Renato Teixeira, 70 anos sem tomar Coca-Cola
Assista vídeo com Renato Teixeira cantando um trecho sua mais nova canção “Passatempo”, acompanhado pelo músico Natan Marques
Verdadeiro em suas composições, Renato Teixeira jamais teria escrito a letra da música “Você Não Entende Nada”, de Caetano Veloso. Teixeira nunca tomou Coca-Cola e adoça seu café com Stévia, ao invés da morta Suíta, marca de adoçante mencionada na letra de Veloso. Cigarros, Teixeira, que completa 70 primaveras amanhã, dia 20, fuma “paiero” (cigarro de palha), só dos manufaturados. Música, continua fazendo. Sempre boas, “chicletudas” (que grudam no ouvido) e ao lado de excelentes músicos. Há menos de um mês, gravou um disco, com 14 faixas, com a Orquestra do Estado de Mato Grosso, que será lançado até o final do ano. Com seu parceiro Almir Sater, está finalizando outro CD, na “gringa”, em Nashville, apelidada de “Music City” (Cidade da Música), nos Estados Unidos. Ao lado do cantor Sérgio Reis, está lançando o DVD “Amizade Sincera-II”. Além de tudo isso, um CD só com inéditas também está pronto, mas o artista aguarda o momento certo para lançá-lo.
O compositor de “Romaria” (1977), que segundo o poeta Haroldo de Campos (1929-2003) era uma das melhores letras da MPB, recebeu o Música em Letras para uma conversa banhada a café com queijo Minas, em sua casa, na Serra da Cantareira, em São Paulo.
Leia, a seguir, trechos desse encontro e assista o vídeo em que o compositor canta com exclusividade ao Música em Letras o refrão de sua mais nova canção, “Passatempo”, ao lado de seu fiel escudeiro, o guitarrista, maestro e arranjador Natan Marques.
COCA-COLA
“Renato, é verdade que você nunca tomou Coca-Cola?”, perguntei. “Graças a Deus. Nunca senti vontade, nem para sentir o cheiro. Não sei nem do que se trata”, disse o artista. “Mas guaraná, você toma?”, perguntei novamente. “Já tomei, mas agora parei. Refrigerante, depois de uma certa idade, começa a comprometer, entendeu? Tomava Fanta. Fanta eu gosto, Crush também.” “Mas por que você fez essa opção de não tomar Coca-Cola?”, insisti. “O meu organismo nunca pediu. É rejeição. Sabe quando você vai comer um negócio e só de olhar já sabe que não quer comer aquilo. Quem come é o olho, né? Agora, beber aquela água preta, bicho, não dá, né?” “Café é preto, Renato, e já tomamos quase uma garrafa”, contra-argumentei. “Mas é quentinho”, explicou rindo.
“E se a Coca-Cola fizesse uma proposta, com uma bela grana, para você tomar um copo na frente das câmeras da TV ?”, instiguei. “Não faria, mas você sabe a história do Churchill (Sir Winston Leonard Spencer-Churchill, 1874-1965, estadista e político britânico) com a rainha Elizabeth?” “Não”, respondi. “Eles estavam em uma festa, depois da (Segunda) Guerra, no palácio de Buckingham, e começaram a falar que fulano se vendeu, sicrano também, e o Churchill falou: ‘Todo homem tem seu preço.’ Aí, a rainha disse: ‘Desculpe, mas não me venderia nem por dez bilhões de dólares.’ O Churchill respondeu: ‘Já começamos a falar em números.’”, contou rindo o músico e completou: “Aceito conversar com a Coca-Cola, a gente toma remédio, pô… Mas poder ir embora (morrer), sem nunca ter tomado, é bom também, entendeu?”
CÃES
Teixeira tem seis cães em sua casa. Um lindo e vistoso casal de pastores alemães, que ficam presos no canil. “O macho é bravo, mas a fêmea é bem boazinha”, disse Teixeira, dono dos animais que são soltos à noite. Há ainda um fox paulistinha, uma terrier tibetana e Django, um simpático buldogue inglês, com menos de um ano. O bicho parece uma tora castanha amarelada, um imenso e gordo provolone, munido de quatro patas. Django come tudo o que vê para chamar a atenção. Enquanto o Música em Letras esteve lá, Django interrompeu a entrevista três vezes, sempre ostentando objetos em sua imensa boca. Na última vez, foi colocado para fora do recinto por seu dono ao trucidar uma bonequinha de plástico, depois de detonar também uma revista.
