Léa Freire leva seu “som de navio” a Nova York
O Música em Letras esteve na casa da compositora, arranjadora, flautista e pianista Léa Freire, que embarca, setembro próximo, para Nova York, onde realizará um show com o quinteto Vento em Madeira e com o pianista Amilton Godoy, músico com quem ela acaba de gravar um CD em duo. O show resultará em DVD.
A flautista, que durante sua vida já adotou 35 cães, hoje conta com três deles em sua casa. Dois da raça pitbull, Zezé, 11, e Mazzaropi, 8, além de Gorilinha, 3, uma pug preta. “Sempre tenho três cachorros. Nunca fico sem”, falou.
Leia mais sobre esta artista que acredita na música instrumental brasileira, embora alguns ainda pensem que ela é uma “mentira”, e conheça, assistindo ao vídeo no final da matéria, a flauta contrabaixo – no Brasil parece que existem apenas três- que a instrumentista adquiriu recentemente e já gravou seu som em disco.
GÊNESE
Engana-se quem pensa que só o sopro da paulistana Léa Silvia de Carvalho Freire, 58, é o que impulsiona as velas de sua carreira, há mais 40 anos, pelos mares da música. Ele veio depois que a menina – acostumada a ouvir a mãe e o pai tocando em casa-, se interessou pelo instrumento da mãe. “Ela tocava piano e ele, violão. A gente ficava cantando e eu tentava tocar piano”, disse a compositora que iniciou seus estudos neste instrumento aos sete anos, mas o usava como brinquedo desde criança, pois sempre teve piano onde morou.
A primeira professora foi uma alemã “modernete”, que em 1964 ia de bicicleta até a casa dos pais de Léa, no bairro do Brooklin, em São Paulo, para ensinar a menina a tocar piano. Um dia, a jovem aluna errou uma nota e apanhou da mestra “antiguete” levando uma “lapada” bem dada, com um lápis, na palma da mão. Respeitando a Terceira Lei de Newton (ação e reação, lembra?), a precoce Ronda Rousey do Brooklin paulistano revidou com um tapa na insensata professora. “Ninguém nunca havia me batido, nem na rua. Eu jogava futebol com os meninos e nem durante os jogos isso acontecia”, falou a flautista que relatou para a mãe o que aconteceu, culminando na dispensa dos serviços “desprestados” pela mestra alemã.
Depois disso, Léa foi estudar o instrumento, com a professora Ercília Boggi, na Escola Magdalena Tagliaferro, durante 11 anos. “Ela me deixava fazer tudo que queria. Nunca me obrigou a nada”, contou a musicista que dividia seu tempo na juventude entre música, andar de bicicleta, subir em árvores e jogar futebol. E “jogava muito bem”, completou Léa.
Em 1974, Léa ingressou no CLAM (Centro Livre de Aprendizagem Musical), escola de música do Zimbo Trio, para estudar com o baixista Luís Chaves (1931-2007). No ano seguinte, passa de aluna a professora de solfejo, flauta e violão, instrumento que fora inicialmente aprender. Um de seus alunos, naquela ocasião, era o hoje consagrado instrumentista de sopro Teco Cardoso.
Léa ensinou por cerca de dois anos e meio no CLAM. “O Amilton (Godoy, integrante do Zimbo Trio e um dos donos da escola) queria que eu desse aulas de piano, mas eu não tinha mais horário. Dava 30 aulas por semana, tocava à noite e não aceitei”, falou Léa que na ocasião tocava, entre outros, com Filó Machado e integrava o consagrado regional do bandolinista Evandro (1932-1994). Atualmente, Léa retomou as aulas de piano tendo Godoy como professor. “Não tenho a pretensão de ser uma pianista, mas até que toco bem”, falou rindo a musicista.
NO JOGRAL
As apresentações do regional do Evandro com a flautista aconteciam na casa noturna paulistana Jogral, já em sua terceira sede, na rua Maceió. O local que foi ponto de encontro de boêmios, músicos, artistas e compositores da música brasileira, teve como fundadores Luiz Carlos Paraná (1932-1970), cantor e compositor paranaense, e Marcus Pereira, publicitário, advogado e fundador da gravadora Discos Marcus Pereira, morto em 1981.
A gravadora de Pereira lançou discos excelentes entre 1974 e 1981. Entre eles, “Onze Sambas e uma Capoeira” (1967), de Paulo Vanzolini (1924-2013), e “Cartola” (1974), primeiro disco solo do mestre do samba (1908-1980). Ambos os LPs traziam a marca do Jogral.
Para Léa Freire, entre outras, ficou a lembrança de, nos intervalos das apresentações, sair com os demais músicos para comerem bisteca no Sujinho, conhecido em São Paulo como “Bar das Putas”. “Eu adorava”, comentou a flautista que gosta de comer bem.
