Eu, Vandré e sua biografia não autorizada
Era 1978 e eu tinha 15 anos quando encontrei, conversei e me surpreendi com Geraldo Vandré. Ele me deixou perplexo diante de sua atitude aterrorizada com minha presença num show. (Leia post anterior)
Vinte e um anos depois, em 1999, fui novamente em seu encalço. Reencontrei-o. Passamos parte de uma tarde juntos, no centro de São Paulo. Leia, a seguir, como foi esse reencontro com o artista e o doutor Geraldo, personagens que Vandré, na época, desempenhava alternando-os de acordo com o assunto.
21 ANOS DEPOIS
A capa da “Ilustrada”, caderno de cultura da Folha de S.Paulo, de 19 de Fevereiro de 1999, foi minha. Nela, o artigo de Orlando Villas Bôas (1914-2002), “Os Índios: uma só nação”, dividia o espaço de página inteira com uma matéria sobre cânticos de quatro aldeias guaranis, registrados no CD “Ñande Reko Arandu – Memória Viva Guarani”, e uma entrevista com o índio Timóteo da Silva- Verá Popyguá, com o título “Memória da cultura guarani ganha registro em álbum”. Ambas de minha autoria.
O dia da veiculação foi uma sexta-feira. Fui à redação do jornal, e surrupiei o caderno de cima de uma mesa. Rapidamente, “ensovaquei-o”dobrado debaixo do braço e me arranquei. Quando saí do prédio na Barão de Limeira estava me sentindo “o” repórter. Isso foi o bastante para que fosse atrás do mito Geraldo Vandré novamente.
Parti a pé em direção à rua Martins Fontes. Dessa vez só, mas munido de uma confiança atroz. Afinal, no primeiro encontro com o artista, eu ainda era um adolescente. Agora, me tornara um profissional que escrevia para o maior jornal da América Latina. A matéria de capa não desmentia isso.
REENCONTRO
Na primeira vez em que havia encontrado Vandré, ele tocou violão e cantou uma música sua, com a letra em guarani. Minha capa, em pleno frescor, deveria funcionar como um elo para restabelecermos nosso contato. Os guaranis e a matéria talvez fossem um atrativo para o homem falar. O intuito? Uma entrevista para a “Ilustrada”, é claro.
Já diante do mesmo prédio onde conheci o artista, lembranças do primeiro encontro voltaram. Interrompi-as e perguntei ao porteiro, num clima de déja-vu, se o doutor Geraldo Pedrosa morava no apartamento 61, do sexto andar. “Mora sim, mas ele acabou de sair. Deve estar na padaria. Pode ir lá que você o encontra.” “Obrigado”, respondi quase não acreditando.
Desconfiado, marchei poucos passos até a padaria, para completar minha missão. Entrei e rapidamente avistei-o, só. Reconheci-o, mesmo mais velho e com os cabelos grisalhos amarrados, que findavam em um pequeno rabo de cavalo. Uma máquina fotográfica estava pendurada em seu pescoço. Cheguei perto do homem e mandei: “Doutor Geraldo?” “Sim”, ele respondeu. “Estive com o senhor, há muito tempo, em seu apartamento. Na ocasião, o senhor me mostrou uma canção com letra em guarani, muito bonita. Isso faz aproximadamente 21 anos. Eu ainda era estudante da Caetano de Campos. Agora, sou repórter do jornal Folha de S.Paulo, que acaba de publicar essa matéria minha sobre um CD com cânticos guaranis”, disse entregando em suas mãos o exemplar da “Ilustrada”.
O homem passou a ler a capa e, num átimo, interrompeu sua leitura dizendo: “Tenho que visitar um amigo artista aqui perto. Quer ir?”, perguntou devolvendo-me o jornal. “Sim”, respondi sem titubear.
Saímos da padaria e caminhamos conversando em direção ao Edifício Itália. Lá, um amigo dele- lembro-me apenas que era italiano- expunha quadros. Uma mulher apareceu e juntou-se a nós. A conversa fluiu fácil, prazerosa e cheia de informações sobre a Itália, o Brasil, suas luzes, seus céus, suas cores, fotografias e sei lá mais o que. Fui apresentado como jornalista para essas pessoas que o tratavam por Geraldo. Ele parecia tirar fotos de tudo, o tempo inteiro, menos de nós.
NEGATIVAS
Desde o início, relatei a Vandré minha intenção de entrevistá-lo. Ele disse não. Conversamos sobre o evento dos guaranis que iria rolar naquele dia. Perguntei se ele lia a Folha. Ele disse não. Se ele tinha aparelho de CD. Ele disse não. Propus que fôssemos juntos ao show e que ele fizesse um texto a respeito. Ele disse não.
