Homero Lotito, o homem morcego

Carlos Bozzo Junior
O músico Homero Lotito em seu estúdio, à esquerda seu primeiro livro sobre som (Foto: Carlos Bozzo Junior)
O músico Homero Lotito em seu estúdio, na mesa seu primeiro livro sobre som (Foto: Carlos Bozzo Junior)

Ele masterizou mais de mil discos. Entre as bolachas, a última da cantora Mônica Salmaso, “Corpo de Baile”. Trabalhou como office-boy, no centro de São Paulo, ao lado do cartunista Angeli. Experimentou várias drogas, mas não se viciou. Foi o único homem de uma casa onde moravam 12 policiais femininas, além de sua mãe, sua irmã e sua avó. Tocou piano e trompa na Orquestra Sinfônica Jovem Municipal de São Paulo. Acompanhou vários cantores da jovem guarda, como Ronnie Von e Jerry Adriani. Processou alguns. De Belchior, perdeu. Da cantora Vanusa, ganhou. Produziu inúmeras trilhas, spots e programas para rádio, TV e cinema. Entre tantos, o programa de humor Sobrinhos do Ataíde.

Homero Lotito, 60, músico e técnico de áudio é homem que escuta de maneira apurada. Talvez com a precisão de um morcego, mas de hábitos diurnos. “Não trabalho até tarde da noite desde os tempos em que fazia publicidade. Hoje, acordo cedo e trabalho, no máximo, até umas oito ou nove da noite”, disse o músico que recebeu o Música em Letras em seu estúdio, em São Paulo.

Leia a seguir, trechos da conversa entre o “homem morcego ” e o Música em Letras.

CASA VERDE

Paulistano com sotaque que lhe assevera origem, Lotito nasceu no bairro da Casa Verde e morou sempre em São Paulo. Piano foi seu primeiro instrumento musical, que, precoce, aos cinco anos passou a estudar com aulas particulares ministradas pela professora formada pelo Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, Cleusa Latorre Marlene de Paula, até completar 13 anos. “Eu não tinha piano. Todo dia, estudava durante uma hora na casa dela, além da aula que era uma vez por semana”, disse o músico, levado à professora por uma prima de seu pai, que descobriu o interesse do garoto pela música.

Todo final de ano a professora promovia uma audição com os alunos, da qual Lotito participava e adorava. “Tenho foto dos oito anos que estudei com ela. Nas primeiras, meus pés nem chegavam ao chão, mas o que eu mais gostava eram os últimos 15 minutos da aula, que a professora deixava fazer o que quisesse no piano”, falou o músico que aproveitava este tempo para tocar músicas de filmes que assistia na TV, como o western “BatMasterson”, série de televisão com 108 episódios, produzida para o canal norte-americano NBC, de 1958 a 1961. A música tema do seriado ficou famosa no Brasil, e sua versão para o português foi um dos maiores sucessos do cantor mineiro Carlos Gonzaga.

Programas de música também eram veiculados na TV quase que diariamente, entre eles, um com o Zimbo Trio e a cantora Elizeth Cardoso (1920-1990). “Um dia eu falei para esta professora que queria tocar como o Zimbo Trio e ela me disse que ela também”, contou rindo.

No repertório de aprendizagem havia, além da valsa “Le Lac de Como”, de M.Gallos, “Em um Mercado Persa”, do pianista inglês Albert William Ketelbey (1875-1959). Música com sete minutos de duração, que remete ao ambiente de um mercado oriental. Descritivos, os movimentos da peça passam pela chegada dos camelos, o canto dos mendigos, a chegada da princesa, os malabaristas, os encantadores de serpentes, os passos solenes do Califa visitando o mercado. Tudo para depois retornar novamente ao canto dos mendigos, a melodia da princesa e finalizar com a caravana dos camelos ao longe, simbolizando o final do mercado no entardecer. “Era um repertório bem kitsch. Já ouvia Beatles e Rolling Stones e com o piano começou a ficar meio difícil de eu me encaixar em grupos para tocar. Queria tocar órgão, mas era um instrumento muito caro”, disse o músico, filho de pai contador e mãe, costureira.