Entretanto, o mais engraçado é um buldogue francês de cor preta, alcunhado de Coca-Cola. “É do meu irmão”, justificou Teixeira referindo-se a Roberto de Oliveira, real proprietário do “cão refrigerante”. Para o compositor, de todos o mais inteligente é o fox paulistinha.
MATO GROSSO
Teixeira acaba de realizar oito shows em oito cidades diferentes e gravar um CD no Mato Grosso, onde permaneceu durante 15 dias. “Foram dois dias de ensaio, dois para gravarmos o CD, e o resto para realizarmos os shows. Mais o dia de ir e o dia de vir, dá quinze, no total”, disse o artista que esbanja vitalidade aos 70 anos e afirmou não cobrar para cantar. “Cobro a viagem.”
Quanto aos shows, Teixeira chegou a tocar para multidões que aguardavam as apresentações de Michel Teló e de outras duplas sertanejas. “Na hora em que a orquestra tocou, ficou o maior silêncio. Todo mundo ouviu e curtiu”, falou.
A primeira lembrança que Teixeira tem do Estado de Mato Grosso o marcou para sempre. “Eu era menino, morava em Ubatuba. Um dia, fui ao circo para ver, pela primeira vez, música ao vivo, música cantada. Aí, entrou um trio chamado Os Três Turunas, lá de Taubaté. Dois eram filhos do Anacleto Rosas Junior (1911-1975), um dos principais compositores caipiras, mais o Teodoro. Eles cantaram uma música chamada ‘Mestiça’: Se ocê for prá Mato Grosso…”, cantarolou o músico. “Cara, eu gostei tanto de ver música ao vivo, com os caras cantando, que eu decorei a música toda e sai do circo cantando”, falou o compositor que, na ocasião, tinha entre oito ou nove anos, e por toda sua vida tocou e cantou essa música. “Quando aprendi a tocar violão, tocava ela direto.”
Segundo Teixeira, quando alguém se referia ao Pantanal,“achava que era um pântano, um lugar que você não pode entrar, como o pântano de Ubatuba”. “Quando conheci o Almir (Sater), me aproximei mais do Mato Grosso do Sul e nesses últimos trinta anos vamos sempre para lá. Meu filho, o Chico, casou com uma moça de Campo Grande. Depois, se separou, mas meu neto mora lá e vou sempre que posso”, falou.
A primeira vez que passou de avião por Campo Grande, o músico não desceu da aeronave. “O avião fez uma escala lá. Quando cheguei aqui em São Paulo, liguei para o Almir e falei: Almir, na sua cidade só tem dois prédios. Na minha, Taubaté, tem mais prédio que a sua”, contou rindo completando: “Hoje, aquilo parece um paliteiro”.
Entretanto, antes de conhecer o instrumentista Almir Sater, Teixeira travou amizade com o clã mato-grossense dos Espíndola- Tetê, Geraldo, Celito, Alzira e Jerry-, todos artistas ligados à música. “Me liguei com muita gente de lá, o Roca foi meu primeiro amigo mato-grossense”, disse Teixeira referindo-se ao compositor carioca Geraldo de Almeida Roca, radicado no Mato Grosso desde 1988, e compositor de “Trem do Pantanal”, com Paulo Simões. Ambos compuseram a primeira estrofe dessa famosa canção, em 1975, viajando para Santa Cruz de La Sierra, em uma cabine do Trem do Pantanal (nome oficial, Pantanal Express). Foram até Corumbá e lá embarcaram no chamado Trem da Morte, sua extensão boliviana. A música nasceu com o título “Trilhos da Terra”, antes de ser rebatizada como “Trem do Pantanal”. Em sua letra, a expressão “mais um fugitivo da guerra” refere-se à fuga empreendida por Paulo Simões dos militares que tinham atacado, no Rio de Janeiro, a célula do PCB (Partido Comunista Brasileiro) que Simões frequentava, em 1975, embora tivesse apenas 17 anos.
