Sagrada Música semeia beleza sonora no Campo Belo
Sagrada Música é o nome do projeto que trata música instrumental de qualidade com respeito. Nele, músicos realizam seus sonhos tocando o que querem e da maneira como querem. O evento – gratuito-, é realizado com sucesso todo segundo e quarto domingo do mês, há cinco anos, no bairro do Campo Belo, na zona sul de São Paulo.
Quando está sol, o som rola do lado de fora do sobrado, que abriga o salão de beleza, Espaço Beleza Sagrada. Quando há chuva, a música fica do lado de dentro do estabelecimento, que em dias de shows abre suas portas ao público, mas não funciona. Tudo acontece na rua João de Sousa Dias, 494, onde a algumas quadras é montada uma feira livre, também aos domingos. O som começa às 11h e vai até às12h45.
“Respeitamos os vizinhos, nunca passamos do horário”, disse Michel Leme, 43, guitarrista, professor, compositor e idealizador do projeto, em entrevista concedida ao Música em Letras, que esteve em quatro apresentações no local, em datas diferentes, conferindo o êxito do evento, com o público e com quem gosta de tocar sem restrições. “Quando tem bateria, chama mais a atenção e junta mais de 30 pessoas sentadas”, falou Leme, afirmando que a cada apresentação atinge uma média de 250 a 300 passantes. “Muita gente sai da feira, compra um pastel e vem aqui escutar”, disse o artista que se diz motivado por juntar “pessoas que amam tocar com pessoas que gostam de escutar”.
Segundo o músico, durante a semana é comum encontrar moradores que o interceptam nas ruas do bairro, onde também mora. “Sempre tem alguém que me para na rua, elogia e pergunta quando será a próxima apresentação. Acredito que a boa música traz mais qualidade de vida para quem a escuta. As pessoas gostam disso. Então, nunca baixamos o nível musical, atendendo pedidos ou tocando música ruim”, disse o guitarrista que toca, entre outros gêneros, jazz, bossa nova, blues e samba.
Leme afirma que para sobreviver o músico geralmente só toca o que detesta, mesmo quem toca jazz em bares. “O esquema é sempre o de atender pedidos e fazer tributos. Eu não faço isso. Dou aulas para pagar minhas contas, mas quando vou tocar não digo amém para ninguém. A música é quem manda. Toco com prazer”, falou acrescentando que os músicos que participam do Sagrada Música tem uma ajuda de custo fornecida pela dona do estabelecimento, a visagista Mirian Giseli Seffrin de Moura Leme, mulher de Leme. “A ajuda é simbólica, mas é justa. Aqui, ninguém toca de graça”, disse o guitarrista.
Entre os músicos que já fizeram um som no local está o renomado Lanny Gordin, guitarrista e compositor nascido em Xangai, filho de pai russo e mãe polonesa, que viveu em Israel até o seis anos, antes de mudar-se para o Brasil. “Toda apresentação tem um momento especial. Na dele (Gordin), criamos cinco músicas novas, na hora. Entre uma música e outra, tivemos um ‘concerto’ de passarinhos, que ficaram cantando e sobrevoando a gente”, falou Leme. Além das cinco “novidades”, ele tocou com Gordin, “All Blues”, de Miles Davis (1926-1991); “Wave”, de Tom Jobim (1927-1994) e “Autumm Leaves” de Joseph Kosma (1905-1969) e Jacques Prévert (1900-1977).
As rodas de som ou “espiral de som” como se refere o compositor, autor de nove CDs, é sempre formada por um duo, trio ou quarteto. “Um terço do meu disco ‘Na Hora’ foi gravado aqui”, disse o professor que desde 2013 utiliza o espaço em alguns dias da semana para dar suas aulas.
Há muito respeito durante as apresentações, tanto fora quanto dentro do espaço. O clima é o mesmo de um teatro. As pessoas, entre elas idosos, jovens, crianças e até cães se comportam de maneira surpreendente, prestando atenção no som, sem interrupções. “Mesmo com a feira, não há barulho.Nem cachorro late”, disse Leme sobre a forte harmonia existente no local comprovada pelo Música em Letras, em todos os sentidos.
OUVINTES
O Música em Letras entrevistou algumas pessoas que frequentam o Sagrada Música e que vão até lá para se “alimentarem” de som, entre outras coisas.
Alice Alfaya, frequentadora do som e do salão, é imprecisa quando fala sobre si. “Tenho quase 60 anos, e sou ‘paulioca’”, disse referindo-se ao fato de ser carioca e morar em São Paulo há mais de 30 anos. Contudo, a relações públicas é precisa quando discorre sobre o evento musical. “Esta é uma oportunidade de alimento para a alma e para o coração. Além de ter música de excelente qualidade, reúne pessoas com a mesma ‘pegada’, e de graça”, falou Alfaya, moradora do bairro que comparece ao evento há mais de dois anos. É dela o convite feito a quem lê o Música em Letras: “Venham todos, pois é uma excelente forma de começar o domingo e levar isso no coração pelo resto da semana. Faz muito bem”.