ESTUDOS
Depois de cursar o ginásio e o colegial no Colégio Vocacional, entre os 11 e 17 anos, Léa entrou na USP para estudar sociologia, mas abandonou no primeiro ano. “Não tinha aula. Eu tinha que tocar à noite. Saí do período da manhã e fui transferida para o período da noite, pois não havia o curso à tarde. De noite, só havia duas disciplinas. As duas no mesmo horário. Nem prédio tinha direito. Desisti”, contou a compositora que decidiu, em 1978, estudar na Berklee College of Music, em Boston, nos Estados Unidos.
Na terra do Tio Sam, casou-se com o guitarrista brasileiro José Neto, o Netão, que tocou com o rei do calipso, Harry Belafonte, 88. Atualmente, há muito separado de Léa, Netão toca com o multi-instrumentista inglês Steve Winwood. “Fomos para ficar quatro anos na escola. Ficamos duas semanas e mudamos para Nova York”, contou a artista que assistia aos shows no Village Vanguard da escada, pois “eram muito caros”.
Léa não permaneceu na Berklee, em Boston, pois foi aconselhada por um professor a deixar o curso e ir tocar. “Peguei um nível muito alto no teste de seleção. Fiquei em uma classe com pessoas que tinham ouvido absoluto e eu nem tenho isso”, contou a compositora que transcreveu para o papel corretamente as frases musicais reproduzidas pelo professor norte-americano, o mesmo que a incentivou a cair na estrada e tocar. “Ele tocou duas ou três vezes uma frase do (saxofonista) Cannonball Adderley (1928-1975) e eu escrevi a frase inteira.”
A garota seguiu o conselho do homem e partiu para o que a realizava. “Queria tocar com todo mundo”, falou a flautista que teve seu primeiro duo de flauta ao lado do pianista Guilherme Vergueiro, em Nova York.
GOLPE DE ESTADO
Depois de morar dois anos em Nova York, Léa voltou solteira para o Brasil. Veio “mochilando”, durante um mês, pelo Peru e Bolívia, onde vivenciou o golpe de Estado, em 1980, dado por Luis García Meza Tejada. Considerado um dos mais cruéis ditadores sul-americanos e ligado ao cartel de produtores de cocaína do país, Meza instituiu uma ditadura narcomilitar. Foi a primeira e única vez que um cartel de narcotraficantes assumiu o poder constitucional de um país. “Naquela época, na Bolívia, tinha mais golpes do que anos de República. A cada oito ou nove meses, havia um golpe. Neste, que presenciei, fechou tudo. Fiquei eu e minha flauta (uma Armstrong 104) na mochila, junto a uns estrangeiros esperando a poeira baixar para podermos sair do país”, contou a compositora dizendo, contudo, que esta foi uma viagem e tanto. “É um livro à parte”, completou.
Léa voltou a tocar na noite de São Paulo e a dar aulas particulares. Conheceu o contrabaixista Sizão e com ele se casou. Com o nascimento do segundo filho, Fernando, 30, baixista do grupo de rock Garotas Suecas, Léa resolveu “parar no som” e trabalhar de teletipista (operadora de telex) em uma empresa da família. “Parei de tocar, vendi todos meus instrumentos (flautas, pedaleira e saxes) e fiquei trabalhando durante 11 anos na empresa, onde comecei no telex e acabei como diretora financeira.” Mas por que o nascimento de um filho a fez desistir de uma carreira tão promissora, perguntei. “Eu estava tocando no Anexo (restaurante que funcionava no mezanino da concessionária de carros Dacon, na Avenida Europa, em São Paulo) e, naquela época, havia três meses de licença maternidade. Pensei em ficar só um mês fora, mas quando voltei já tinha sido despedida. Isto foi a gota d’água para mim.”
Separada do músico Sizão, magoada com a música e com o tratamento dado aos músicos no Brasil, Léa se afastou dos palcos e estúdios e passou a compor. “No fim das contas, descobri, nesta época, em 1984, que meu negócio era compor. Gosto de tocar, mas não gosto de ficar perdendo tempo com uma nota que não sai. Às vezes, são seis dias de estudo para que tal nota saia naquela sequência específica. Pelo amor de Deus! Dá para escrever umas cinco músicas nesse tempo”, explicou rindo.
Em 1996, Léa ganhava bem como diretora financeira, mas ficou doente. O motivo? Havia parado de tocar por 11 anos. “Tenho certeza de que foi isso. Resolvi montar um quinteto e voltar a tocar. Melhorei rapidinho”, disse.
