O cozinheiro que virou luthier
Guitarras semiacústicas e contrabaixos, entre outros instrumentos de cordas, feitos pelo luthier Reinaldo de Campos, 53, são parte dos sonhos de vários músicos. Alunos destes instrumentos, na maior parte estudantes no Conservatório Dramático e Musical Doutor Carlos de Campos, de Tatuí, no interior de São Paulo, são seus maiores fregueses. Por quê? Porque Campos é do ramo. Entretanto, nem sempre foi.
O artesão recebeu o Música em Letras em sua oficina – que nem sempre foi oficina-, em Sorocaba, a 84 quilômetros da capital, e contou em entrevista exclusiva como chegou à profissão, que ainda não tem sua atividade registrada no Ministério do Trabalho. Contudo, ela se torna cada vez mais importante. Principalmente no meio musical brasileiro, que reúne musicistas exigentes em busca da personalização de seus instrumentos. As adequações em instrumentos musicais estão relacionadas a inúmeros fatores além do gosto por este ou aquele modelo. Entre eles, estética, uso, peso, tamanhos de dedos, mãos e braços de quem vai utilizá-lo, sem falar na sonoridade que se busca.
A madeira é mais um desses elementos, mas para Campos isto não é problema. “Conheço bem”, disse o artesão que dos sete aos 17 anos aprendeu a trabalhar com madeira no sítio em que morava, no bairro do Porto, em Capela do Alto, região metropolitana de Sorocaba. O pai, José Rodrigues de Campos, 92, carpinteiro, foi quem o ensinou a distinguir uma madeira da outra. O objetivo era utilizá-las em construção de casas, galpões, telhados, vigamentos e barracões. “Tínhamos uma plantação de eucalipto, além de uns cedros e muito cambará”, contou.
SELARIA E FERRAMENTAS
Com o pai também conheceu a arte da selaria, arrumando arreios de cavalos, fazendo arreamento para charrete, além de aprender a fazer ilhapa de laço (parte mais grossa do laço que recebe a argola). “O laço geralmente é feito de cinco tiras, só que a ilhapa é feita de duas tiras porque se você laçar uma criação e ela sair em disparada e derrubar o cavalo a ilhapa arrebenta. Ela é feita para arrebentar para não machucar o bicho e por isso é mais fraca que o laço que é trançado em cinco tiras”, explicou.
Das ferramentas, lembra que tinha as “brutas” como machado, foice, trado (para fazer buraco na madeira e encaixes) e o enxó (semelhante ao machado ou a plaina, que com uma lâmina curva é utilizada para trabalhar a madeira ao desbastá-la). Só não tinham máquinas.
NO EXÉRCITO
Com 17 anos deixou o sítio e foi morar com o irmão mais velho, em Campinas, que trabalhava na CPFL (Companhia Paulista de Força e Luz), empresa de distribuição de energia do interior de São Paulo.“Sou uma pessoa um pouco difícil de lidar. O meu irmão queria me direcionar para esta companhia, mas eu me alistei”, disse o artesão que ficou exatos 11 meses e 29 dias no quartel.
No primeiro mês, quando chegou o momento de entrevistar os recrutas, Campos não tinha carteira de habilitação para ser motorista. Ordem unida (uma das atividades militares, onde são treinadas as marchas militares e desfiles cívicos) não o contentava. Um soldado antigo perguntou-lhe: “Você gosta de trabalhar?” Ele disse que sim, que não gostava de ficar parado. “Então pede para ir para a cozinha”, disse o mais experiente ao soldado novo.
Assim, aprendeu a cozinhar no quartel. Começou fazendo arroz, 150 quilos por dia, só no almoço. Depois de dois meses, dada sua destreza, começou a cozinhar para cabos e soldados “Aí não fazia mais arroz, pegava pronto. Fazia só mistura”, falou o soldado que aprendera a lida com um cabo “muito revoltado da vida”, mas que “sabia muito de cozinha”. Enquanto isso, as madeiras e as ferramentas ficaram de lado.
Quando deu baixa, continuou a cozinhar aperfeiçoando-se no SENAC (Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial), em Águas de São Pedro, interior do Estado. Entre 1982 e 1983, fez o curso de culinária: “Não fui um aluno ‘top’, mas fui muito bom”. Saiu da escola empregado. Foi direto para a cidade de Jundiaí para ser cozinheiro no restaurante Carpas. “Tinha um lago e criavam carpas nele. Eu as fazia à milanesa, com molho, ensopada, além do caldo de carpas, que todo mundo adorava”, falou o ex-cozinheiro, que ali permaneceu durante um ano antes de mudar de cidade. Em seguida, foi para Piracicaba para servir cerca de 1.500 refeições por dia na IPP (Indústria de Papel Piracicaba) e depois na Caterpillar, onde permaneceu até 1996, como confeiteiro atendendo cerca de 3.500 funcionários por dia.
A cozinha da multinacional foi terceirizada e Campos resolveu trabalhar “por conta própria”, vendendo verduras e frutas na rua, percorrendo Piracicaba, Tietê, São Pedro, Limeira e Sorocaba, onde fixou residência.
