Oficinas de “concertos”

Carlos Bozzo Junior
O baterista Cuca e o saxofonista Wilson Teixeira (Foto: Carlos Bozzo Junior)
O baterista Cuca e o saxofonista Wilson Teixeira (Foto: Carlos Bozzo Junior)

Pense em oficinas onde mecânicos levam seus carros para arrumar. Nelas, imagine funcionários felizes por compartilharem com os clientes o melhor de suas experiências profissionais. Tudo isto com preços abaixo do mercado. A comparação com o mundo automotivo não é descabida quando se conhecem as oficinas que acontecem no Sindmussp (Sindicato dos Músicos no Estado de São Paulo).

O Música em Letras esteve lá e entrevistou alguns dos 11 “mecânicos”- ou melhor, músicos professores- e alguns de seus “clientes”- músicos alunos-, além de conseguir gravar uma “palhinha” com Alemão, presidente do sindicato, cantor e sambista.

Leia a seguir parte do que foi colhido nos dois andares dos prédios de números 318 e 324, da avenida Ipiranga, centro de São Paulo.

INSTALAÇÕES

O local está sofrendo uma grande reforma para atender melhor os 11 “mecânicos” que cuidam dos 224 “clientes” -fora os que estão nas listas de espera- da arte de amealhar os sons. São 10 salas onde ocorrem os “reparos”, as aulas. Uma sala para gravação (estúdio), uma direcionada à prática de conjunto e outras, que mesmo sem estarem prontas, já estão com suas paredes, chãos e portas, revestidos com isolação acústica, bombardeados por notas musicais.

Embora formem maioria quase absoluta, não é preciso ser músico profissional para frequentar as oficinas que ensinam, além da atitude, teoria musical, canto, percussão, piano, bateria, saxofone, violão, contrabaixo, guitarra ou cavaquinho. Entretanto, a prioridade de atendimento é dada ao profissional, que deve se associar ao sindicato (R$20 ao mês) e pagar mais R$100 referentes à mensalidade dos “reparos”, ou melhor, das aulas, quatro ou cinco por mês. Para que se tenha uma ideia, o preço de uma aula particular dada por “mecânicos” do nível que o sindicato oferece não sai por menos de R$150, cada.

“Não é só o preço que traz vantagem. Tem o convívio com outros músicos e ficamos sabendo o que acontece no meio. Temos notícias sobre as casas que contratam bem, as que pagam mal e o porquê, além de aprimorarmos nossos estilos, técnicas e aprendermos como se portar em um palco ou em uma gravação”, disse o músico Guilherme José da Silva Barreto, 18, que vive da música tocando em baladas, bares e gravações. Toda semana ele sai de Embu das Artes, a 30 quilômetros do centro, gastando cerca de três horas entre ônibus e metrô, que o levam para ter seu som lapidado pelo baterista Edgard Teixeira, o Cuca, considerado um dos melhores do país.

Cuca, 42, tem 26 anos de música com bagagem pesada no instrumental e popular. Além de tocar com a cantora Maria Rita, já “atacou” com Eduardo Araújo, Fábio Júnior, Marina Lima, Paula Lima, Família Lima, mas na oficina não “manda o Lima”, gíria de músicos para dizer que vão faltar ao trabalho. “Tenho prazer em vir aqui. Atendo músicos com mais de 10 anos de carreira. Ensino desde o básico até tocar com o click”, falou referindo-se ao sinal sonoro eletrônico, que imita o som do metrônomo, para não se perder o andamento na música. “Tenho gente formada em boas escolas e faculdades, mas que chegam aqui bem verdes ainda”, explicou o mestre que amadurece seus 12 “clientes” (42 em lista de espera) por meio de sua larga experiência autodidata.

“Clientes” têm direito a três faltas consecutivas ou oito intercaladas ao longo do ano. Caso ocorram as oito faltas, o músico vai para o fim de uma imensa lista de espera. A ausência em quatro semanas consecutivas, sem avisar, ocasiona a substituição do aluno pelo próximo da lista. Por isso, o índice de presença é grande. Vinte minutos é o máximo de tolerância para atrasos. “Aqui ensinamos disciplina também”, disse Wilson Teixeira, 53, saxofonista que abarca uma experiência enorme tocando na noite paulistana em casas de shows, bares, restaurantes, hotéis e boates. “Entre outras coisas ensino os caras a tocarem até sem luz, de cor. Se faltar energia tem que continuar tocando o repertório”, falou o músico acrescentando ter reparado vários “defeitos” em seus “clientes”. “Houve uma melhora sensível em sonoridade, repertório e improvisação.” O saxofonista contou que muito “cliente” chega na sua oficina pensando que tocar serve para “ganhar uma grana rápida e pegar umas minas” fazendo uns solinhos parecidos (só parecidos) com os do músico Kenny G. “Depois de um tempo eles se veem encrencados por estar faltando alguma coisa”, disse. Geralmente falta, falta música e atitude, coisas que o experiente saxofonista conserta.