MULHER NO SOM
Segundo a artista, se você é mulher e quer ser músico, prepare-se. “É muito difícil. Nego te trata mal só pelo fato de você ser mulher. Desde o empregador ao público. O fato é que eu não correspondo às expectativas. As pessoas permitem que você seja no máximo uma cantora. Compositora e instrumentista é difícil.” Qual a origem disso? “Vem da educação das pessoas de acharem que mulheres não fazem certas coisas e ponto. Entre elas, tocar e escrever arranjos. Não tem um porquê. É porque sim, entendeu?” A flautista contou que cansou de chegar em lugares cheio de músicos e “nem me olhavam e nem me davam bom dia”. Isto ocorre só no Brasil? “Essa discriminação contra a mulher existe em alguns lugares menos e em outros mais. Aqui tem bastante.”
A artista mencionou que o disco gravado pelo pianista Amilton Godoy, “Amilton Godoy e a música de Léa Freire”, causou em muitos pianistas espanto, ao saberem que ela havia escrito os arranjos e não Godoy. “É claro! Ele é homem e eu sou mulher. O pessoal até brinca dizendo que estou com mania de perseguição, mas o Teco Cardoso já presenciou um técnico de som me perguntando se quem fazia as músicas do Vento em Madeira era eu mesma ou os meninos”, contou a compositora que esteve recentemente em Buenos Aires, realizando um show de grande sucesso no novo Centro Cultural Kirchner, ao lado de Amilton Godoy. “Quando terminou o show, veio um brasileiro e me disse: ‘Nossa Léa, conheço seu trabalho, é bom para caramba. Agora que eu vi você tocando piano, fazendo as bases para o Amilton, deu para ver que não é mentira’. Não é fácil, bicho. O pior é contar para os amigos e eles acharem que isso não existe.”
Sem revelar quem, a flautista disse que foi procurada após ter feito um belo solo, tocando em um bar de São Paulo, por um famoso cantor e compositor brasileiro que, sem pensar, mandou: “Galega, tu toca, que até parece um homem”. Léa, pensando, disparou: “Sua mãe também”. O artista desconcertado tentou “descometer” a gafe: “Galega, estou tentando te elogiar”. E ela: “Tente novamente. Haja paciência”.
MARITACA
No ano de 1997, a flautista fundou a gravadora Maritaca que conta em seu acervo com mais de 45 discos lançados. “A Maritaca foi diminuindo e hoje tem venda digital. Em 2005, entrei em um ano sabático, que está durando dez. Produzo pouca coisa e tenho um estoque ridículo”, falou a produtora que gravou seu último disco, ainda sem nome, em duo com o pianista Amilton Godoy, pela gravadora. Além deste, há “TC²”, ainda a ser lançado, que também traz um duo com Teco Cardoso (sopros) e Tiago Costa (piano). O Música em Letras teve oportunidade de ouvir outro CD da gravadora Maritaca, que está para sair do forno, o do saxofonista Proveta, com músicas do clarinetista K-Ximbinho (1917-1980), um assombro de bonito.
O DVD que Léa grava em Nova York, com o quinteto Vento em Madeira, também sai pela Maritaca. De todos os discos lançados pela gravadora, apenas dois tiveram incentivos que não vieram dos bolsos da flautista. Você teve prejuízo com a gravadora? “É claro, mas considero isso como investimento. Não vou ter retorno nunca. O retorno é cultural, ideológico, da minha causa na vida, entendeu?”, disse a empresária.
O NAVIO
A flauta transversal aparece na vida de Léa pelas mãos do pai que fez com ela um escambo em busca de paz. “Foi à base de troca. Ele ficou com a flauta doce que eu tinha e me deu a transversal”, disse a flautista que infernizava a todos da casa tocando o instrumento que, apesar do nome, é permitido para diabéticos, mas amarga fácil a vida de quem tem baixa tolerância ao seu timbre.
Na flauta transversal, Léa é autodidata. “Tanto que eu comecei a tocar com o Filó e tive que olhar no manual como é que se fazia um mi bemol”, contou rindo a instrumentista.
Léa assistiu pela internet a uma exibição do flautista Sérgio Morais, de Brasília, tocando uma flauta contrabaixo. Segundo Léa, isso despertou nela “um desejo imediato de consumo”. Começou a pesquisar e encontrou várias flautas. “Tem umas que dão para fazer cozinha, banheiro e lavabo”, falou rindo, referindo-se às muitas “conexões” de engate que alguns instrumentos possuem. O dela tem seis partes conectáveis e por isso foi alcunhado de “Tigrão”, uma alusão bem humorada à marca Tigre de tubos e conexões, utilizada em obras hidráulicas.