Segundo Lotito, distante três casas à esquerda de onde tinha aula morava o saxofonista Bolão, Osidoro Longano (1925-2005), que gravou, entre outros, o LP “Viva a Brotolândia – Bolão e Seus Rockettes”. “Estudava no primário com o filho dele. Nesta época, tinha jovem guarda, bossa nova e rock que fazia com que todo mundo do bairro pegasse em um instrumento”, falou o compositor que tinha 10 anos, momento em que ganhou seu piano e um livro que foi seu primeiro estímulo para navegar nos mares dos sons, “Som e ultrassom- Enciclopédia Juvenil”, de Ira M. Freeman, de 1961, em edição de 1964 da Editora Record. “Este livro é muito bom.Quem quer começar a entender alguma coisa física de som, de harmônicos, propagação, eco e um monte de coisas, acha tudo nesse livro”, falou.

Lotito recorda que era interessante como num bairro de classe média baixa, como a Casa Verde, num espaço de quatro quarteirões, houvesse pelo menos dez pianos. “Só no meu quarteirão tínhamos eu, meu vizinho, o Bolão, a professora e um aluno dela que morava ao seu lado também tinha. Quase todo mundo tinha”, falou.

MUDANÇA

Com 14 anos seus pais se separaram. Lotito mudou-se da Casa Verde para Santana e começou a trabalhar. “Entrei numa financeira, que não existe mais. Era o Banco de Investimentos do Brasil, foi comprado pelo Unibanco. Eu era uma espécie de boy interno, lá no centrão. O Angeli (cartunista) e o Toninho Mendes (produtor gráfico), todos da Casa Verde, trabalhavam comigo no mesmo andar”, disse o músico referindo-se a um dos 33 andares do Edifício Conde de Prates, arranha-céu construído em 1955, localizado entre o vale do Anhangabaú, Rua Líbero Badaró e o Viaduto do Chá. Mais São Paulo, impossível.

Com o salário, pedia para os mais velhos da instituição comprarem ações e com o lucro comprava discos, além de ter deixado muita grana no saudoso restaurante Salada Paulista, na avenida Ipiranga. “Comi muito lá. Quando não gastava a grana com roupa, era com discos. No largo do Arouche tinha uma loja em que as rádios dispensavam os discos. Comprei muita coisa importada e barata lá”, disse o músico.

Desta época, em 1969, Lotito começou pegar emprestado discos de rock recém-lançados no exterior. Enquanto o “pai” do sanduíche Bauru é o Ponto Chic, a Leiteria Lírico, na rua Líbero Badaró, é a “mãe” do Rococó, sanduíche servido, no pão francês, com fatias de rosbife frio, tomate em rodelas, pepino em conserva, queijo gorgonzola e aliche. Em frente à Leiteria Lírico, havia uma charutaria, cujo vendedor era chamado de Pachá. “Esse cara era tudo o que eu queria ser na época. Ele era mais velho e casado com uma norte-americana. A gente encostava lá e ficava só conversando de som”, contou Lotito que, por meio do comerciante, teve acesso aos discos de Jimmy Hendrix (1942-1970) e Frank Zappa (1940-1993).

BATERIA

Aos 14 anos, Lotito trocou o estudo do piano por uma bateria para depois de um ano constatar que não era sua praia. “Não me dei muito bem”, disse o músico que montou o instrumento na casa de sua avó, na Casa Verde, e ensaiava tocando rock com um grupo, no local. “Tinha o Tatá Guarnieri e o pessoal dali, além do meu vizinho, que era baixista. Tentávamos tocar coisas como Steppenwolf, mas era tudo meia boca”, falou o músico referindo-se à banda de rock de Los Angeles, formada em 1967. É desta banda a música “Born to Be Wild”, hino dos motociclistas utilizado no filme “Easy Rider”, aqui no Brasil, “Sem Destino”, de 1969. Atribui-se a esta música o fato de ser a primeira canção heavy metal. No segundo verso da terceira estrofe de sua letra, a expressão “heavy metal thunder” serviu para alcunhar um estilo de rock, o heavy metal.

