Vicente Barreto mostra “rabo” de seu elefante no El Grande Concerto
O compositor Vicente Barreto, autor entre outros sucessos de “Morena Tropicana”, com Alceu Valença, mostra quatro músicas de seu último CD, “Cambaco”, que em changana (dialeto mais falado de Moçambique, na África), significa “elefante velho e sábio”. O show abre El Grande Concerto IV- Casa de Francisca, hoje (28), às 21hs, no Auditório do Ibirapuera, em São Paulo.
O evento, na sua quarta edição, reúne cerca de 70 artistas, em 18 atrações (veja lista no final do texto), que se revezam em três dias de apresentações, 28, 29 e 30 de agosto.
Hoje e amanhã, os shows acontecem para a platéia interna do auditório. Além de Vicente Barreto e Walter Franco, as cantoras Patrícia Bastos, Ná Ozzetti e Cida Moreira soltam o gogó, entre outros nomes da MPB.
O espetáculo de domingo, dia 30, às 17h, é gratuito e acontece para a platéia da área externa do auditório, parte do projeto arquitetônico de Oscar Niemeyer (1907-2012).
Vicente Barreto recebeu o Música em Letras em seu apartamento, na Vila Mariana, em São Paulo, e falou sobre sua carreira, seu último CD e seu retorno, após ficar dez anos sem gravar. Leia, a seguir, trechos desta conversa.
SERRINHA
Vicente Moreira Barreto, 65, baiano, nasceu no vilarejo de Salgadália, há cerca de 180 km de Salvador. O vilarejo pertence ao Município de Conceição do Coité, e por volta de 1950, quando o artista nasceu, “era uma roça. Acho que só tinha a casa de minha avó. Quando fiz três anos, fomos morar em Serrinha”, disse Barreto referindo-se à cidade onde foi criado, que fica a 10 km do vilarejo.
A avó paterna, pouco antes de Barreto se escafeder mundo afora, deu a letra para o neto. Pitando um cachimbo e vendo o moço tocar, disse: “Meu filho, você toca parecendo seu avô”. “E meu avô tocava?”, perguntou surpreso o músico. “Tocava não, ele paralisava a gente quando tocava”, respondeu a avó. O neto puxou ao avô.
Barreto se encantou com o som do violão vendo o pai tocar. “Ele também fazia um ‘debulhadozinho’ diferente. Quando eu ouvi isso, também fiquei paralisado”, falou referindo-se à maneira própria que ele também desenvolveu para tocar o instrumento. O pai vendo o garoto extasiado o repreendeu: “Pode ir brincar de bola que violão não é coisa para menino”. Instigado, o garoto com dez anos passou a pegar escondido o violão do pai para tocar. As cordas de aço sangraram e calejaram os dedos do garoto que tirava músicas da Jovem Guarda, entre outras. “Em cada ponto da cidade havia uma boca de alto-falante. Ouvi muito Roberto Carlos, Ray Charles (1930-2004), Billy Vaughan (1919-1991) e Ray Conniff (1916-2002)”, disse o músico que corria para casa, com o intuito de tirar logo o que havia escutado para não esquecer.
O pai comprou uma vitrola portátil e discos de Dilermando Reis (1916-1977) e Jackson do Pandeiro (1919-1982). Durante muito tempo, Barreto ouvia os discos, tirava e tocava as músicas escondido. A mãe segurava a onda do garoto. Avisava-o para guardar o instrumento quando o pai estava para chegar.
BÊNÇÃO PATERNA
Um dia, em uma conversa informal na rua da cidade, o talento de Barreto foi citado. O pai, que ouvia indignado, disse: “Rapaz, lá em casa não tem ninguém que toque, não”. Chegando em casa, perguntou ao filho: “Ouvi falar que você toca violão”. “Não, ainda estou aprendendo”, disse o garoto envergonhado e com medo de levar uma “pisa” do pai, que insistiu: “Vá, mostre para mim”. Barreto empunhou o instrumento e solou “Magoado”, choro de Dilermando Reis. Segundo o artista, há muito ele esperava por esse momento de se consagrar diante do pai, como que pedindo uma bênção. Ganhou-a, banhada de lágrimas que escorreram dos olhos do pai, além do aval dito com voz embargada: “Rapaz, você toca mesmo”.
Era de se esperar, afinal Barreto tocava em bailes desde cedo. Deixou os estudos na “quarta série do ginasial” (oitavo ano do ensino fundamental). Ao lado dos músicos Gereba e Capenga, o artista percorria cidades vizinhas, sempre tocando músicas dos Beatles e do rei Roberto Carlos. “Com 15 anos eu já fazia bailes. Batemos até Pernambuco e Ceará tocando”, falou o músico que no grupo atacava de guitarrista. “Era um péssimo guitarrista, mas fazia o que precisava”, completou rindo. O grupo era formado por Barreto (guitarra e voz), Gereba (viola de dez cordas), Capenga (baixo), Zé dos Coros (bateria), Zé de Henrique (teclados) e o crooner Raimundinho Monte Santo.
