OCAM, Uma Orquestra Mutante
A OCAM, Orquestra de Câmara da ECA (Escola de Comunicações e Artes) da USP (Universidade de São Paulo), vive em transformação. O responsável por este grupo que profissionaliza instrumentistas produzindo música de qualidade é o maestro Gil Jardim, 57. Homem embasado, inquieto, centrado, ativo e de alma profundamente transformadora.
O Música em Letras esteve em seu apartamento, no bairro Alto de Pinheiros, em São Paulo, na última quarta-feira, para saber sobre as novidades promovidas por esta orquestra que anualmente, em fevereiro, tem seu corpo de músicos em grande parte renovado. “Na OCAM, o músico reconquista seu lugar”, disse o maestro.
Ter uma orquestra que se renova a cada ano não é tarefa fácil. Gil Jardim sabe disto. Não se faz de “amiguinho” dos músicos ou desempenha o clichê disseminado por filmes norte- americanos em que o maestro é sempre aquela figura severa e mal humorada, sem a menor necessidade. Jardim opta por ser responsável em fazer com que o grupo chegue a um patamar onde se alcança o privilégio de um público presente em cada um dos concertos para ouvir boa música. Isto é complicado, pois nem sempre o maestro está com o melhor grupo. “Há edições da OCAM que são fascinantes, especiais ou frágeis, mas entre uma e outra resta a missão de transformar aquilo em qualidade musical”, falou.
Esta não é uma orquestra fixa, mas verdadeira na sua vocação. Uma orquestra profissionalizante, que dá espaço a muito músico jovem. Todo começo de ano, Jardim pega uma orquestra com, no mínimo, 50 % de músicos novos, alguns com experiência e outros que irão adquiri-la ao longo do ano. Poucos são os integrantes que estão na orquestra há quatro anos. Os que estão, dão o suporte de qualidade ao grupo. Este tipo de renovação não impede o maestro de fazer uma boa programação de conteúdo. Por isso, a programação é selada após Jardim ter total conhecimento de que orquestra ele tem sob sua batuta. Isto faz com que ele reconceba a OCAM e realize um trabalho pedagógico forte com os solistas que chegam, viabilizando assim um crescimento interno constante da orquestra.
“Não é uma orquestra jovem, mas uma orquestra universitária. Seus integrantes são alunos regulares do Departamento de Música, tanto da graduação quanto da pós-graduação e dos cursos de extensão”. Contudo, o maestro vislumbra a possibilidade de tornar esta renovação bienal. “Acho que o corpo de músicos da orquestra, dentro de uma boa medida, poderia ser mantido pelo menos por dois anos. É uma meta que ainda não tenho condições de assumir, mas penso que bienalmente a renovação seja mais interessante”, falou.
O maestro procura aproximar-se mais dos integrantes recém-chegados, sempre os chamando pelo nome. “Nunca me dirijo a eles como primeira flauta ou segunda flauta. Antes de maestro, sou professor.” Mesmo dispondo de chefes de naipes e do regente assistente, William Coelho, também aluno da USP, Jardim é superacessível a todos os músicos e abre espaço para que haja soluções para que eles resolvam suas dificuldades, sejam elas técnicas ou não. Como professor “saca” se o cara estudou pouco em casa e não conseguiu resolver “aquela passagem difícil para o instrumento”. Exige que o instrumentista se empenhe trabalhando mais, exercendo sua sensibilidade e percepção de como tirar o melhor de cada aluno.
MÚSICOS
São inúmeros os músicos profissionais que passaram pela OCAM antes de se projetarem em carreiras admiráveis. Entre eles, Diogo Maia Santos, 31, brasiliense, que toca clarone e clarinete muito bem. Integra o quinteto de clarinetes Sujeito a Guincho, o grupo instrumental Seis com Casca e o Grupo de Performance Avançada da USP. Desde 2011, é claronista e clarinetista da Orquestra Sinfônica do Teatro Municipal de São Paulo e atua como convidado na OSESP (Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo), OSUSP (Orquestra Sinfônica da Universidade de São Paulo), Orquestra Jazz Sinfônica, Camerata Aberta e Percorso Ensemble. O músico já abocanhou uma bolsa para estudar na Dinamarca, prêmio concedido no Festival de Inverno de Campos do Jordão.
Outro aluno que fez e continua a “fazer bonito” é Yuri Prado, paulistano, guitarrista e arranjador que o maestro pretende um dia ter perto da orquestra. “Ele é um músico com formação, que tem as ferramentas da escrita para orquestra”, disse Jardim sobre Prado, que chegou à USP já formado em violão popular, arranjo e orquestração pela ULM (Universidade Livre de Música) atual EMESP – Tom Jobim (Escola de Música do Estado de São Paulo).