Vanessa Barone, 43, jornalista e consultora de imagem gasta cerca de R$ 600 por mês no salão para cuidar de si, além de praticar yoga e ser aluna das aulas de dança que acontecem no espaço durante a semana. Barone também mora próximo ao salão, frequenta sempre as apresentações musicais do Sagrada Música, que diz ser um presente para a vizinhança. “Deveria ter milhares de pessoas aqui porque é uma música de extrema qualidade, feita por músicos com formação e experiência. Assistir isso de graça em São Paulo é raro. É uma transmissão de cultura muito importante para quem ouve.”
Andrea Pimentel, 45, professora do Ensino Fundamental e moradora de Moema, gosta de música instrumental, principalmente jazz. Praticamente todos os domingos comparece aos espetáculos. “Vi o Michel tocar em um bar, no centro, e passei a seguir a agenda musical dele. Assim, descobri este som aos domingos que frequento há mais de um ano.” O que mudou em sua vida depois que passou a frequentar o local? “Muda muito minha semana, porque considero o som uma forma de meditar. E este som já vai preparando a gente para o que vem pela frente, até os próximos quinze dias. É como ir para Cuba, tem de ir para saber como é”, disse. A professora acrescenta ainda que “há uma generosidade imensa. Imagine se todos os lugares fizessem isso? Todo mundo começaria a segunda-feira de uma maneira ótima”, falou Pimentel, que estudou flauta transversal e participou durante três anos de uma orquestra Orgânica Performática, “trabalhando sons do corpo junto com instrumentos feitos de sucata”.
MÚSICOS
Rodrigo (Digão) Braz, 35, toca bateria há 20 anos e já participou de várias apresentações no local. “Domingo é um dia em que as pessoas deixam para fazer suas coisas espirituais. O nome do projeto tem tudo a ver com isso. O lugar é baseado na beleza e na arte, o que propicia um clima para fazermos um som da maneira mais livre possível”, disse o músico que toca muito bem. “Nunca sei o que vai acontecer, não ensaiamos, mas o som sempre acontece de uma maneira muito legal para quem toca e para quem ouve. As pessoas que assistem são sempre muito receptivas à nossa música.” Para Digão, tocar dentro do espaço é diferente com relação à “resultante do som. Apesar de o espaço ser fechado parece que o som vai explodir mais porque fica reverberando, o som é mais enxuto. Dentro, consigo ouvir todas as dinâmicas e muito mais próximas. Lá fora, por conta do espaço em si, o som dispersa um pouco. Então, sinto ele com menos volumetria”, disse o baterista que sai do bairro Campos Elíseos para realizar o que mais gosta, tocar.
Stefano Moliner, 43, baixista, já tocou três vezes no local e diz como é essa experiência. “Tocar aqui é poder tocar à vontade, fazendo o que se gosta. É tocar em um espaço que foi criado para não haver adequações. Conversamos muito sobre conceitos, ideias e comportamento do músico. Esses dois caras (Leme e Digão) são dois mestres para mim, mas na hora de tocar vamos para onde a música nos carrega”, falou o instrumentista que mora em São Bernardo do Campo e tem o maior prazer em acordar e saber que vai tocar no local: “Porque aqui as pessoas escutam música feita com disposição, com vontade de fazer música”.
CRÍTICA
Leme disse que, em geral, o músico mais se adequa do que faz música. “Eu vejo muitos músicos interessados apenas em ganhar um bom cachê, mesmo que eles estejam se matando para isso. São projetos de releituras feitos para o Sesc sobre Pixinguinha ou o Garoto, mas que não propõem coisa nenhuma. Isso é cover, é ‘171’. Muitos são negociantes que estão só ‘trampando’ e não fazendo música”, falou Leme, afirmando ter sido “banido do Sesc”, por cinco programadores de lá. “Eles leram uma resposta minha para um amigo na rede social, questionando qual era o critério de contratação deles.” Entretanto, o músico não soube nomear os programadores ou as unidades do Sesc que o “baniram”. “Fiquei sabendo através de uma produtora que estava vendendo show para mim. Ela disse: ‘Vou abrir para você, cinco programadores falaram que não dá para contratar você por causa de sua opinião sobre o Sesc’”, revelou o artista.
A última vez em que Leme que tocou em uma unidade do Sesc ( em Campinas) foi em abril de 2014. “Eles (os programadores) são tiranos e estão acostumados ao ‘puxassaquismo’ e aos jogos de interesses. Envio meu material e eles dizem que não receberam e receberam.”
O músico defende sua posição: “Não tenho que tomar cafezinho e ficar elogiando o trabalho deles. Gravo meus discos e depois, quero tocá-los, é só isso. Não tenho que justificar nada depois disso, ou ficar puxando o saco de quem contrata. Faço música, simplesmente quero tocar. Não é possível um programador ser o senhor feudal de uma unidade. Se o alto escalão do Sesc não sabe disso, que saiba”.
De acordo com Leme, no Sagrada Música não há um líder ou justificativas para o projeto acontecer. “Esta é uma ação musical democrática, com o espírito do jazz, que não é o que você está tocando, mas como você está tocando”.
O evento que promove música pela música é beleza pura. Aproveite-o “paulistanamente”: descole “dois pastel”, na feira, e assista a “vários show”, sem medo de engordar a alma.
Assista o vídeo a seguir com Michel Leme, Rodrigo Digão e Stefano Moliner tocando dentro do Espaço Beleza Sagrada, onde acontece o projeto musical Sagrada Música.