O tempo dos templos
Onde hoje está a Igreja Evangélica Apostólica Renascer Em Cristo, na galeria do edifício Copan, no centro de São Paulo, antes funcionava um outro templo. Irrestrito, abrigava várias filosofias. Nele, durante os anos 1970 e 1980, professores da USP, intelectuais, escritores, críticos, dramaturgos, poetas e artistas se reuniam. Concordavam, discordavam, discutiam e acrescentavam à vida de quem ali estivesse. Este era o meu caso, que levado ainda adolescente pelas mãos de um primo e mentor intelectual, passei a frequentar o local. O primo, Jefferson Figueiredo Ferraz de Siqueira, 65, advogado e intelectual ávido por leitura, satisfazia parte de sua busca por sabedoria, ali entre amigos. Entre eles, Plínio Marcos (1935-1999) e o crítico musical José Ramos Tinhorão.
Enxuto, o templo anterior ao de Cristo ocupava seu pequeno espaço, na loja de número 36, na avenida Ipiranga, 200, com livros de filosofia, sociologia e antropologia, entre outros. Chamava-se livraria Seridó. Na ocasião, o nome já foi uma aula, na qual aprendi que se referia à região do sertão nordestino que abrange municípios do Rio Grande do Norte e da Paraíba. Entretanto, o templo era mais conhecido por Livraria do Pereira, nome de seu dono, o livreiro Pereira, morto, como o templo, há mais de 10 anos.
Ok, faz parte da dinâmica de grandes cidades, como São Paulo, a extinção sem dó de seus estabelecimentos. Mesmo os que têm como característica reunir informalmente pessoas que leem, ouvem, pensam e elaboram antes de dizer com propriedade o que entendem sobre um determinado assunto. Mas nem tudo se desfaz e nem tudo está perdido nesta cidade impermanente. Há ainda na capital templos como o citado acima, onde não a leitura, mas a audição, prevalece. Entre eles, um, que em seu pequeno ambiente de 25 metros quadrados propicia grandes discussões e nos inspira há quase 36 anos. Foi lá que saquei: “O sonho de todo disco novo é ser usado”.
Refiro-me à loja de discos Pop´s, também em uma galeria, na rua Teodoro Sampaio, no bairro de Pinheiros. Se a música tem poder de cura, esta seria uma ótima e acolhedora farmácia. Primeiro, por dar a sensação de que estamos comprando e não de que estão nos vendendo. Depois, pela simples razão de que o atendimento e a qualidade dos remédios, ou melhor, dos discos é excelente. Fosse um açougue teria só filé. As carnes? Só MPB, rock, jazz e instrumental brasileiro. Muitos independentes.
O Música em Letras esteve lá e entrevistou Ademir Pedro Manzato, 58, proprietário do local que em 1979 resolveu deixar o emprego em um escritório de contabilidade, no largo do Arouche, no centro, sacar seu Fundo de Garantia e abrir a loja em Pinheiros.
Manzato veio para São Paulo com a família, aos 11 anos, de Nhandeara, cidade perto de São José do Rio Preto, a mais de 500 quilometros da capital, e foi morar no Parque São Lucas, na região sudeste. Com o tempo, comprou a loja, um carro, um apartamento na rua Oscar Freire, e constituiu família, com a mulher, Regina, e duas filhas, Lívia, 33, psicóloga, e Laís, 24, estudante de veterinária. “Além de ter pago os estudos delas, a loja me deu muita coisa boa. Morar aqui é bem melhor que no Parque São Lucas, né?”, disse Manzato.
No local, frequentado por músicos e artistas, 12 mil itens (mais CDs que DVDs), custando entre R$9 a R$100, decoram suas bancadas e paredes. “Se colocasse a foto de cada artista que vem aqui, não caberiam os discos”, disse o lojista que fatura cerca de R$40 mil por mês na minúscula loja que tem um pequeno banheiro, uma pequena sala e um pequeno sótão.