POMPÉIA

Em 1970, Lotito começou a travar conhecimento com o pessoal de outro bairro bem musical da cidade, a Pompéia. “Conheci Mozart Mello (guitarrista), Juba (baterista), Wanderlei (Wander Taffo, guitarrista) e o Rato (Luiz Carlini, guitarrista)”, disse o músico que trabalhava até sexta-feira e no sábado praticamente se mudava para Pompéia. “Ia cedo para lá e ficava direto para ouvir os caras, que aos 15 anos já tocavam para cacete. Eles eram muito melhores que nós da Casa Verde.” Lotito frequentava a casa na rua Barão do Bananal, do Juba baterista que substituiu o cantor Lobão na banda Blitz. “Eles tinham um trio ‘federal’. O Mozart, um baixista chamado João e o Juba na bateria. Tocavam tudo de rock”, falou Lotito, que conheceu o som de bateria de jazz por meio de um disco de Max Roach (1924-2007), o som do Tamba Trio e a valorizar a bateria de Ringo Starr, “tudo por intermédio do Juba”, contou.

CÍRCULO MILITAR

Aos sábados, assim que acabava o ensaio “dos caras na Pompéia”, Lotito se dirigia para o Paraíso, mais precisamente para a sede do Círculo Militar, onde aconteciam bailes das 22h às 4h da manhã. “Tocavam dois conjuntos por baile. Era só grupo bom, “Memphis”, “Vat 69”, “Lee Jackson”, todos tinham um superequipamento e tocavam covers. Tudo aquilo que estávamos ouvindo no rádio, na época, eles tocavam”, disse o músico afirmando que havia uma certa rivalidade entre os grupos pois um queria tocar mais que o outro. “Eu não dançava nada, então ficava de orelha e de olho nos amplificadores Marshall”, disse o técnico que para entrar no clube tinha de ser convidado por um sócio. “Era uma coisa elegante”, completou afirmando que até os 18 anos ficou nessa de “andar com os caras da Pompéia”.

ESCOLAS

Em sua formação Lotito, estudou em colégios particulares e estaduais. Passou pelo Externato Imaculada Conceição, na Casa Verde, antes de ir para o Liceu Coração de Jesus, nos Campos Elíseos. “Fiquei lá três anos, tocava trompete na fanfarra. Saía na rua e parecia um general com aquele uniforme branco”, disse rindo o músico. Quando seus pais se separaram, foi para Santana e estudou no CEDOM (Colégio Estadual Doutor Octavio Mendes), onde cursou “o quarto ano do ginásio, mais os três anos do colegial”.

Pensou em cursar engenharia eletrônica. Fez um mês de cursinho, mas não tinha dinheiro. Trabalhava de dia, mas sabia que não ia dar certo continuar a estudar para engenharia, pois mais para frente não teria dinheiro suficiente para se sustentar. Decidiu ser músico.

BROOKLIN

Junto com Angeli, Lotito começou a frequentar o bairro do Brooklin, em São Paulo. Um amigo começou a ter aula com o percussionista Cláudio Stephane e Lotito voltou a estudar piano com a mulher do percussionista, Clarice Stephan, durante três anos. “A aula era cara para cacete, mas minha orientação musical mesmo começou ali. Fiz uma revisão de toda a teoria e depois a coisa andou muito rápido”, falou Lotito que, neste momento, começou a fazer amizade com outros músicos ligados à música popular. “Meu ensino musical sempre foi calcado na música erudita, mas eu queria o popular”, disse.

ORQUESTRA

“O Cláudio (Stephan) falou que achava legal eu fazer um instrumento de orquestra e disse: ‘Vai na Municipal e se inscreve em alguma coisa’”, disse Lotito que, influenciado por um show de Miles Davis (1926-1991), decidiu arriscar uma vaga como trompetista na orquestra. “Cheguei para fazer o teste e tinha uma fila enorme. Todo mundo de trompete embaixo do braço, com método, e eu sem nada. Passou um professor e perguntou: ‘Vai fazer trompete?’ Falei que sim. Ele falou: ‘Acho meio difícil, você nem tem instrumento e os caras já tocam…Você não quer aprender trompa?’ Perguntei como é que era a trompa. Ele explicou, mas como eu não conhecia o instrumento perguntei: Dá para o senhor mostrar para mim? Ele pegou uma, me mostrou e eu perguntei: para esse instrumento aí tem vaga, está tranquilo? Bicho, acho que ele estava procurando aluno e consegui a vaga ”, contou o músico que começou a estudar trompa, mantendo os estudos de piano com Clarisse Sthephan.

