danny Elfman, 62, cantor e compositor norte-americano, responsável por diversas trilhas musicais para o cinema, entre elas, todas do cineasta Tim Burton, 57. A máxima? “Fuck it (foda-se). Você não pode acreditar na propaganda como arte. Usa-se um pouco de conhecimento musical, mas para uma finalidade muito volátil. Passei por momentos legais na propaganda, mas outros terríveis”, falou Berchmans.
Em 2015, Berchmans afastou-se da produção musical publicitária retomando seus interesses artísticos, agora com foco na relação entre música e cinema. Palestras, cursos e oficinas relacionados ao assunto, além do projeto Cinepiano, inviabilizaram sua permanência na produtora. “Comecei a me ausentar para cuidar de minhas criações. Em uma produtora não se pode abandonar clientes e produções. Decidi abandonar a produtora e seguir meu caminho.”
Em 2006, Berchmans publicou o livro “A Música do Filme – Tudo o que você gostaria de saber sobre a música de cinema”. “Resolvi escrever o livro por não achar nada sobre o assunto no Brasil”, contou o escritor que registrou, entre várias informações valiosas, que em 1920 uma das cadeias de cinema de Nova York tinha 800 músicos contratados.
MORRICONE NO BRASIL
Berchmans foi o curador do Música em Cena –1º Encontro Internacional de Música de Cinema, realizado em 2007, no Rio de Janeiro, com a presença do compositor italiano Ennio Morricone, 87, e do argentino Gustavo Santaolalla, 64. Ambos considerados lendas vivas da música para cinema e premiados com o Oscar nessa categoria. Santaolalla abocanhou a estatueta com as trilhas dos filmes “O Segredo de Brokeback Mountain” (2005), do diretor Ang Lee, e “Babel” (2006), de Alejandro Iñárritu. Morricone tem mais de 500 trilhas para filmes e foi agraciado, no último Oscar, pela trilha sonora de “The Hateful Eight” (2016), do diretor Quentin Tarantino.
O evento foi um sucesso, mas não vingou.“Por falta de patrocínio o festival não continuou. Coisas do Brasil”, disse o pianista referindo-se à dificuldade de captar recursos para a realização de novas edições do evento.
CINEPIANO
O projeto Cinepiano é uma homenagem de Berchmans ao cinema mudo, que nunca foi totalmente mudo. Os primeiros filmes eram desprovidos de banda sonora, mas sempre houve músicos (pianistas ou orquestras) acompanhando a projeção dessas películas. Acordes, intervalos entre as notas, andamento, notas graves e agudas auxiliam no significado das cenas. Por exemplo, é automático associar uma sonoridade mais aguda a personagens magrinhos, infantis, pássaros ou mulheres. Quanto aos sons mais graves, a associação é feita com elementos mais negativos e ruins. Servem para representar trovões, relâmpagos, terremotos em filmes que requerem clima de tensão ou terror.
Embora o cinema tenha passado por mais de um século de transformações e evoluções, inclusive sonoras, a música está presente para conduzir a emoção do espectador. Essa música recebe muitos nomes: funcional, aplicada, narrativa ou descritiva. Segundo Berchmans, há críticos que espinafravam a inadequação da performance de músicos que trocavam temas tristes por alegres, não correspondendo ao que se passava nas telas.
A epifania que levou Berchmans a criar o Cinepiano aconteceu ao assistir, ao vivo, em Los Angeles, o organista Bob Mitchell (1912-2009) acompanhar uma projeção de um filme com Rodolfo Valentino (1895-1926). Mitchel foi considerado uma lenda na arte de acompanhar filmes mudos. Atuou fortemente entre 1924 e 1928. Em 1992, retomou suas apresentações até sua morte. “Quando o assisti, em 2008, ele não tocava de uma maneira virtuosa, mas de uma forma extremamente adequada. Parecia que a música saía da tela. Foi uma performance precisa, com uma adequação emocional impecável.”