A música só virou sucesso- uma espécie de hino não oficial do Estado de Mato Grosso do Sul-, com a gravação de Almir Sater e muitos outros cantores, totalizando mais de cem regravações. Apesar de serem uma dupla no início, hoje, Paulinho Simões, como é conhecido, e Geraldo Roca têm carreiras solo, sendo que o último é um dos compositores mais gravados e influentes do Estado. Entre suas músicas estão “Uma Pra Estrada”, “Polca Outra Vez”, “Japonês Tem Três Filhas” e ” Mochileira”. De Simões, que teve suas músicas gravadas por Sérgio Reis, entre outros, destaca-se “Capim de Ribanceira”, dele e de Almir Sater.
ORQUESTRA DO ESTADO DE MATO GROSSO
Segundo Teixeira, “o Mato Grosso, por conta de seus artistas, virou um centro musical muito expressivo. Quando surgiu a oportunidade de realizarmos os shows e o disco com a orquestra, pegamos algumas músicas do meu disco ‘Mato Grosso do Sul Meu Amor’ e outras que representam o Estado como um todo”, falou o artista que, ao lado do maestro e secretário de Cultura do Estado Leandro Carvalho, além de 25 músicos jovens de vários lugares do país, gravaram 14 músicas homenageando o Estado.
“A orquestra tem dez anos e este contato com ela fez com que eu percebesse que o maestro gosta do belo. Não o Belo cantor”, disse rindo, Teixeira.
A trupe, formada por excelentes músicos, contou ainda com o apoio dos violões de 12 e seis cordas dos músicos Natan Marques e Chico Teixeira, filho de Renato. “Os mais fraquinhos ali eram o Chico e o Natan”, disse rindo Teixeira. “A entrada do Chico e do Natan é minha marca. Sem eles, não tem eu. Se não tiver uma viola e um violão bem tocados, não estou.”
Teixeira não se intimidou com as 25 cordas (entre elas as de duas violas de cocho) e os arranjos escritos por quem é do ramo. Entre os “canetantes”, figuram Tiago Costa, com “Depois do Chimarrão”, de Eupídio dos Santos e Nininho; Ruriá Duprá, com “Terra de Sonhos”, de Almir Sater e Renato Teixeira; Paulo Aragão, com “Mato Grosso Rico”, de Paraios e Tinoco; Vitor Santos, com “Flor Matogrossense”, de Anacleto Rosas Junior; e André Mehmari, com “Trem do Pantanal”, de Geraldo Roca e Paulo Simões.
“Comecei minha carreira cantando com orquestra. Cantei com a orquestra do Pocho, na TV Bandeirantes, quando inaugurou. Depois, fui para a TV Tupi e cantava com a orquestra do Luizinho Arruda Paes, que às vezes era regida pelo Élcio Alvares e pelo Chu Vianna. Minha proposta nunca foi ser cantor. Eu tinha que cantar porque alguém tinha que cantar as minhas músicas. Então, cantava eu”, disse o experiente artista.
Segundo Teixeira, ele cantou com muita naturalidade junto da orquestra. O músico descreve esta sua última experiência:“Imagine uma estrada que, ao invés do asfalto, fosse asfaltada de vidro. Lisinha, entendeu? Bota uma carruagem bonita nela. É assim que é cantar na orquestra para mim”, falou o músico, afirmando que com essa formação pode “timbrar mais”, embora no início tivesse algumas dificuldades. “Demora um pouco para saber a hora que você entra. Quando a orquestra flutua, a gente tem de saber se comportar diante disso…Pena que quando ficou 100%, acabou”, disse o músico que recebeu o repertório e aprovou, acrescentando sua última criação, a música “Passatempo” (veja trecho no vídeo).
“PASSATEMPO”
“É música bem novinha. É uma espécie de milonga, um milongão. Fiz recentemente. Ela é uma reflexão sobre a vida, de que as coisas vêm e vão. O Pantanal é um pouco assim, né?”, disse o compositor, explicando sentir uma identidade de sua composição com o local. “Embora não seja daquelas músicas comuns, que louvam o Pantanal, traz a vida acontecendo. As flores nascendo e morrendo, as águas subindo e descendo, e os rios aparecendo e sumindo”, falou.