A vaga para pianista não abria nunca na orquestra onde Lotito tocava trompa. “Tinha que estar lá dentro para batalhar essa vaga”, disse o músico que abocanhou o posto, depois de três anos como integrante da orquestra, mas sem deixar também de tocar trompa. “Fazia dueto com o Minczuk (Roberto, atualmente maestro), que era do nosso naipe”.

Por questões econômicas, deixou as aulas com a pianista Clarisse e depois de dois anos tocando trompa largou o posto para se dedicar apenas ao piano. Queria pegar prática de orquestra para escrever para essa formação. “Não queria ser nem trompista, nem pianista. Não tinha mais idade para isso. O objetivo era estudar, mas não havia escolas de música popular”, falou Lotito que, apesar de ter estudado com professores qualificados, se diz autodidata.

Entre seus mestres, aos 22 anos, teve aulas com Joachim Hans Koellreutter (1915-2005), com quem aprendeu arranjo antes de estudar composição contemporânea. Estudou contraponto e passou a ter aulas de arranjos com o maestro Nelson Ayres, de quem foi aluno por um ano e meio. “Comecei a entrar de cabeça na música popular a partir desse momento, embora gostasse muito da técnica do erudito e de executar peças desse gênero”, falou Lotito que estudou música assiduamente por dois períodos: dos cinco aos 13 anos, e dos 18 aos 25 anos.

JAZZ

Lotito começou a se dedicar mais à música popular. “Eu lia partituras bem e tocava razoavelmente, mas era complicado, principalmente a parte mais jazzística de improvisação, porque tinha pouca informação.” Neste ponto, o músico passou a ser autodidata ao “descobrir alguns livros”. Foi na discoteca da Lapa (atual Discoteca Oneyda Alvarenga do Centro Cultural São Paulo), na rua Catão, e descobriu “quatro livros de um cara da Juilliard School, John Merrigan. Ele abordava a música de Oscar Peterson (1925-2007), Teddy Wilson (1912-1986), Bud Powell (1924-1966) e Bill Evans (1929-1980). Isso abriu minha cabeça”, disse o músico que ainda guarda os livros. Segundo Lotito, em uma ocasião o pianista, arranjador e professor Hilton Valente, o Gogô, uma sumidade no piano, esteve em sua casa e ao avistar os mencionados livros na estante disse espantado: “Você também começou por aí ?”

PRIMEIRAS EXPERIÊNCIAS

Em 1977, Lotito produziu seu primeiro disco, no estúdio Vice Versa, o compacto duplo de Tatá Guarnieri. “Eram músicas dele e minhas”, disse o compositor de “Vento Geral” e “Gotas Brancas”. Logo depois, Lotito disse ter experimentado drogas. “Quem não experimentou? A gente tomava quase tudo, mescalina, ácido, mas de leve. Um tomava e o outro ficava escrevendo e fazendo desenhos do que acontecia”, disse o músico que hoje toma apenas poucos copos de vinho e cerveja, em casa, para relaxar.

BARES PÉ ANTE PÉ

Lotito passou a tocar standards de jazz e música brasileira em bares, os primeiros do Bixiga. “Fui o primeiro músico a receber cachê no Persona. Exigi do dono”, falou o músico que nesse bar atacava de piano ao lado de seu amigo de bairro, o baixista Piga (Luiz Fernando), abreviação de Pigmeu. Na ocasião, conheceu outros músicos. Entre eles, o baixista Sizão e a flautista Léa Freire.