Nesse momento, o homem passou a me mostrar várias fotos, com imagens de aviões voando, pousando, de perto, de longe e do escambau alado. Segundo ele, Geraldo, todas eram de sua autoria. Propus que ele cedesse as fotos para publicá-las no jornal. Ele disse não.
Perguntei se ele tinha feito mais músicas com letras em guarani. Ele disse não. Foi quando me mostrou um papel com a letra impressa de “Fabiana”, música de sua autoria. Propus que falássemos, em entrevista, apenas dessa composição feita em homenagem à FAB (Força Aérea Brasileira). Ele disse não.
Perguntei se ele recebia direitos autorais. Ele disse não, e completou: “Você está querendo falar com o Vandré. Ele não existe mais”. Sugeri, então, que o doutor Geraldo desse uma entrevista para esclarecer como Geraldo Vandré não existia mais. Afinal, aleguei que dois anos antes o Quinteto Violado havia lançado o CD “Quinteto Canta Vandré” (1997), pela gravadora Atração, e que no livro de Gilvandro Filho, “Bodas de Frevo- A História do Quinteto Violado”, o disco foi descrito como “…sem ter a participação direta do compositor, que apenas soube do projeto e deu sua aprovação…”. Ele disse não, e acrescentou que nunca autorizou nada, porque ele não era Geraldo Vandré.
Geraldo falou várias vezes que tinha acabado de voltar de Brasília em um avião. Perguntei se ele viajava de avião da FAB, no “Vasco”, na “faixa”, ou seja, de graça. Ele disse não.
“Geraldo, alguém recebe os direitos autorais do Vandré. Quem é? Tem uma grana nisso. Você está bem de grana?”, perguntei. Foi nesse momento que ele me puxou de lado e muito sério, claramente de saco cheio, falou: “Olha, eu não vou falar nada sobre este trabalho do Quinteto Violado, porque não autorizei nada e não me peça mais para dar entrevista, porque o Vandré não existe”, disse retornando com ares de aborrecido para a roda de amigos.
Já me sentindo um “mala”, chato, indelicado e invasivo, meti meu rabo no meio das pernas e deixei de “fucinhar” insistentemente para adotar uma posição mais contemplativa. O que contemplei? Um artista dentro de outro homem. Para este homem, o artista estava morto.
Permaneci mais um tempo em sua companhia, e de seus amigos, antes de agradecer e me despedir. Já estava indo embora quando ele me chamou e pediu se eu poderia deixar o jornal com ele. Deixei sem saber ao certo com quem, se era com o Geraldo ou com o Vandré. Sei que um deles, ou ambos, disseram: “Parabéns, bonita essa sua matéria”. Chateado, sem conseguir a entrevista, nem liguei para o que ele (ou eles) dissera (m).
Frustrado, voltei para a redação do jornal e comentei com o então editor de “Ilustrada”, Sérgio Dávila, que o homem não quis falar, e que se ele não era louco, “estava com toda a papelada entregue no cartório”. Relatei o que ocorrera desde o início também para Armando Antenore, na ocasião repórter especial da “Ilustrada” e referência, para mim, no jornalismo. Foi ele quem disse: “Você já tem a matéria”. Não acreditei, e nunca dei uma linha sobre o assunto. Até agora.
Nunca mais encontrei Geraldo ou Vandré. Há poucos dias, recebi uma biografia não autorizada, “Vandré- o Homem Que Disse Não”. O livro, escrito pelo jornalista mineiro Jorge Fernando dos Santos, é repleto de informações de qualidade, bem apuradas e contextualizadas. Além de ser prazeroso de ler também é bom de se ver, graças à variada iconografia sobre o artista.
Entretanto, há uma falha nas 312 páginas da brochura, que talvez faça o leitor “brochar”. Nos 450 gramas do livro, é quase possível sentir o peso dos 47 entrevistados pelo autor. Entre eles, nomes importantes da MPB, como Carlos Lyra, Ricardo Cravo Albin e Paulo César Pinheiro, menos o do biografado. Certamente, Vandré disse não.
Ainda assim, a obra vale ser lida. Talvez dessa maneira saiba-se, com mais segurança, um pouco mais sobre quem é esse cara. Seja ele o Geraldo ou o Vandré. Afinal, quem é esse cara?!
VANDRÉ- O HOMEM QUE DISSE NÃO
AUTOR Jorge Fernando dos Santos
EDITORA Geração
QUANTO R$ 39,90
AVALIAÇÃO ** Muito bom