FIÉIS E SEUS USADOS
Quando os clientes juntam seus discos novos ou usados e levam para Manzato, ele os troca por outros da loja. “Antes comprava bastante, hoje faço mais para satisfazer o cliente”, disse o vendedor que em sua bancada de usados tem sempre ótimas barganhas. “Por isso, pagamos baratinho, para poder vender baratinho também”, falou o proprietário que atende jornalistas e músicos que se desfazem com frequência de seus acervos. Entre as figuras carimbadas que frequentam a loja está o alagoano Fernando Melo, 58, violonista do Duofel. “Ele não garimpa mais porque aparece sempre e já sabe tudo que tem. Vem ver coisas novas”, explicou Manzato.
Segundo o proprietário, o melhor dia para vendas e encontrar quem é do ramo é sábado de tarde. “Vem um monte de gente, colecionador, músico, artista. Dá de tudo”, contou Manzato que às vezes tem de acalmar os ânimos dos frequentadores em discussão. “É engraçado, os caras metem o pau em um monte de gente. Sempre um não presta, o guitarrista de tal grupo é ruim, mas o grupo é bom; o cara não sabe tocar, mas o cantor sabe cantar…O outro detesta os Beatles”, falou rindo o dono da loja que entre seus “fiéis” já atendeu vários músicos. Entre eles o guitarrista Marcelo Fromer (1961-2001), Eliete Negreiros, Arnaldo Antunes, Ná Ozzetti e Vânia Bastos. “Faz tempo que elas não aparecem”, comentou. “Estão devendo, mas é visita”, completou rindo o comerciante. As cantoras Céu e Tulipa Ruiz também estiveram na loja quando lançaram seus primeiros CDs independentes, “mas também faz tempo que não aparecem”, disse em relação as outras “devedoras”.
Entre muitas histórias, Manzato sempre ri quando relembra a do sujeito que afoito pediu para ele arrumar um disco do “Róchéte” ao invés de “Roxete”. Hoje, vende pela internet, mas diz que o movimento melhor se dá dentro da loja. “Aqui a pessoa vê, pega na mão, conversa…É diferente”, explicou afirmando que ali só aparece quem tem o gosto apurado: “Quem vem aqui já sabe que não vendemos coisas ruins. Só de qualidade”.
O critério utilizado por ele para selecionar os ítens inclui, além da qualidade a pouca quantidade.“Tem que saber comprar a quantidade certa e não comprar muito para depois ficar encalhado”, explicou sem revelar o nome dos mais-mais da lista de encalhe .“Ah, não. Depois o cara fica chateado”, falou.
Contudo, quando é coisa boa, sempre vende bastante. “A não ser em caso de morte trágica, como em acidentes. Aí o artista vende muito mais. Os Mamonas e o John Lennon? Vixe, nunca vendi tanto. Não vendi mais porque as gravadoras não tinham para entregar, contou acrescentando, que apesar da morte recente de Inezita Barroso (1925-2015) ninguém havia procurado discos dela ainda. “Tenho uma caixa dela muito boa com seis CDs”, avisa.
Mortes à parte, até hoje os discos que mais vendem -“ninguém acredita, mas toda semana vendo pelo menos um”- , segundo ele são dois clássicos do jazz: “Kind Of Blues”, (1959), de Miles Davis (1926-1991), por R$16, e “Take Five” (1959), do The Dave Brubeck Quartet. De MPB, a tríade Caetano, Gil e Gal disputam lugar com Marisa Monte, Mônica Salmaso, Ivan Lins, além de Hermeto Pascoal, que “está com poucos discos, mas o que eu tenho dele vende”.
Manzato, Evaldo (seu cunhado), Regina e Laís tocam a loja de estrutura bem familiar e por isso os negócios vão bem. “Se eu tivesse funcionários e tivesse que pagar aluguel estava enrolado”, falou o proprietário que calcula “sempre ter um lucro bruto de 40% para depois ficar com 15% a 18%, tirando impostos e embalagem”, contou.
O pequeno templo abre suas portas aos fiéis seguidores da música de qualidade, de segunda a sexta, das 10h às 19h. Aos sábados, das 10h às 16h30.
Irmãos de som, oremos pela permanência do templo.