Formou um sexteto só para tocar em bares, com Betão, na bateria; Jarbas (Barbosa, guitarrista da Banda Mantiqueira); Teco (Cardoso, flautista e saxofonista); Mané (Silveira, saxofonista) e Bangla, no sax, além de Lanny Gordin que no grupo tocava baixo. “Bicho, quando falaram que eu ia tocar com ele (Lanny), quase caí. Era meu ídolo”, falou Lotito

Nas canjas do bar Lei Seca, onde tocavam toda sexta-feira, apareceu Caíto Marcondes, baterista e percussionista. “Ele sentou na bateria e tocou muito. Falamos para o Betão passar para o vibrafone e percussão, e o Caíto assumiu a batera”, contou o músico, acrescentando que trabalhar com Lanny Gordin era complicado, pois “ele tinha muito surto disso e daquilo. Aí, entrou o Gerson Frutuoso, no lugar dele. Todos nós tínhamos composições autorais. Decidimos montar um grupo e fazer um show mostrando isso.”

Assim, em 1979, surgiu o grupo instrumental Pé Ante Pé. Conseguiram datas no teatro Tuquinha, na PUC (Pontifícia Universidade Católica) e realizaram vários shows, mostrando suas músicas enquanto nos bares continuavam a fazer covers de Chick Corea, Keith Jarrett e Miles Davis, misturando com músicas brasileiras, como “Corcovado”. “O lance era improvisar. Nessa época, todo mundo queria desenvolver a improvisação”, falou Lotito.

O grupo Pé Ante Pé gravou o primeiro disco, um vinil, homônimo, em 1980. “Foi tudo gravado num Tascam (gravador) de oito canais. É um milagre o que o Franja (técnico) fez. A foto da capa foi feita na revista ‘Isto É’. Tudo escondido, de noite e na madrugada que a gente tinha um amigo lá dentro”, disse.

Segundo o músico, embora tivesse obtido um certo sucesso, o Pé Ante Pé gravou mais um disco, “Imagens Do Inconsciente”, em 1982, e se desfez porque “os caras começaram a casar e ter compromisso com outras coisas”.

O músico Homero Lotito, em seu estúdio, em São Paulo (Foto: Carlos Bozzo Junior)
O músico Homero Lotito, em seu estúdio, em São Paulo (Foto: Carlos Bozzo Junior)

PROFESSOR 

Nos domingos pela manhã, Lotito tinha aulas com Koellreutter. Nos sábados e outros dias da semana, Lotito tocava em bares com duos ou trios.“Era onde se conseguia trabalhar”, disse o músico que ficou fora da música como profissional até os 20 anos. “Trabalhei durante dois anos no processamento de dados do Banco Noroeste, das seis à meia noite.”

Lotito iniciou seu trabalho no banco gravando dados em fitas K-7, antes de ser promovido e ser o responsável por manipular fitas maiores. “Pegava a fita, e passava ela para um modem de um computador maior, que ficava no Rio”, falou o músico que não curtia muito o trabalho. “Mas com isso tinha dinheiro e conseguia estudar música.”

“O Koellreutter foi diretor do Conservatório de Tatuí e queria montar um curso de MPB e jazz”, contou Lotito que na época (1983) estruturou, desenvolveu e ministrou esse curso que existe até hoje na instituição.

O músico viu uma possibilidade de amealhar mais grana montando cursos e dando aulas. Assim, foi professor na Fundação das Artes em São Bernardo e na Faculdade de Música Santa Marcelina. “Fui o primeiro professor de música popular na Santa Marcelina”, disse o músico que passou a tocar “onde dava” até se interessar pela tecnologia dos sintetizadores que surgiram na época.

Em 1984, começou a trabalhar com sintetizadores e computadores. Foi para a Inglaterra e, em 1985, trouxe em sua bagagem um teclado Roland. Juntou-se ao também professor de Tatuí, o flautista Paulo Flores, e passaram a produzir músicas de acordo com o que escutavam. Entre outras influências, a mais marcante naquele momento foi a do grupo Weather Report.

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A alternativa de Lotito para ganhar mais dinheiro e comprar mais equipamentos para fazer o som que gostava foi trabalhar com publicidade. Com Flores juntou-se a um sócio, safo em eletrônica, e abriram um estúdio.