O compositor disse estar em uma fase atual da vida em que está mais fácil compor. “As músicas saem mais bem articuladas, com palavras mais bem escolhidas e bem colocadas. Eu já faço pensando nos arranjos. É uma coisa da maturidade”, falou. Contudo, o artista alerta: “Jamais vou ser tão espontâneo e tão natural como eu era quando fiz minhas primeiras músicas, em Taubaté. Elas estão cheias de erros, equívocos, defeitos, mas são muito mais ingênuas. É aquela coisa do começar, entende?”
Para Teixeira, a naturalidade dos iniciantes não se perde, mas se “aperfeiçoa”. “Não se pode falar que o compositor ande para trás. Ele sempre anda para frente. Você começa a chegar melhor nos acordes que deseja. Quando eu quero ouvir um acorde, não sou músico, mas sei chegar nele. Depois, dá sempre para deixar mais bonito”, falou o artista que geralmente conta com o aperfeiçoamento do músico Natan Marques. “É o Natan que faz isso de deixar melhor as minhas músicas. Outros maestros que tive sempre quiseram mudar a sequência harmônica e mexer demais, mas o Natan interfere pouco e deixa sempre mais bonito. Ele compensa a falta do que não tenho”, falou.
Ao todo, o projeto com a Orquestra do Estado de Mato Grosso levou cerca de oito meses para ser realizado. “O disco todo é uma grande declaração de amor ao Mato Grosso através da música. Essa é que é a ideia”, disse Teixeira que espera lançar o resultado dessa experiência em CD ainda este ano.“Até ficar pronto, são uns três meses. Sabe, eu penso que disco não pode ter prazo para sair.Também acho que dá para fazer uns quatro ou cinco por ano. Hoje, com os recursos que se tem, dá para fazer até no celular, entende?”, falou.
ZÉ GOMES E A VIOLA DE COCHO
Na orquestra do Estado de Mato Grosso há dois músicos que tocam violas de cocho, instrumento utilizado pelos pantaneiros em músicas folclóricas como o siriri e o cururu. Teixeira conhece bem esse instrumento. Foi ele o responsável pela produção do CD “Palavras Querem Dizer” do músico Jose Bonifácio Kruel Gomes, o Zé Gomes (1937-2009).
Gaúcho, Gomes, compositor, pesquisador, ajudou muito jornalista a nunca errar por ser tanto exímio violonista, quanto violinista. Rabequeiro e também luthier (construtor de instrumentos), pesquisou e tocou viola de cocho como ninguém. Vizinho de Teixeira, na Serra da Cantareira, e músico da banda de Almir Sater por mais de 20 anos, Gomes era uma figura ímpar. Segundo Teixeira, a ideia de gravar “Palavras Querem Dizer”, onde a rústica e medieval viola de cocho figura, talvez pela primeira vez tendo um tratamento digno, foi sua.
É Teixeira quem conta. “Uma vez, viajando pelo Mato Grosso, o Zé Gomes queria ir até um centro folclórico para comprar uma viola de cocho. Nesta época, ninguém tocava isso. Ele ficou a tarde toda até achar uma, do jeito que ele queria. Embrulhou-a em plástico bolha, e veio carregando no colo, como se fosse um bebê. Chegando em casa, apareceu o Almir. Aí o Zé falou: ‘Vou te mostrar’. Começou a abrir aquele pacote e finalmente, com muito orgulho, igual ao de quem mostra uma criança recém-nascida para o amigo, mostrou o instrumento para o Almir, dizendo como a viola era linda e boa. O Almir começou a olhar para as paredes, até escolher um lugar com os olhos e dizer : ‘Zé, acho que pendurada ali ela fica boa’. O Zé ficou muito bravo e disse (imitando sotaque de gaúcho): ‘Esse Almir não tem a menor sensibilidade’. O Almir achava que o Zé nunca ir tocar aquilo. Ele disse: ‘Cara, isso aqui não dá para tocar’. O Zé pegou aquele negócio e começou a tirar um som maravilhoso”.