DE QUITANDA A OFICINA DE LUTHERIA
Em Sorocaba, Campos montou um comércio de hortifruti , mas teve de se adequar quando a coisa ficou ruim. Passou a comercializar itens de papelaria, utensílios domésticos, ferramentas, até chegar a vender passes escolares. “Só que eu nunca estava contente. Não estava feliz. O comércio tem uma rotina muito fria”, disse o ex- comerciante que não se satisfazia. Nesta época, Campos mobiliou sua casa toda com móveis velhos que recolhia nas ruas e reformava, ativando mais e mais sua satisfação em trabalhar com madeira.
Há cerca de dez anos, sua mulher, Cecilia Kazumi Misumi, que o ajudava na loja conheceu um senhor ao fazer uma venda. Descobriu que ele era chileno, luthier e ensinava a profissão. Misumi mostrou ao marido o cartão que Ceferino Eduardo Henriquez Salazar lhe deu. Foi assim que indicou para o marido uma oportunidade de acabar com a tristeza que o assolava. “Vai e faz o curso. É uma coisa que você gosta, mexer com madeira”, disse a ele.
Campos procurou saber do curso com Salazar, que não tinha onde instalar suas máquinas devido ao barulho e acabou por aceitar o convite de se estabelecer em uma parte da loja para ensiná-lo. Adaptaram o espaço e o curso, que tinha por finalidade a construção de um instrumento de cordas (menos piano). Quando o chileno perguntou qual instrumento Campos queria aprender a fazer, a resposta foi rápida: “Uma guitarra Gibson Les Paul”, disse contrariando a maioria dos aprendizes que buscam instrumentos mais fáceis para serem manufaturados.
O mestre ainda tentou dissuadi-lo: “Olhe Reinaldo, tudo bem, mas esta guitarra é muito difícil de fazer, você não quer escolher uma outra?”, perguntou, recebendo de cara um “não”.
“Por quê da escolha?”, perguntei. Campos disse ter sido atraído pelas curvas do instrumento, mas que nunca havia nem tocado em um.“Nunca toquei nada. Nem afinar instrumento eu sabia. Era meu pai que afinava em casa. Escolhi pelo design, pelas curvas”, falou.
O mestre mostrou que a tarefa era muito difícil por conta exatamente das curvas e de graus diferentes que existem no braço, mas Campos não arregou. Comprou a madeira, mogno, e partiu para construir a guitarra em um bloco só. “Não como se faz hoje, com tampo de uma cor e fundo diferente. Como antigamente, em um bloco só”, explicou. “Hoje, este modelo é feito com o tampo de madeira de bordo e o corpo em cedro ou mogno.”
Munido do molde e da planta do instrumento, emprestados pelo professor, riscou o tamanho do corpo, o lugar do captador e o contorno. Como o mestre tinha de se ausentar por cinco dias, orientou o aluno a não mexer na obra enquanto estivesse fora. Campos desobedeceu e cortou o bloco de madeira, furou para os captadores, marcou a ponte, riscou os encaixes do braço, fez o rebaixo da fita e causou espanto pelo trabalho bem feito ao invés de receber uma bronca. “Muito bem”, disse o chileno. Em dois meses a guitarra estava pronta.
Daí em diante, Campos passou a estudar escalas, outros instrumentos e aprendeu tudo o que podia com o chileno, que de teoria sabia muito. “Ele nunca escondeu o leite, me passava tudo”, disse. Entretanto, por achar que o local, afastado do centro de Sorocaba, não atrairia clientes, e também por não concordar em utilizar matéria-prima nacional, o chileno foi embora com suas máquinas e ferramentas. Campos começou a adquirir seu próprio material de trabalho e a realizar manutenção de violões, guitarras e baixos, além de confeccionar novos instrumentos.
CONFLITO
Um dos motivos de o negócio não ir em frente com o chileno era o desentendimento em relação ao uso da madeira nacional. “Ele queria usar só o que os norte-americanos usam. Mas eles trabalham com aquelas madeiras porque não têm outras. Aqui, no Brasil, temos um monte de madeiras ótimas”, justificou Campos, que na maioria de seus instrumentos utiliza cedro, cumaru e marupá, para confeccionar braço ou corpo, e ipê, para escala.