Da época lembra-se de um “job” em particular, o áudio de um filme do produto Taff Man-E. “Era uma propaganda maluca. O Pelé, ao invés de jogar futebol, apostava corrida. Ninguém entendeu nada, mas a gente tinha que gravar e ele não podia ir no estúdio. Foi complicado”, contou o produtor que aproveitando a ida do Rei a um estúdio de fotografia, foi até lá colocou-o dentro de um armário (para não captar ruídos) e gravou sua voz. “A frase que ele tinha que dizer era: ‘Taff Man-E, a energia sem limites’. Foi mais de meia hora de fita para tirar essa frase. O cara (Pelé) dava a cada hora uma entonação, mas depois editamos, cortando com gilete, colamos e botamos na boca dele, certinho no filme”, contou Lotito afirmando que virou fã de Pelé pela paciência dispensada durante a gravação.

ACOMPANHANTE DE CANÁRIOS

Ganhava-se dinheiro com o estúdio fazendo propaganda, mas os sócios estavam indecisos quanto à expansão do negócio. “Não ia nem prá lá e nem prá cá, e eu fui tocar com cantor”, falou Lotito.

“Toquei com tudo que é canário da jovem guarda que se pode imaginar, um atrás do outro. Tocava teclado e sintetizador. Ataquei com Vanusa, Wanderleia, Jerry Adriani, Ronnie Von e quem mais aparecesse dizendo que tinha show no sábado. Eu ia e fazia com todos, pagavam uns três quartos da tabela, mas ganhava no volume”, contou o músico que nesta ocasião viajou muito pelo país.

“Ficava uns cinco dias fora. Quando voltava, tinha montado um esquema e gravava trilha em casa mesmo. Fazia muito institucional com trilha de 15 minutos, que dava uma grana boa. Juntava com as pagas de show e comprava equipamento”, disse.

Ao lado do cantor Belchior trabalhou três anos. “No começo da carreira dele e depois também”, disse o tecladista que durante oito anos acompanhou artistas, sendo que os últimos foram Sá e Guarabira.

“Depois me enchi. Não queria ficar entrando naquela de trabalhar sem garantia, sem nada. Aí aconteceu o que acontece com qualquer artista. Tem uma hora que o cara (artista) começa a marcar show só com ele e o violonista, e a banda fica parada. Pô, eles querem garantia daqui, mas não querem dar o mínimo de garantia de lá, sabe?”, falou o músico que perdeu uma ação trabalhista movida contra o cantor Belchior, mas ganhou outra contra a cantora Vanusa. “A Vanusa era o mesmo esquema. O grupo inteiro entrou com a ação. Ganhamos a causa e ela logo entrou em um acordo. Depois, ficou amiga de todo mundo e pronto”, contou.

GRAVAÇÃO

Lotito gostava de gravar desde os 12 anos. Saía na rua com gravadores de rolo e registrava entrevistas e ruídos. “Tinha um amigo e gostava de ir para casa dele e colocar uma plaquinha de ‘GRAVANDO’ na porta, enquanto fazíamos um monte de gravações”, falou.

Após muitos anos dessas experiências, em 1994, Lotito resolveu realizar um sonho e finalmente se dedicar à música de estúdio.“Com os cantores ganhei grana para comprar equipamento. Comecei a fazer trilha para o programa Globo Rural, num espaço emprestado do lado do Parque da Água Branca, na rua Costa Junior. Trabalhei muito lá, de 1994 a 1996. Fazia tudo sozinho. Às vezes tinha um coro ou um locutor, mas basicamente era só eu. Era uma produção corrida. O cara chegava com o vídeo e eu tinha que fazer a trilha no ato”, falou.

O sonho de ter seu próprio estúdio se realizou em 1996, quando montou uma produtora de som na casa em que morava, no bairro da Vila Mariana. “Tinha bastante cliente. Abri a produtora e fiquei naquela casa por 14 anos”, disse Lotito, referindo-se à Trilha Certa Áudio Limitada.