Depois de um tempo, Gomes passou a registrar o som que tirava de seu “rebento”. “Ele começou a gravar em um gravador Teac, de quatro canais, que gravava naquelas fitinhas K-7. Só que um canal estava quebrado. Gravava, além da viola de cocho, rabeca e violão. Um dia cheguei na casa do Zé e, na hora em que ouvi o que ele estava gravando, peguei a fita para mim. Levei para o estúdio e mandei passar a fita para um gravador bom, profissional. Começamos a trabalhar aqueles três canais, até virar um disco. Botei nomes nas músicas, mas o Zé não queria. Ele dizia (imitando novamente o sotaque): ‘Não, isso aí é só uns estudos. Estou treinando ainda’…O Zé era um mistério”, disse Teixeira sobre o primeiro disco onde a viola de cocho aparece com som bonito, limpo e afinado. Entre as músicas do CD, “Na Sombra De Uma Parreira”, “Os Arreios De Luiz” e “Tapeçaria Persa”.
“Agora, com os dois violeiros de cocho da Orquestra do Estado de Mato Grosso, deu para perceber que a viola de cocho é um instrumento que está chegando, e, daqui a pouco, vai ter um monte de gente tocando. Mas esse mérito é do Zé Gomes e ninguém vai tirar. Ele foi o primeirão a tocar o instrumento como se deve. Os meninos da orquestra tiram um som bonito também, padrão Zé Gomes, mas o mérito de levar esse instrumento para qualquer sala de concerto será sempre do Zé”, disse Teixeira.
De fato, Zé Gomes se dedicou não só a este, mas a vários outros instrumentos, de maneira absurda. O violino foi um deles e o domínio sobre ele quase lhe rendeu uma troca de artista. Segundo Teixeira, o cantor Tim Maia (1942-1998) lhe perguntou: “Quanto você quer pelo velhinho?” “Que velhinho, cara?”, perguntou Teixeira. “O velhinho”, falou Maia insinuando, por meio de gestos, tocar um violino, mostrando que se referia a Gomes, que na época usava barba e cabelos grisalhos compridos.”Fala quanto você quer que eu compro”, disse Maia. “Depois, contei para o Zé e ele disse: ‘Oh, Renato, mas esse menino, o Tim Maia, não tem a menor noção das coisas. Será que ele acha que eu estou à venda?’”, contou rindo Teixeira.
ELIS REGINA (1945-1982)
“Uma vez, a Elis me chamou para que eu mostrasse minhas músicas. Foi aqui na serra. Eu ia até a casa dela e tocava para ela ouvir. Ela então escolhia: ‘Essa sim, essa não’. Eu ia para casa gravava o que ela tinha escolhido e levava para ela novamente. Elis fazia isso com outros autores também. Ela chamava os caras e falava: ‘Me mostra aí’, entendeu? Uma vez ela me falou: ‘Para mim não tem compositor vivo, morto ou que está por nascer. Me interessa a música que vai me servir’. Na verdade, ela foi uma garimpeira de música. Duvido que algum dia a Elis tenha falado: ‘Vou lançar esse cara aqui, vou botar ele na roda’. Ela ia atrás das músicas. Desde que ela morreu, nenhuma cantora me procurou e fez o que ela fazia, de ficar na minha frente e escutar minhas músicas. Por sinal, ela foi a única cantora que fez isso”, contou o compositor.
Segundo Teixeira, ele ainda é procurado por cantoras, mas pelo telefone. “Elas ligam, pedem : ‘Você tem uma música para mim?’. Mas não é assim, entende? O compositor foi meio que sendo colocado de escanteio. Hoje, produtor é o compositor. Músicos também, porque é músico, sabe fazer música, mas não é compositor. É diferente, o compositor nasce pronto”, disse.
INEZITA BARROSO (1925-2015)
“Vamos esquecer ela cantora. Ela, como mulher e brasileira, é uma das maiores de todos os tempos. A atitude e a batalha dela, o que ela lutou na vida, os valores legítimos e amorosos que ela defendeu transcenderam o seu próprio canto. Deveriam fazer uma estátua para ela”, disse Teixeira, que gravou com a cantora “Homem de Miranda”, música de sua autoria, parte do CD “Mato Grosso Do Sul Meu Amor”, de 1996.