“Existe um preconceito enorme com nossas madeiras, mas é coisa daqui. Sabe por que os norte-americanos usam o bordo? Porque eles só tem ele. O custo é muito alto para utilizarem madeiras de fora. Eles já tem que importar o jacarandá e o pau-ferro para fazer escala. Nós temos o roxinho para fazer escala e frente de baixo. Os estrangeiros ficam maravilhados com nossas madeiras. Os próprios luthiers daqui têm preconceito com a madeira brasileira. Poucos, como o Josino de Osasco, usam madeira brasileira. Um braço de cumaru feito em três peças fica uma rocha. Temos clientes que tocam pelo Brasil inteiro, tanto no sul como no norte e nordeste. No norte, que é quente e úmido, o braço entorta. No sul, as cordas trastejam, ficam batendo nos trastes. O braço de bordo é muito mole, flexível, cede rápido e muito. Você pega o bordo e vai entortando, entortando. Ele vira um arco, porque a madeira é uma massa. É uma madeira muito boa de trabalhar. É muito lisa e para dar o acabamento é fácil. A madeira daqui é dura para dar acabamento”, explica
GUITARRAS, BAIXO E BAIXOLÃO
Um dia, Campos viu em DVD, em um show da Cássia Eller (1962-2001), “um instrumento diferente, que nunca tinha visto”, disse o luthier, que ficou impressionado com o grave do subwoofer onde estava conectado o aparelho. Informou-se e descobriu tratar-se de um baixolão. “Fui e fiz um com madeira nacional.”
Ao mesmo tempo, as guitarras feitas por Campos começaram a ganhar notoriedade nas mãos de músicos e professores do conservatório de Tatuí como Fábio Leal, que gostou do som de suas criações e adquiriu uma delas.
Um aluno do conservatório foi experimentar uma dessas guitarras e levou o baixolão para mostrar para Sergio Frigério, 45, professor de contrabaixo, que além de ficar com o instrumento, ajudou a ajustá-lo melhor na parte elétrica, e encomendou um baixo de seis cordas para se apresentar na Berklee College of Music, em 2008, causando tremendo sucesso com o instrumento.
DE QUITANDA A OFICINA
A loja de passes, outrora quitanda, começou a sumir e a ceder lugar para a oficina de manutenção e construção de instrumentos. Campos passou a adquirir mais máquinas como a de desempeno, máquina de lixa, serra de fita, desengrosso, tupia superior, entre outras. Terminou de montar o espaço só no ano passado e ganhou um sócio, Cláudio Castilho, 32, que o auxilia a fabricar os instrumentos.
Hoje, pessoas de todos os lugares chegam em busca de seu trabalho, ao contrário do que dizia o chileno que julgava que a oficina estava em local de difícil acesso. “As pessoas vêm pelo serviço, que é bom”, afirmou. Todos os dias, elas chegam de carro, a pé ou de ônibus ao local, que é extremamente organizado, limpo e iluminado.
“Tem gente que vem com motorista. Gente rica, mas só vendo para quem precisa.” Para quem quer encomendar um instrumento, o artesão pergunta: “Qual o gênero de música que você toca?” Campos disse que já recusou encomendas por não se adequarem ao destinatário. “Um garoto chegou aqui com o pai e me pediu um baixo de seis cordas. Aí eu perguntei por quê? Ele disse que tinha visto na loja e achava bonito. Pô, ele não sabia tocar o de quatro cordas e já queria um de seis”, disse e orientou o menino a comprar um baixo de quatro cordas na loja “bem baratinho”. Daí se ele gostasse partiria para outro. E ainda disse ao garoto que levasse a compra na oficina, para “regular direitinho”. “Ele ia fazer o pai gastar um monte de dinheiro comigo e depois o baixo ficaria encostado,”
Para Campos, “o importante não é ganhar dinheiro. É viver em harmonia com todo mundo. Passar as coisas boas, porque não tem outro caminho. Se você passa coisas boas, recebe coisas boas também”, ensina o artesão que fabricou mais de 100 peças entre guitarras e contrabaixos, mas tem no grosso de sua receita ajustes e manutenções de instrumentos. “Não dá para pegar um instrumento e fazer só isso ou aquilo. É um conjunto de coisas. Mexo em tudo. Não faço um ajuste sem fazer um alinhamento de traste, de braço, pestana, rastilho, acerto de nota ou parte elétrica. Entrego o instrumento redondo”, falou afirmando ainda que, depois de um tempo, se o cliente quiser, pode levar o instrumento para um reajuste que ele não cobra.
Em média, os instrumentos do luthier Campos custam de R$ 4 mil a R$ 7 mil, “Depende da madeira, parte elétrica e do modelo. Alguns são mais difíceis”, disse o artesão que em ritmo normal, quando não há pedidos acumulados, entrega a encomenda em até 60 dias.
RECUPERÁVEIS
Quando o assunto é reparos e manutenção, segundo o luthier, todo instrumento tem jeito. O importante é quanto vai se gastar para que ele fique bom. “Tem gente que traz coisas aqui que você não acredita. Arrumo, mas só se valer a pena. Não faço só para ganhar. Faço para satisfazer o cliente e deixar o instrumento redondinho para ser tocado”, disse o artesão que se encontrou na profissão aos 43 anos de idade e afirma aprender todos os dias com os clientes. “Hoje, estou realizado.”
“Por isso minha oficina está sempre cheia. Deixo o cliente entrar e ver o serviço sendo feito. Aqui não escondemos nada de ninguém”, afirmou o luthier, permitindo que o Música em Letras gravasse imagens de seu local de trabalho.
Para mais informações, www.luthiercampos.com.br
Assista o vídeo abaixo onde o luthier Reinaldo de Campos mostra parte de sua oficina.