Silêncio em São Paulo, hein?
Dei de ler Olavo Bilac (1865-1918). Encontrei “Sons da Cidade”, crônica publicada no vespertino carioca “A Notícia”, no dia 18 de abril de 1908. Nela há o rico e bem humorado relato do silêncio provocado, na cidade do Rio de Janeiro, em homenagem à Paixão de Cristo. Para Bilac, nesta ocasião, o silêncio provocava uma “incômoda sensação de angústia”, “(…)sou dos que sofrem de insônia na roça (…)”, escreveu.
Na crônica, os sinos e vários outros ruídos urbanos (ambulantes, buzinas, vendedores de leite, etc) se emudeciam nesta ocasião, inclusive os pianos. Para o poeta, “monstros”. Segundo ele, quando o som dos instrumentos retornasse à cidade seria um transtorno. “Mas ai de mim. Com a voz dos sinos… vai acordar 557 mil pianos que infestam o Rio de Janeiro…Foi a única voz de que não tive saudade…”, escreveu Bilac acrescentando que só em seu quarteirão havia “sessenta e três (ou mais) desses monstros melodiosos”, que se preparavam para retornar, soarem e perturbá-lo, por meio de uma descrição primorosa. “Submetidos a um regímen de silêncio durante dois dias, com as dentaduras alvinegras apertadas pelas tampas de mogno, com todo o corpo abafado e comprido dentro das pesadas capas de linho e lã, – com que fúria com que estonteante gritaria, com que estrepitoso desabafo vão eles daqui a pouco celebrar a sua própria ressurreição!”. E finaliza: “Para os pianos é que deveria haver algumas cem ou cento e cinqüenta quintas e sextas- feiras santas por ano”.
Sabe-se que depois da Revolução Industrial, máquinas passaram a “solar” bem mais alto que tudo, sobressaindo-se aos sons naturais e aos humanos. Estudos indicam que os sons naturais, das culturas primitivas até hoje, decresceram enquanto o som de utensílios e tecnologia cresceram. Em 2011, a OMS (Organização Mundial de Saúde) deu para a poluição sonora o segundo lugar entre as principais causas de poluição no mundo, perdendo só para a do ar.
Isto, aliado à crônica de Bilac, levaram-me a refletir sobre alguns sons de São Paulo, além de instigar, no Música em Letras,uma procura por um refúgio de silêncio na capital. Confesso sofrer uma fadiga provocada por excesso de som. A solução, talvez, fosse uma câmara anecoica, onde é possível medir um nível de ruído abaixo de zero decibel (limite onde o ouvido humano pode detectar sons) e experimentar a sensação de total ausência de som. Contudo, isto me incomodaria muito. Muito mais do que a quietude da Semana Santa ou os pianos à Bilac. Seria a morte. Procurei a vida. Afinal, segundo o compositor John Cage (1912-1992): “O silêncio não existe. Sempre está acontecendo alguma coisa que produz som!”
TRILHA DO SILÊNCIO
Para tentar recompor a psique e manter inalienável meu direito à tranquilidade, parti em busca do suposto reservatório de quietude alcunhado de Trilha do Silêncio, ao pés do Pico do Jaraguá, dentro do parque estadual homônimo. Lá, no útimo dia 1º de abril, à tarde, o Música em Letras percorreu a trilha e constatou que não há silêncio na Trilha do Silêncio. Carros, motos e aviões (principalmente) entram, sem claquete, no panorama sonoro que tem ao fundo o som suave do balançar das folhas nas árvores . Nele, improvisos cantados por pássaros entremeiam-se ao som de nossos próprios passos, mas com o som intruso de Boeings, Yamahas, Hondas e o escambau. Além do vídeo constatando tudo isso, no final do texto, assista também um beija-flor tomando banho, no local, tendo como trilha sonora o som de um avião. Um insucesso para minha busca e um êxito para o dia, o da mentira. Trilha do Silêncio, hein?
Assista abaixo o vídeo e percorra a Trilha do Silêncio, com o Música em Letras.
Assista o vídeo abaixo de um beija flor tomando banho na Trilha do Silêncio ao som de um avião.