MUDANÇAS
A USP passa por um momento delicado, com corte de 35% no orçamento de todos os seus organismos. A OCAM não ficou livre deste corte. Jardim poderia fazer suas apresentações internamente e se acomodar esperando por melhoras. Entretanto, ele se organizou e conseguiu levar para fora dos portões da universidade, no Teatro CETIP, no Instituto Tomie Ohtake, o som de sua orquestra, lançando pela primeira vez, um plano de assinaturas. “É uma espécie de autogestão, no sentido de que este custo do espaço será bancado pelas assinaturas. Assim, não precisamos que isto venha da USP”, explicou o músico que assumiu a batuta, em 2001, das mãos do criador da OCAM, o professor, maestro e compositor Olivier Toni, 88.
Sabe-se que mudanças ameaçam estabilidades. Jardim rebate com uma frase do escritor uruguaio Eduardo Galeno (1940-2015), morto recentemente: “Nós somos o que fazemos, mas somos especialmente o que fazemos para transformar o que somos”. Para ele há dois motivos para o plano de assinaturas ser lançado só agora, após 20 anos de existência da orquestra. “Trata-se de um desejo antigo. O plano de assinaturas estaria ligado à existência de uma ‘casa’. Não dá para fazer um plano de assinaturas com a orquestra tocando em lugares distintos”, disse o músico que soube aproveitar a possibilidade de efetuar uma parceria com o Instituto Tomie Ohtake, favorecendo um trânsito cultural entre linguagens da arte. “Será possível juntar artes plásticas e música”, disse o maestro.
Outro ingrediente confirma a parceria da orquestra com o espaço: a integração. Já foram realizadas algumas performances com músicos da OCAM no local, por exemplo, durante uma exposição de Tomie Ohtake (1913-2015). Outras performances estão por vir em exposições de Joan Miró (1893-1983) e de Frida Khalo (1907-1954). “O bom e gostoso é que existe uma flexibilidade e um campo fértil para a criação contínua”, disse o maestro afirmando que as intervenções não teriam o mesmo caráter de flash mobs (aglomerações instantâneas de pessoas em um lugar pré-determinado para realizar uma ação previamente combinada e inusitada e que se dispersa rapidamente), nem tampouco de concertos. “É para quebrar as expectativas de quem vai ao local, pois acrescentaremos elementos musicais relacionados aos temas expostos, compondo e contribuindo para um todo”, disse.
O Teatro CETIP, localizado dentro do Instituto Tomie Ohtake, entre as Avenidas Faria Lima e Pedroso de Morais, com 627 lugares, é administrado pela Tickets for Fun. A empresa interessou-se pelas três características da programação enxuta da orquestra: diversidade, vivacidade e qualidade. Serão seis concertos e um ensaio aberto só para os assinantes com o pernambucano, compositor e cantor Lenine.
Solicitado a apontar um dia especial da programação para o leitor do Música em Letras, o maestro disse: “Esta é uma solicitação difícil, pois todas são especiais e montei cada repertório mantendo ligações entre as obras”.
Conheça, a seguir, a programação da temporada 2015 da OCAM.
29 de Abril, 21h
“Abrindo o programa tenho compositores vivos onde a raiz é Debussy”, disse o maestro que faz a orquestra “atacar” de Debussy (1862-1918) com a peça “Prélude à l’après-midi d’un Faune”, escrita para balé, baseada no poema “A Tarde de um Fauno”, do poeta francês Stéphane Mallarmé (1842-1898). Concebida para uma orquestra grande, o espectador irá escutar uma versão reduzida para apenas 10 músicos, feita por um aluno de Arnold Schönberg (1874-1951). A música prossegue com outra peça do professor do curso de composição do Departamento de Música da ECA/USP, Sylvio Ferraz Mello Filho, segundo o maestro, “um dos grandes compositores brasileiros em ação”. A apresentação segue com “Shaker Loops” (1983), de John Adams, 68, celebrado compositor norte-americano, com fortes raízes no minimalismo, antes de se encerrar, com “Fratres” (1976), do também minimalista, Arvo Pärt, 80, compositor erudito estoniano. Os músicos solistas desta noite serão William Teixeira, no violoncelo, e Eliane Tokeshi, no violino.
20 de maio, 21h
Para a segunda noite, o maestro selecionou três compositores: J.S. Bach (1685-1750), Stravinsky (1882-1971) e Shostakovich (1906-1975). O último terá um de seus concertos escolhido para ser realizado pelo celista Viktor Uzur, que cursou a faculdade e mestrado em violoncelo, com diploma de solista, no conservatório Tchaikovsky, em Moscou. Sumidade, Uzur é solista de orquestras de câmara de vários países da Europa, América do Norte, do Sul e Ásia. Nessa noite, a orquestra estará completa, com seus 45 músicos.
1° de julho, 21h
Nesta data, a OCAM aniversaria e abre o concerto com uma peça de seu criador, Olivier Toni, “Três Variações para Orquestra”. No dia 27 de fevereiro, Jardim cedeu a OCAM para se unir ao Coral Paulistano Mário de Andrade, com o intuito de apresentarem obras de Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) e Camargo Guarnieri (1907- 1993), no salão nobre do Teatro Municipal de São Paulo. Nesta noite, que inicia o mês de julho, o regente titular do coral, Martinho Lutero Galati dá o troco, cedendo o coral para que a orquestra, junto com o coro Luther King, realizem “Glória”, de Poulenc (1899-1963). A voz da soprano que deve se deleitar com o som do timaço é a da cantora Rosemeire Moreira. De Villa-Lobos (1887-1959), está garantido “Bachianas n° 9”, escrito para orquestra de cordas e vozes, do qual Jardim elaborará um mix.