RIO DE JANEIRO
No começo dos anos 1970, Barreto conheceu Moacyr Albuquerque (morto em 2000), baixista da banda de Caetano Veloso, que gravou, entre outros, o cultuado LP “Transa” (1972), ao lado de Jards Macalé (direção musical, violão e guitarra), Áureo de Souza (baixo elétrico) e Tutty Moreno (bateria e percussão). “Conheci Moacyr em Salvador. Ele se encantou com minha batida no violão e disse que eu deveria ir para o Rio de Janeiro.”
O baixista, entretanto, não foi o único a incentivar Barreto a partir para a Cidade Maravilhosa. Um dos violonistas mais originais que a Bahia já deu, Alcyvando Luz (1937-1998), compositor de “É Preciso Perdoar”, imortalizada pela voz de Caetano Veloso, também encaminhou Barreto para o Rio, mas antes apresentou-o para artistas e intelectuais de Salvador, incluindo Caetano Veloso. “Todo mundo me ouvia e curtia. Acreditei no que falavam e fui para o Rio”, disse Barreto.
“Baião do Quinji”, de autoria de Barreto e Fábio Paes, é música referente a uma cidade perto de Serrinha. Gravada pelo Quinteto Violado, no segundo LP do grupo, “Berra Boi” (1973), fez com que Barreto participasse dos shows integrando a trupe. Todos moravam em um apartamento alugado pela gravadora, no Rio de Janeiro. “Elomar chegou logo depois para ficar neste apartamento e também se encantou com minha batida”, disse Barreto, que permaneceu cerca de dois anos no Rio de Janeiro antes de mudar para São Paulo.
SÃO PAULO
Nos shows que apresentou em São Paulo, ao lado de Elomar e do Quinteto Violado, Barreto fez vários amigos. Era na casa deles que se alojava quando chegou na cidade. Em mais de 40 anos morando em São Paulo, Barreto passou pelos bairros Alto de Pinheiros, Perdizes, Vila Buarque, estabelecendo-se finalmente na Vila Mariana. “A cidade soube acolher a mim, minha família e minha carreira. Não troco São Paulo por nada, adoro aqui. Nem com Salvador, que gosto muito, tenho uma identificação tão grande.”
CARREIRA E PARCEIROS
O “apaulistanado” baiano tem carreira sólida. Fez parceria com Tom Zé, gravando os discos “Estudando o Samba” (1976) e o “Correio da Estação do Brás” (1978).
O primeiro disco de Barreto foi um compacto simples gravado com músicos do Quinteto Violado, em 1974. Das músicas, “Ça Mãe, Ça Pai” e “Janelas Caindo”, em parceria com Fábio Paes, uma delas traz uma curiosidade. “Ça Mãe, Ça Pai” é a única música que ganhou letra de Barreto. Daí em diante, o encargo de “letrificar”suas músicas “envenenadas” por sua batida ficou por conta de gente do ramo. Foram dez discos lançados em que figuram excelentes parceiros de composições. Além de Alceu Valença, Barreto musicou a letra de “Eterno Retorno”, de Vinicius de Moraes (1913-1980); com Gonzaguinha (1945-1991) fez “Abençoado e Santo”; e com Paulo César Pinheiro tem várias. Entre elas, “Na Volta Que o Mundo Dá”, gravada por Mônica Salmaso, no disco “Trampolim” (1998); “Capitão do Mato”, gravada por Maria Bethânia, em “Brasileirinho” (2003); e “Roda de Capoeira”, recentemente registrada por Fabiana Cozza, em seu último disco, “Partir” (2015).
SILÊNCIO
Barreto ficou dez anos sem gravar. O motivo? “Passei dez anos de muita luta aqui dentro de casa. Achava que dez discos já estava bom. Não queria gravar mais. Fui adiando, formava um repertório, mas depois guardava. Continuei produzindo, muita gente foi me gravando, mas eu não queria entrar no estúdio. Não tinha porquê”, disse o artista que havia se prometido só gravar novamente se alguma coisa o emocionasse. Ao olhar para seus discos, Barreto não quis se repetir. Não era mais hora de enfatizar sua peculiar batida de violão, sua levada ou qualquer coisa que já houvesse feito. Entre seus receios, pairava o de virar artesanato de si próprio, mesmo que isto lhe garantisse a sobrevivência. “Não estaria crescendo como artista. Estaria imitando a mim mesmo, percebe?”