DVD AMIZADE SINCERA II
O compositor está lançando seu segundo DVD ao lado do cantor Sérgio Reis, “Renato Teixeira & Sérgio Reis-Amizade Sincera II”, em parceria com a gravadora Som Livre. “Eu e o Sérgio nos conhecemos há muitos anos. Nesse DVD estamos nos divertindo muito. A gente chega em um momento de nossas vidas em que o que buscamos não é estourar uma canção. Isso, nós já fizemos. A intenção, agora, é sermos uma espécie de curadores do repertório da música caipira original, do século passado, de Tonico (1917-1994) e Tinoco (1920-2012), de Tião Carreiro (1934-1993), e, com isso, repassarmos para a moçada uma visão moderna do que foi aquilo, entendeu? Acho que eu e o Sérgio somos os caras que temos condições de fazer isso. A gente sempre trabalhou com isso. Eu estudei sempre muitas coisas sobre isso. Costumo dizer que o Sérgio é muito parecido com o Gonzagão (1912-1989). O Gonzagão quando chegava era o Nordeste que chegava junto, no jeito de se vestir e tal. O Sérgio também. Eu me sinto muito honrado de estar próximo dele e de viver esse mito que é o Sérgio Reis. A figura dele, o comportamento, a generosidade, a cabeça e o jeito dele se ver é muito interessante. Tudo isso é muito instigante e muito gostoso ao mesmo tempo”, falou Teixeira que, entre outras, gravou nesse DVD “Felicidade”, com João Carreiro, e “Viola Cabocla”, com Amado Batista.
O QUE O PÚBLICO VAI VER NO DVD
“Quero dar ao público brasileiro algo melhor do que ele tem tido ultimamente. Gostaria que esse trabalho fosse um sucesso. Gostaria de viajar muito com ele, de mostrar para essas pessoas um pouco dessa curadoria e da beleza dessas canções populares. São canções que todos nós cantamos. Fazem parte de nossa memória musical familiar”, falou Teixeira referindo-se a canções clássicas como “Cabecinha no Ombro” e “Chuá, Chuá”.
De fato, o repertório do DVD traz uma série de canções que fazem parte da memória musical brasileira e são lindíssimas. “É que o tempo foi desgastando elas. Foi tirando o brilho delas, entendeu? O que a gente está querendo é fazê-las brilhar de novo. Trazer uma energia nova com elas.”
Teixeira disse que, nos anos 1970, já tinha essa intenção de repaginar, de fazer uma releitura dessas músicas. “‘Romaria’, de uma certa forma, é quase uma canção manifesto, que mostra o caipira sem ser aquela coisa travada, careta. O caipira ali é representado de uma maneira concretista. Na hora que você faz a música, você não percebe nada. Depois, vi como o que eu conhecia do Mario de Andrade (1893-1945) e do Oswald de Andrade (1890-1954), desse pessoal paulistano, o que eles tinham passado para mim. O negócio da poesia concreta. O linguajar caipira é quase um linguajar meio concreto. Ele fala palavras de maneira errada, mas se faz entender.”
PARTICIPAÇÕES ESPECIAIS NO DVD
Entre várias participações do DVD, Teixeira comentou algumas.
“O João (Carreiro) é um menino que tem uma referência muito boa. Eu vou sempre tirar o chapéu para qualquer discípulo do Tião Carreiro. É uma credencial indiscutível. O menino é bom, tem popularidade, compõe muito bem e é repleto de emoção. Ele é um cara tenso de emoção. Me lembra um pouco, emocionalmente, o Toninho Marcos (Antonio Marcos, 1945-1992), um cara muito intenso, denso e admirável. Bem sucedido e ao mesmo tempo um cara que não quer se expor muito, ele se retrai um pouco. Eu vejo um pouco disso também no meu parceiro, o Almir (Sater), e até em mim mesmo. Sou um pouco retraído, entendeu? A gente se identifica um pouco por esse lado”, disse Teixeira.
“Amado Batista é um grandessíssimo cantor. É uma delícia a voz dele, cara. Ele canta bonito e tem um sentimento incrível. Esse cara é um lindo brasileiro. Ali, não tem armação. Ali é um cara que saiu cantando, na boa. É um dos cantores mais populares do Brasil. Um amigão nosso. Ele vem aqui na Serra nos visitar e está sempre na boa. Repare na beleza do canto do Amado. Olha, o Gonzagão falou para mim: ‘Seu Teixeira, o povo não se engana’. É um chavão, mas não tem jeito, quando é bom, é bom”, disse.