2 de setembro, 21h
Noite reservada a Arnold Schönberg e Brahms (1833-1897), e para a interpretação de Cármelo de Los Santos, virtuoso violinista que deve se esbaldar, pois tudo estará devidamente justo ao tamanho da OCAM. São peças compostas para orquestras pequenas.
26 de setembro, 10h30
Ensaio aberto apenas para os assinantes do plano com a presença do pernambucano Lenine. Ainda não estão definidos os arranjos que serão escolhidos pelo cantor, compositor e nem pelo maestro. Entretanto, pode haver material do novo disco que Lenine está lançando. Segundo Jardim, “será uma experiência ótima para os músicos e para a programação, pois quero deixar claro que a OCAM não faz ‘concessão’ para a música popular, como muito regentes assim entendem”, afirmou o maestro que promove possibilidades de se dar importância à música popular brasileira. “O que a orquestra toca precisa ter interesse. Arranjos bem feitos, que não explorem apenas o fato de o convidado ser uma figura conhecida. Até Tom Jobim, mal arranjado, soa ruim. No caso, bons arranjos que tenham a orquestra pensada com inteligência, interagindo com a música, são muito bem vindos”, falou o maestro que trabalha com músicas folclóricas e populares alemãs, como as de Brahms, Schumann (1810-1856) e Beethoven (1770-1827), entre outros . “Aqui fica a possibilidade de concretizarmos um entendimento maior com a nossa música popular”, acrescentou Jardim, revelando que talvez incorpore neste dia “algo” de “Matita Perê”, álbum de Tom Jobim (1927-1994), lançado em 1973.
31 de outubro, 11h
Beethoven e Poulenc, com dois pianos (Luciana Sayuri e Eduardo Monteiro), ambos professores e pianistas do Departamento de Música da ECA/USP. “Este é um concerto que está amadurecendo, pois sempre que posso o executo com a orquestra”, disse o maestro afirmando que “está ficando cada vez melhor”.
2 de dezembro, 21h
Dois autores voltados a “um certo nacionalismo”: Villa-Lobos e Antonín Dvorák (1841-1904), envolvendo as obras “Bachianas n° 4”, e as “Danças Eslavas, opus 46, nº 8”. Segundo o maestro, tem por objetivo ser “algo bem acessível ao público para terminar o ano”.
OUTROS PROJETOS
Gil Jardim inscreveu dois projetos na Lei Rouanet para captar recursos e estimular o apoio da iniciativa privada para a orquestra. Um deles está relacionado à temporada de 2015 e o outro, de responsabilidade social, é em parceria com o Instituto ACAIA, que atua em três favelas no entorno da Vila Leopoldina, próximo ao CEASA, abarcando as comunidades das favelas da Linha, do Nove e do Conjunto Habitacional Cingapura Madeirit, que totalizam aproximadamente 900 famílias. No projeto, estima-se 16 apresentações com cerca de 20 músicos (em rodízio) da OCAM, com cenários feitos pelas crianças das comunidades a partir de histórias verídicas.
Para 2016, o maestro pretende ter o percussionista Naná Vasconcelos, 70, ao seu lado para realizar um projeto com texto e argumento do poeta e músico José Carlos Capinam, 73, sobre Pierre Verger (1902-1996), o Fatumbi, fotógrafo e etnólogo autodidata franco-brasileiro. “Falei com o Naná e ele já topou. Não pretendo fazer isto para orquestra, mas com um número reduzido de bons músicos, algo em torno de dez para viabilizar as apresentações e viagens”, falou.
Outro projeto englobando a OCAM mescla dois compositores argentinos e dois brasileiros. Um dos argentinos é o pianista Diego Schissi, e os dois brasileiros, a flautista Léa Freire e o saxofonista e clarinetista Naylor Azevedo, o Proveta da banda Mantiqueira. “Ainda vou conversar com os compositores para que ao escreverem para a orquestra tenham uma perspectiva renovada”, disse o maestro.
O segredo do sucesso de tantos anos na orquestra está em suas próprias palavras: “Se você se propõe a fazer um projeto dentro de uma linguagem artística, no caso a musical, cujo objetivo é a qualidade, você jamais deve procrastinar essa responsabilidade, a da qualidade”, ensina o maestro que considera este seu maior aprendizado na OCAM.
Saiba preços e outros detalhes do plano de assinaturas da temporada 2015 da OCAM em http://premier.ticketsforfun.com.br/search/SearchResults.aspx?k=ocam
No vídeo abaixo, o maestro Gil Jardim convida o público para os concertos da temporada de 2015.