VOLTANDO A GRAVAR
Há cerca de um ano, incentivado pela família, em especial pelo filho Rafa Barreto, cantor, músico e produtor, Vicente Barreto se dispôs a pensar em um disco. Do sofá de sua sala, onde compõe, surgiu uma frase musical que o emocionou. Ela apareceu e fez com que o artista retornasse a seus primórdios, quando ainda tocava violão utilizando apenas dois dedos. Era o início de “Herança”, primeira música feita exclusivamente para compor o repertório de dez músicas, de seu 11º disco, “Cambaco”, e o começo de uma nova vida. O gatilho que disparou o desencalhe do artista ganhou letra do filho Rafa, autor de outra música no disco, “Batendo Sabão”, um samba “jazzeado”, diferente. Depois de “Herança”, Barreto disparou a compor as outras nove faixas.
“Cambaco” (veja vídeo), parceria com Manu Maltez, mostra que musicalmente Barreto enveredou por um caminho mais rítmico. “Utilizei mais a parte de cima do violão. Fiz essas linhas de baixo, com teor mais jazzístico. Depois passo pelo som que remete ao Baden Powell (1937-2000), por quem tenho grande admiração, antes de ir para Bahia e entrar em um afoxé.”
Sobre a letra de “Cambaco”, o músico falou que Maltez, ao escutar a música, enxergou uma manada de elefantes e propôs contar a história dos paquidermes que se retiram das manadas para morrer. A identificação de Barreto com a história foi automática. “Quando ele me contou isso, pensei, que conversa linda é essa. Era eu.” Junto de Maltez, o baiano compôs ainda “O Preço do Amanhecer”, que retrata a situação em que estava, vendo o mundo e compondo do sofá de sua sala, em companhia de suas cinco hérnias e jurando não bulir mais na viola. Tudo foi parar na letra.
“Chororô”, a terceira da lista a entrar no repertório, tem letra de Rômulo Fróes, que também escreveu “Tataravô”. Em “Karina” e “Jardim Japão”, o baiano divide autoria com Rodrigo Campos. Com Kiko Dinucci, compôs “Tipo de Conversa” e “Sabiás”, em cima de levadas recém- descobertas.“Boró”, uma homenagem do artista ao violonista Banden Powell, é a única instrumental da bolacha. O disco, com participações de Thiago França (sax) e da cantora Juçara Marçal, ainda não tem data certa para sair.
As músicas do disco que, segundo o artista custou mais de R$ 30 mil, reúnem influências sofridas por Barreto durante sua carreira, que passam pela bossa nova, samba de roda e pela escola dos bailes. Desta vez, o músico escapa um pouco das harmonias destacando as nuances rítmicas. Prato cheio para o baterista Sergio Machado, presente no disco. Os temas se caracterizam por grooves, com introduções pulsantes afloradas sempre por linhas de baixo, ou compostas para chamarem bem a atenção para o que está por vir.
“Tataravô”, “Herança”, “Cambaco” e “Tipo de Conversa” estão no show El Grande Concerto IV. Quem for ao espetáculo verá, além do lado baião, bossa nova ou samba de Barreto, isso tudo aliado a novas possibilidades. Principalmente a de se reinventar com muita poesia e suingue.
Assista ao vídeo abaixo em que Vicente Barreto interpreta “Cambaco”, com exclusividade, para o Música em Letras.
El Grande Concerto IV, da Casa de Francisca
QUANDO dias 28(sexta-feira) e 29 (sábado), às 21h, dia 30 (domingo), às 17h
ONDE Auditório Ibirapuera Oscar Niemeyer, pq. Ibirapuera – av. Pedro Álvares Cabral, s/nº, portões 2 e 3, tel. (11) 3629-1075
QUANTO R$ 10 (meia) a R$ 20 (inteira), nos dias 28 e 29. Dia 30, gratuito
ARTISTAS DO DIA 28: Felipe Cordeiro, Manoel Cordeiro, Maurício Pereira, Nelson da Rabeca, Dona Benedita, Panda Gianfratti, Patrícia Bastos, Dante Ozzetti, Norberto Vinhas, Vicente Barreto, Rafa Barreto, Marcelo Cabral, Serginho Machado, Manu Maltez, Ná Ozzetti e Passo Torto (Romulo Fróes, Kiko Dinucci, Rodrigo Campos e Marcelo Cabral), Juçara Marçal, Kiko Dinucci, Rodrigo Campos, Thiago França
ARTISTAS DO DIA 29: Cacá Machado, Celso Sim, Pepê Mata Machado, Márcio Arantes, Guilherme Kastrup, Suzana Salles, Cida Moreira, Walter Franco, Alessandra Leão, Rodrigo Caçapa, Ricardo Carneiro, Missionário José, Mestre Nico, Ná Ozzetti, Zé Miguel Wisnik, Márcio Arantes, Sérgio Reze, Arrigo Barnabé, Pedro Gadelha, Marcelo Pretto, Vanessa Moreno, Fi Maróstica, Saraivada (Chico Saraiva, Denílson Oliveira, Rafael Ceará, Larissa Finochiaro, Letícia Torança, Rubinho Antunes, César Roversi e Priscila Brigante)