“Toquinho…Comecei minha carreira cruzando com ele. Pô, ele é um personagem lindo da história da música brasileira. Tenho orgulho de ser amigo dele. A parceria dele com o Vinícius de Moraes (1913-1980) foi uma das melhores de todas. Todas são músicas bem elaboradas. A presença dele nesse DVD dá uma perenidade a esse trabalho”, falou.
O músico se refere ao DVD e seus participantes como uma prova de revezamento “4×100”, modalidade olímpica. “É como uma corrida de bastão. Estamos passando um bastão o tempo todo.”
TIPOS DE MÚSICA
“Antes de gravarmos o DVD, o Sérgio estava regravando, com orquestra, o repertório do Teddy Vieira (1922-1965) e do Raul Torres (1906-1970), que são caras de padrão nacional, de alto nível. Não diferencio Raul Torres do Cartola (1908-1980); diferencio, sim, do Nelson Cavaquinho (1911-1986), que para mim é o maior compositor que o mundo conheceu. Mas é um caipiraço, um caipira carioca.”
Segundo Teixeira, há dois tipos de música. “Tem música que você tem que sair de casa para ouvir. Axé e pagode, por exemplo, você sai de casa e entra no meio de uma multidão e lá você encontra tudo o que você precisa: paz, alegria, você pula, bate tambor, beija na boca, faz tudo, entendeu? Agora, tem uma canção que te leva para casa. Que te traz de volta para você mesmo”, explicou.
“Talvez, a música caipira nunca tenha sido tão popular como ultimamente. Mas isso às custas dessas músicas que você tem que ir para fora, que você tem que sair para assistir e pular. Eu e o Sérgio fazemos uma música mais para o indivíduo do que para a coletividade. Eu defendo a tese do seguinte: qualidade com popularidade, no nível de Ary Barroso (1903-1964),Tom Jobim (1927-1984) e Chico Buarque de Holanda”, falou Teixeira.
“A música caipira sertaneja, essa música que está aí, e se apresenta como caipira sertaneja, são nominações nacionais. Na verdade, elas são do gênero balada. Esse gênero domina o mundo. Tudo vem da balada. O rock and roll é uma exceção. A música do mundo é a balada. Aqui, na Argentina, no México, no Peru, na Bolívia, até no Afeganistão, a música é a balada.”
MÚSICA CAIPIRA
“A música caipira mesmo é muito rica. O preconceito não deixou que as pessoas percebessem a riqueza dessas canções que são primas irmãs do samba. O samba teve uma história um pouquinho mais generosa, né? A música caipira começa a ter agora. Hoje, ela domina 70% do mercado brasileiro. Tem para todos os gostos. De Luan Santana, Rolando Boldrin passando por Almir Sater e por vários outros tipos de experiências. A viola caipira está criando um repertório semiclássico por todo o Brasil. Isso é maravilhoso”, disse o músico afirmando que “as pessoas não tem muita informação, mas estão misturando viola com cravo, com sanfona e outros instrumentos pelo Brasil todo”.
AMIZADE E POLÍTICA
Para Teixeira, a amizade passou a ser muito mais importante que a política. Segundo ele, a fraternidade é essencial para que se possa conviver com o número de pessoas que existe no mundo, “com a falência do Estado”. “O Estado acabou. O direito romano é um poema lindíssimo e a República, uma coisa maravilhosa, mas sucumbiram. Steve Jobs (1955-2011) acabou com todo esse negócio. Futuramente, o Estado vai ser um aplicativo, entendeu?”, falou o músico que pensa que, em cidades de 50 ou 100 mil habitantes, deveria existir apenas a figura do prefeito. “Ele sai na rua e conversa com as pessoas. Aí tem um sentido, entende? Mas o governador? Faz um aplicativo e está tudo certo. O aplicativo não tem opinião política, nem nada. Essa coisa de partido político, acho que também tem que ser repensada. Acho, por exemplo, que o sindicato existe porque a cidadania não vale nada”, falou.
NO FORNO
Teixeira contou que com o seu parceiro Almir Sater está fazendo um CD. “O disco está pronto. Só falta colocar voz. São músicas minhas e dele. O Almir conhece um cara chamado Erick Silver, que é um produtor de Nashville. O Almir esteve gravando lá e o conheceu fazendo um desafio de banjo e viola. O Eric toca banjo para cacete. Eles gravaram e ficaram amigos”, disse Teixeira sobre a amizade de 20 anos entre Almir e o produtor.