MECÂNICO CUBANO

Bem antes dos médicos cubanos que há cerca de dois anos vieram para o Brasil, o percussionista Eduardo Andres Espasande, 43, mora no país há 18 anos. Começou, em Belo Horizonte, preparando alunos para a prova prática de música do vestibular da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais). Ficou lá durante sete anos. Gravou com inúmeros artistas e bandas, entre elas Jota Quest. Depois foi para Salvador, na Bahia, tocar durante quatro anos na banda Beijo, que acompanhava a cantora de axé Gilmelândia. Chegou em São Paulo há 8 anos para trabalhar em uma empresa de pratos de bateria e fazer o som que gosta, com uma “galera que toca latin jazz e fusion”.

Hoje, sente-se realizado ao “reparar” os defeitos de seus “clientes”. O método? “Tenho uma metodologia própria onde os alunos aprendem a ler e a tocar, tocando”, disse Espasande, seduzido pelo convite do sindicato por ficar à vontade para dar o curso de sua maneira.

Antes de desembarcar no Brasil, o profissional passou por um aprendizado duro nas escolas de Havana, onde nasceu. “Como são instituições gratuitas, se exige muito dos alunos. Isto faz com que o nível seja muito bom”, disse o cubano que estudou 13 anos de música, começando aos oito de idade. “Lá é obrigatório o músico estudar, no mínimo, 8 anos, mesmo para tocar na rua ou em barzinhos vagabundos. Não tem como fugir”, falou acrescentando que para atuar profissionalmente o artista tem que pertencer a uma empresa e esta só o aceita se ele tiver diploma. Fora isto, há uma avaliação em que a letra “A” dá a seu detentor a chance de ganhar melhor. “Normalmente se pega letra B e C, porque para receber A o cara tem que ser muito bom”, falou o músico que integrou a famosa banda Blanco Y Negro de Cuba.

Segundo o percussionista, ele cresceu e aprendeu demais aqui, inclusive para tocar música latina. “Tive que estudar mais”, falou, afirmando que em Cuba era obrigado a conhecer a obra de músicos brasileiros como Egberto Gismonti, Tom Jobim (1927-1994), Djavan e Gonzaguinha (1945-1991). “Eram estudos que eles utilizavam mostrando como cada região brasileira trabalhava a harmonia e definia seus caminhos”, disse elogiando a produção harmônica nacional e colocando-a no mesmo patamar da dos Estados Unidos. “O Brasil é uma potência em harmonia, muito mais que em percussão. A percussão é forte aqui, mas a harmonia faz você viajar e ir para lados inesperados.”

Sua concorrida oficina (com 39 pessoas na lista de espera) tem entre os “clientes” Carlos Alberto França Barros, o Carlos Café, 32, percussionista paulistano que há três meses passa pelos “reparos” e já reconhece a eficiência do trabalho. “Principalmente em questão de técnica melhorou muito. Está saindo mais som. Eu tocava com uma técnica de rua e ele acertou isto em mim”, disse o pandeirista que toca com o rapper Emicida, mora no Jardim Iporanga, na zona sul da cidade, mas não se incomoda de pegar o “metrozão” para receber “reparo” uma vez por semana. “Vale e muito”, disse.

Assista um trecho da aula de percussão de Eduardo Espasante.

TRABALHO, MÚSICA E SINDICATO

Gerson Ferreira Tajes, 40, é o Alemão, presidente do sindicato dos músicos no Estado de São Paulo, há um ano e quatro meses nesta função. Estudou música desde os oito anos, tocando trompete na igreja da Assembléia de Deus do Jardim Helena, zona leste da capital. “Tocava hinário e fazia casamento. Depois, fui para a noite. Cantava samba e fazia percussão”, disse.

Saiu da igreja porque “queriam que eu me convertesse e não aceitei”. Montou o grupo de pagode Emoção Maior, na COHAB (Companhia Metropolitana de Habitação), antes de gravar um CD solo, “Ale Samba”, que não emplacou. “Fui ludibriado”, disse Alemão que trabalhou em várias casas de shows e bares da zona leste e norte. Entre eles, Mistura Brasileira, no Tatuapé, e o Consulado da Cerveja, em Santana.

O homem trabalha desde que tinha 11 anos. “Lavava peças de carro numa oficina. Aos 15 anos já era da Federação de Transporte do Estado de São Paulo e prestava serviço também no Sindicato de Cargas”, disse ele que “trampava de motoboy” e por isso caiu algumas vezes, trazendo no corpo marcas dos tombos. As motos? “Tive de tudo, mas nenhuma ‘cabrita’. Era tudo certinho, com documentação.”

Alemão vai fazer um disco novo para ter “uma válvula de escape”. Segundo ele, o trabalho no sindicato é pesado. Na bolacha, músicas de Carlos Caetano, Jorge Aragão e Chiquinho dos Santos. Como presidente, sua gestão vai até 2018 e até lá promete mudar a história da categoria, que sofre por abandono, desrespeito e desvalorização da profissão, e acrescenta: “A exigência quem tem que fazer é o trabalhador, no caso, o músico. Ele tem que cobrar seus representantes. A entidade tem por obrigação prestar conta para a categoria do que está sendo feito, com o trabalho, com o dinheiro e trazer benefícios para ela”, disse o sindicalista que afirma não ter partido, mas ser de esquerda. “Meu partido é o trabalhador.”

Um dos lemas de Alemão é ter a diretoria sempre à disposição, com portas abertas a todos. Portanto, se o negócio é melhorar seu concerto, procure o homem, suas oficinas e seus “mecânicos”, especialistas em consertos.

Assista Alemão dando uma “palhinha” para o Música em Letras