SONS DA CIDADE
Parti então em busca do oposto. Do som. Em especial um som da cidade, que ecoa em minha mente, desde minha mais tenra idade. Nasci e fui criado no centro de São Paulo. No epicentro da gema. Estudava na praça da República, colégio Caetano de Campos, onde era frequente ouvir, de dentro da sala de aula, gritos de “pega ladrão! Pega ladrão!”, substituídos depois, por “trombadinha, trombadinha”. Morava, desde que nasci até uns sete anos, na rua General Rondon. Pequena, de só dois quarteirões, começa na praça Princesa Isabel e termina na rua Barão de Limeira. O local era zona da cidade, conhecida, nos anos 1970, como Boca do Lixo, chiste à Boca do Luxo. Ao meio-dia e às seis da tarde, uma voz soava alto e forte pautando a vida de todos da região. Ela vinha do topo do prédio da Folha. Está lá, até hoje, embora tenha perdido “a boca” do meio-dia, e agora “ataque” só às 18h, todos os dias, menos sábados, domingos e feriados. Para mim, seu som era a voz do meio-dia, a hora do almoço. Hora de prazer. Menino e gordo, adorava-a. Condicionei-me a ela até mudar de bairro. Entretanto, conhecia-a pessoalmente apenas na última quinta-feira, dia 2, véspera da sexta-feira santa.
A DONA DA VOZ
A voz é de uma “diva” nacional e tem seu som emitido por seis enormes bocas das cornetas de metal abrigadas por um guarda-chuva/sol do mesmo material. Seu corpo inteiro, cerca de dois metros de altura, pesa cerca de 150 kg. Ela está instalada no terraço do prédio da Folha, ao lado do heliponto. Provavelmente, esta senhora existe desde 1955. Parece ter vindo da rua do Carmo para o prédio da Barão de Campinas, 320, onde a Folha se instalou, antes de construir o atual prédio da Barão de Limeira, 425, na década de 1970. Quando o edifício ficou pronto, a sirene foi transferida para ele.
Segundo o jornalista Cristiano Cipriano Pombo, da Coordenadoria – Banco de Dados da Folha,“os moradores da rua também se habituaram com o toque. Numa ocasião, o proprietário do jornal, o sr. Frias (Octavio Frias de Oliveira, 1912-2007) pediu para abaixar o volume, e os moradores reclamaram porque acertavam o relógio por ela.”
A sirene sempre foi automática e está ligada aos mesmos relógios que estão no saguão do prédio e nas Redações da Folha e do jornal “Agora”. Todos ligados ao mesmo timer (2 minutos a mais que o horário de Brasília).
Pelo fato de a “diva” estar dentro da área de “facilities”, entrevistei Wagner Roberto Menta, 51, gerente geral de Suprimentos e Facilities da Folha, o que antes era chamado de manutenção predial. Fui em busca, entre outras coisas, de apurar o porquê da “diva” ter perdido a “boca” do meio-dia há cinco anos e não ter mais retornado. “Há cinco anos, tínhamos uma atividade fabril por conta do, hoje desativado, parque gráfico onde rodávamos o jornal. Deixamos a sirene tocar, só às seis horas, mais pela tradição”, disse. “Uma ocasião, em um período de obras, ela foi desligada e recebemos pedidos da vizinhança para que ela voltasse a tocar, pois ela fazia parte da vida das pessoas.” Menta falou que as pessoas se pautavam por ela: “Elas ligavam perguntando: ‘Por que parou de tocar? Este era meu guia. Eu sabia minha hora de sair e de chegar’”.
Sobre seu potente canto, Menta disse que já presenciou uma pessoa quase cair de susto diante da proximidade da performance da cantora de lata. “O segurança contou-me que já viu uma pessoa cair”, falou o gerente afirmando que o alcance do som é “em torno de dois quilômetros”.
A duração de seu canto tem 30 segundos. Ela inicia seu potente solo com o som em um crescendo, até atingir 15 segundos, e decresce melancolicamente até morrer aos 30. Nunca pensei que o fim do som de uma sirene pudesse ser triste. Coisas dos sons.
O final da entrevista e da audição, que realizei subindo com um bombeiro ao topo do prédio do jornal, vim para a Granja Viana, no condomínio Fazendinha, em busca de silêncio para melhor escrever este post. O dia e o local foram os mesmos da queda do helicóptero que ocasionou a morte de seus cinco tripulantes, incluindo o filho do governador do Estado Geraldo Alckmin, Thomaz Rodrigues Alckmin, 31. O som de helicópteros tomou conta da paisagem sonora no início da noite. Atravessou-a e se intensificou, na parte da manhã de hoje, sexta-feira santa.
Parafraseando as últimas palavras de Hamlet, proferidas no quinto ato da peça do mesmo nome: “O resto é silêncio”.