A primeira sessão do Cinepiano aconteceu em 2010, em Piracicaba, no engenho Monte Alegre, onde Berchmans acompanhou com um teclado o filme “Vida de Cachorro” (1918), de Charlie Chaplin. A partir daí, foram mais de 50 espetáculos que o músico realizou no Brasil e no exterior, passando pela Noruega, Romênia e Itália, entre outros países.
TURNÊ INTERNACIONAL
A partir de junho, o artista tem novas apresentações do Cinepiano agendadas no exterior. Na Romênia, fará um trio de comédias acompanhando filmes de Charles Chaplin, de Buster Keaton (1895-1966) e da dupla O Gordo e o Magro, composta pelo norte-americano Oliver Hardy (1892–1957) e pelo inglês Stan Laurel (1890–1965). Da dupla, Berchmans acompanhará o filme “Double Whoopee” (1929); de Chaplin, “Easy Street” (1917); e de Buster Keaton e Eddie Cline (1891-1961), “The Blacksmith” (1922).
Em Portugal, o músico acompanha a dupla O Gordo e O Magro no filme “Big Business” (1929), e Buster Keaton, no filme “Cops” (1922).
Na Inglaterra, Berchmans acompanhará na abadia Hexham, com um piano de cauda, o filme alemão “Nosferatu”, dirigido por Friedrich Murnau (1888-1931), em cópia de 80 minutos, cedida pelo British Film Institute. Segundo o artista, há muitas versões de “Nosferatu” com cópias que variam de 50 a 110 minutos.
Berchmans gosta de se preparar para cada apresentação, conhecendo o que terá que enfrentar. Experiente, o músico já acompanhou a cópia mais longa de “Metrópolis” (1927), filme alemão de ficção científica realizado pelo cineasta Fritz Lang (1890-1976), com 2h28, sem intervalo. “Fisicamente é bem desgastante. Dá para desmaiar, porque não é um filme que tenha nuances calminhas e momentos tranquilos. Da metade para o fim, o clima é de pânico. Dá para emagrecer”, contou o músico que há três anos tem aulas semanais com a pianista Heloísa Fernandes, que o prepara para esse tipo de maratona física e criativa.
Encerrando a turnê europeia, o músico toca no Museu do Cinema, em Londres, acompanhando, durante 80 minutos, o filme “Lágrimas de Palhaço” (1924), drama do sueco Victor Sjöström (1879-1960).
Entre curtas e longas, Berchmans acompanhou mais de 12 filmes, entre eles, além dos já citados, três de Alfred Hitchcock (1899-1980): “Farmer’s Wife” (1928), (A Mulher do Fazendeiro); “Easy Virtue” (1928), (Mulher Pública); e “The Lodger” (1927), (O Inquilino), que teve seus 76 minutos musicados, ao vivo, na Mostra de Cinema de São Paulo, em 2015.
Nas apresentações, o pianista não utiliza partituras ou guias. O artista faz a música na hora, utilizando seu largo conhecimento, além de alguns motivos (fragmentos musicais que não chegam a ser temas) todos criados por ele.
Muitas são as pessoas que ao assistir ao espetáculo de Berchmans dizem não perceber que havia alguém tocando. Isso é um dos melhores e maiores elogios que artistas dessa modalidade esperam receber.
Compareça à sessão do Cinepiano e esqueça o músico. Perceba a música, deixando-se manipular por ela. Com certeza, você irá lembrar para sempre desse espetáculo.
Assista ao vídeo no qual o Tony Berchamans demonstra alguns clichês utilizados no Cinepiano.
CINEPIANO
O QUE O filme “O Circo”, de Charlie Chaplin, ganha trilha sonora especialmente feita, ao vivo, pelo músico Tony Berchmans ao piano
QUANDO Amanhã (29), 19h
ONDE Sesc Santo Amaro, r. Amador Bueno, 505, São Paulo, tel. (11) 5541-4000
QUANTO Gratuito