Foi na Trilha Certa que Lotito gravou mais de 1.200 histórias, com Paulo Bonfá, Marco Bianchi e Felipe Xavier, fundadores do grupo Os Sobrinhos do Ataíde, criadores do programa de rádio com o mesmo nome na 89 FM de São Paulo. “Gravava só publicidade, não tinha disco. Quando comecei a fazer o Sobrinhos do Ataíde ganhei bastante grana. Eles queriam gravar no estúdio e mandar o programa pronto para a rádio. Foi um grande achado. Além de ter muito trabalho extra, com eles que faziam muito spot, tinha o programa que movimentou mais o lance da produtora”, falou Lotito que gravava as vozes, colocava efeito e compunha trilha para os hilários personagens Peterson Foca, o Pequeno Wilber, Junioooor, Valeska Cristina, Spertoman, Marquinhos e Doutor Pimpolho. Montava tudo e enviava cerca de dez histórias por semana para várias rádios do país. “A produção era toda minha. Ajudou tremendamente o meu estúdio”, disse.

O TEMPLO

Lotito sempre esteve cercado de bons equipamentos. Um amigo o convenceu a investir um capital e juntos abrirem um estúdio de finalização para realizarem masterizações com equipamento de ponta. Assim surgiu, há quinze anos, no bairro de Perdizes, em São Paulo, seu atual estúdio, o Reference Mastering. O local é uma espécie de templo dos músicos instrumentais brasileiros. Dez entre dez preferem Lotito na mesa de som para finalizarem suas obras. Só da gravadora Maritaca, que tem mais de 40 CDs, em seu catálogo, 90% são obra das mãos e ouvidos do “morcego” Lotito.

Entre revestir paredes, adequar, blindar contra ruídos e comprar equipamentos para a sala, que fica em um prédio comercial, foram dois anos. Tudo antes de gravar o primeiro CD com tecnologia SuperAudio da América Latina, “Canto das Águas”, do violonista André Geraissati. “Começamos com coisas bem avançadas, ninguém tinha feito isso antes”, falou o proprietário que acabou por comprar a parte de seu sócio tanto no negócio, quanto no imóvel que abriga o estúdio.

Hoje, Lotito tem como preferência a finalização de CDs e DVDs, parte de um processo que se inicia com a gravação, passa pela mixagem e termina com a masterização. Segundo o músico, um trabalho eclético que não escolhe gênero musical. “Pego o estilo que vier. Sou preparado para isso. Faço um trabalho de finalização, dali para frente nada mais vai ser mexido, só a duplicação que vem depois disso”, disse Lotito que, basicamente, é o responsável por formar um conjunto coerente para ser ouvido. Mixagens trazem entre elas, quando saem dos estúdios onde foram realizadas, pequenas ou grandes diferenças. Não estão tonalmente equilibradas. Geralmente, apresentam pequenos ou grandes problemas que podem ser resolvidos. Os problemas podem ser diferenças de volume, de corpo e de mais coisas. Para que seja ouvido como um álbum, o som precisa ser finalizado. Isso é a masterização. Resolve-se desde o espaçamento das músicas à sonoridade geral do trabalho. É uma coisa estética e não só técnica.

A tarefa não é fácil, além de ser para poucos. Em seu estúdio, Lotito dá um tratamento ao som de alta fidelidade, conhecido como Hi-Fi (do inglês high fidelity), que é a reprodução de áudio feita por um aparelho de som com a maior fidelidade possível ao som real. Para isso, utiliza conversores que custam, cada um, cerca de sete mil libras ( R$ 35 mil). “É coisa que, no Brasil, só existe na mão de audiófilos, porque em estúdio sei que não tem”, disse o músico referindo-se à parte técnica de seu trabalho, que tem um índice raríssimo de reprovação. “Bicho, é muito raro alguém reprovar meu trabalho. Há ajustes, mas são bem poucos”, falou.

Um dos maiores valores de Lotito está em ser músico e com isso conseguir um alto grau de comunicação entre o pensamento do técnico e de seus clientes músicos e produtores. Sua conversa é de artista para artista e está sempre municiada de arte, a arte de amealhar os sons. Santo som, Batman.

Assista vídeo com Homero Lotito realizando seu trabalho, em seu estúdio.