Seguindo o conselho de Almir, Teixeira resolveu escalar o gringo para realizar o disco de ambos. “O Almir me falou: ‘Se for por nós, esse disco não vai sair nunca. Vai ficar essa enrolação’.” Assim incluíram, como garantia de que o trabalho fosse realizado, a participação de Silver, que veio ao Brasil desenvolver os arranjos com Almir, mas voltou para gravar com músicos norte-americanos nos Estados Unidos. “Fazemos tudo pelo Skype. Quando eles terminam, tiramos todos os cacoetes norte-americanos e deixamos do nosso jeito, bem brasileiro”, disse o artista, que conta neste CD com a participação de músicos que trabalham, entre outros, com o cantor James Taylor.
Segundo Teixeira, Almir é muito exigente. “Ele é chato com esses negócios de som. Se não tiver a nota que ele quer, esquece que não tem conversa. Eu fico o tempo todo junto, mas só curtindo, porque eu fico tendo uma aula de gravação de disco. A gente calcula que em setembro, outubro, a gente lança esse trabalho.”
CD DE INÉDITAS
O compositor tem ainda um disco de músicas inéditas, mas disse que não tem previsão de mexer com isso, por enquanto. “Eu e meu empresário estamos montando uma editora que também será uma gravadora. A gente tem contatos com algumas gravadoras grandes. Os discos serão nossos. Tudo o que a gente fizer é nosso. Levamos para uma dessas gravadoras que, se não quiserem lançar, lançamos nós. Daremos de cinco a dois anos de autorização para os caras comercializarem, depois o disco volta para agente.”
“Mas quem vai distribuir?”, perguntei. “As gravadoras ou nós mesmos. Vendemos em shows muito mais que em lojas. O lucro é maior. Vendo umas duas caixas de CDs por show. Tem dia que o que eu ganho com disco dá mais que o show, entende? Às vezes, saio do show com ‘dois conto e meio’ de venda de disco. Isso eu não ganho nem em um ano de gravadora”, contou Teixeira.
NATAN MARQUES
Amigos e trabalhando juntos há mais de 30 anos, Teixeira diz ter um apreço especial pelo guitarrista Natan Marques.“O Natan tem uma história dentro da música brasileira muito intensa, muito bem sucedida. Nos últimos 30 anos, ele vem desenvolvendo uma leitura, trazendo uma contribuição que é calcada na simplicidade. Os arranjos dele trazem de volta o que a MPB tinha de mais bonito, a sinceridade. Isso pode, sim, ser um divisor de águas. Espero que as duplas que vão nos assistir tenham a capacidade de perceber a sutileza do trabalho dele, que enriquece muito.”
“Fizemos um trabalho lindo, o CD ‘Cirandas, Folias e Cantigas do Povo Brasileiro’, em 2003, em cima daqueles discos do Marcus Pereira. Fizemos uma releitura de uma tendência mais modernista da música caipira. Ele (Marques) foi adquirindo uma experiência, uma riqueza muito grande de conhecimento e informação. Para mim, dentro do universo da música sertaneja, ele é o cara que sempre tem alguma coisa a dizer musicalmente”, disse Teixeira.
CONSELHO
“O Almir Sater fala que nunca cobrou para cantar. Eu também não, porque é muito prazeroso. A gente cobra para viajar. Aconselho todo mundo que tiver uma vocaçãozinha musical: siga esse caminho que é muito bom! É uma profissão difícil, mas todas as profissões são difíceis, e essa tem uma compensação de você mexer com criação. Com a melodia, você poder inventar histórias, pode viajar pelas cidades do país, encontrar amigos músicos, que são pessoas diferenciadas, com uma linguagem própria e universal. O músico é um ser sensível. É lógico que você tem que pagar um pedágio por tudo isso. Há dificuldades, mas viver de música é uma grandeza. Agradeço muito o meu destino por ter me proporcionado isso. Sou um cara muito feliz com a música e, consequentemente, muito feliz com minha vida, entende?
Entendo, como entendo.