No começo deste ano, Léa recebeu um e-mail do flautista norte-americano, Keith Underwood, de quem é amiga, dizendo que ele estava vendendo sua flauta contrabaixo da marca japonesa Kotato. “É uma ótima flauta e estava com um preço bacana. Não resisti e comprei”, disse a flautista que pagou R$ 12 mil dólares pelo instrumento, que pode custar até R$ 40 mil. O peso do “brinquedo” é de aproximadamente quatro quilos. Quem foi buscá-lo para Léa, em Nova York, foi Teco Cardoso, que trouxe os largos canudos niquelados desmembrados em um estojo, no começo de junho. A flautista está encantada com seu mais novo “brinquedo”. Segundo Léa, talvez existam apenas mais duas flautas iguais à dela no Brasil.
O que tem descoberto com o novo instrumento? “Olha, ele vem com um ‘baratinho’. Quando se começa a tocar flauta fica-se tontinho e depois passa, né? Só que com esse flautão, a coisa passa e depois começa tudo de novo”, contou rindo Léa que já utilizou o instrumento para fazer linhas de contrabaixo na gravação com Godoy. Léa disse que embora tenha um tamanho grande- maior do que ela em pé-, o instrumento, que tem três oitavas e emite muitos harmônicos, é bem sensível. Quando se toca sua nota mais grave ( dó ), parece um apito de navio.
Quando utilizada em grupo, a flauta deve ser acoplada a um captador para amplificar seu som. “Ela tem uma delicadeza em seu volume. Tem que amplificar para ganhar um corpinho”, falou Léa.
DUO COM AMILTON GODOY
O Música em Letras ouviu parte de um CD pré-mixado, gravado recentemente pela flautista com o pianista Amilton Godoy.
Todas as músicas gravadas no CD, ainda sem nome, mixagem e masterização são de autoria da compositora que as concebeu entre 1995 e 2015. São 13 faixas de música brasileira de alta qualidade que passeiam por vários gêneros, inclusive bolero. Entre elas, “Meio Dia”, trazendo o som da flauta contrabaixo de Léa mesclado ao do piano de Godoy, em uma toada. Léa estava com seus filhos, ao meio dia, olhando pela janela da cozinha, que dava para um estábulo, em sua casa de Piedade (interior de São Paulo) e assistiram ao nascimento de uma bezerra que, além de ganhar o nome de Meio Dia, ganhou esta música. Ainda no disco, que deve ser lançado só em 2016, “Sem Dó em Piedade”, um choro samba composto na cidade homônima, e “Risco”, um samba canção, com arranjo de Godoy. “Temperança”, uma chacarera (dança popular originária do noroeste da Argentina e do sul da Bolívia) vem com letra de Francesca Ancarola, 47, cantora e compositora chilena.
O disco, que custou por volta de R$ 30 mil, foi pensado para mostrar mais o lado da musicalidade do pianista do que o da da flautista. “Eu tentei não encher o Amilton tanto de ‘bolinhas’ (notas) e dar mais cifras (harmonias) para ele, entendeu?”, contou a instrumentista. Amilton utiliza seu lado arranjador do Zimbo Trio e “caneteia” escrevendo para as músicas de Léa. O resultado? Um delicioso samba jazz onde a mão esquerda do pianista “samba”, na levada, enquanto a mão direita “jazzeia”, com seus fraseados. Um “veneno” próprio que faz do homem um especialista nisso. “Queremos fazer mais dois discos. Um com músicas só dele e outro com os pot-pourri que ele faz que são maravilhosos”, revelou a flautista que, com este, totaliza dez discos gravados.
NOVA YORK – SÃO PAULO
A flautista vai em setembro para Nova York realizar um show duplo com o quinteto Vento em Madeira (haverá participação da cantora Mônica Salmaso) e com o duo formado por ela e Amilton Godoy. “Estamos pensando em tocar, além de nossas composições, algumas de Jobim e Caymmi. Nosso problema é que temos excesso de repertório.”
O show acontece no Roulett, casa afamada por apresentar música de vanguarda no número 509 da Atlantic Avenue, esquina da 3rd Avenue, no Brooklyn. “Os lugares na cidade ou eram muito pequenos ou muito grandes e todos muito caros. Optamos pelo Roulett por ter o tamanho ideal de nosso projeto, além de comportar as oito câmeras que estamos levando para gravar o DVD”, contou Léa.
Se você não pode ir para Nova York, a flautista mostra em São Paulo, nos dias 8 e 16 de setembro, às 21h, no Espaço Cachuera, rua Monte Alegre, 1094, tel: (11) 3872-8113 e 3875-5563, o que irá apresentar nos Estados Unidos. Os ingressos custam de R$ 15 a R$ 30.
Assista ao vídeo e navegue com a flautista por esse som.