Afinar piano é fácil, difícil é ter paciência
Percurso, data e horário combinados. Nomes, números das conduções e do imóvel anotados. Repasso as informações, pelo telefone, para assegurar o encontro. “Pego o trem para Jundiaí até a estação Pirituba. Ando até o terminal de ônibus, entro no ônibus 8016. Desço depois de mais ou menos uns seis pontos. Volto na mesma calçada e chego na sua casa. Aí é só tocar a campainha que o senhor aparece?”, perguntei desconfiado se tinha escrito tudo certo.
“Rapaz, tem campainha não.Tem é que bater na lata”, ouvi como resposta.
“Desculpe, mas que lata, onde?”, insisti.
“Amarrada no portãozinho.Você vai logo ver. É só bater, que eu escuto. Se Deus quiser…”, disse a voz com forte sotaque nordestino.
“Combinado, até amanhã”, disse eu.
“Se Deus quiser”, emendou Damião de Jesus que, além do sobrenome e de tanta reverência ao “Barba”, me pareceu ser mais religioso do que o próprio papa.
No mesmo dia desta nossa conversa, Jesus havia saído de casa “umas cinco e meia”, na região do Jardim Cidade Pirituba, dirigindo seu “Classic Chevrolet” até o terminal de ônibus no bairro do Imirim. Estacionou o possante e foi de ônibus até Santana, trocando-o por outro que o levou até o bairro do Itaim Bibi. Desceu em uma praça, na avenida 9 de Julho, e caminhou até a rua Honduras para afinar um piano no Club Athlético Paulistano. O que faz há mais de 40 anos para sobreviver.
“Cheguei lá faltando dez para as sete da manhã. O evento era às oito. Até liberarem tudo para mim já era sete e quarenta. Afinei em 20 minutos”, disse Jesus. “O senhor sempre faz desses milagres?”, perguntei sem resistir à tentação de fazer graça. “Nada rapaz. O piano é deles. Nunca sai dali. É um Baldwin de cauda, marca boa, bem regulado, fácil de afinar”, explicou já revelando um dos maiores inimigos da afinação deste instrumento: o transporte.
Gênese
Entretanto, nem sempre é ou foi assim para este Jesus, que já foi Damiãozinho quando com sete anos veio de pau de arara de Barbalha, no Ceará. Passou por São Paulo, mas sem parar foi direto para Arapongas, no Paraná. “Deu 15 dias de viagem. De lá fomos para Janiópolis, perto de Goioerê (PR).Isso era 1951 e em 1952 meu pai morreu, com 35 anos de idade. Ficou eu e mais duas irmãs, mais novas. Minha mãe teve seis filhos. Morreram três e ficamos nós três”, contou Jesus na entrevista concedida ao Música em Letras, em sua casa, em Pirituba.
A mãe de Jesus falava que ele deveria ir para São Paulo. Sem vontade nenhuma de realizar o desejo dela, casou-se aos 21 anos, teve três filhos e depois de cinco anos se separou, indo morar só, na roça. “Nesta época eu tocava sanfona nos bailes dos sitiantes, no fim de semana, e trabalhava plantando café, algodão, feijão, soja, milho e arroz.”
Em 1973, atendeu o pedido da mãe e com 30 anos veio para São Paulo, hospedando-se na casa de um conhecido, em Pirituba. Arrumou uma vaga na expedição de uma firma de confecções, na rua José Paulino, onde permaneceu apenas um ano. Passando em frente da Pianofatura Paulista, fábrica dos famosos pianos Fritz Dobbert, também em Pirituba, viu uma placa: Precisa-se de ajudante geral. Candidatou-se e abocanhou a vaga. “Só que um mês depois começaram a mandar todo mundo embora”, completou.
Teste de afinação
Para não perder o emprego foi convidado pelo técnico afinador da fábrica para realizar um teste, pois era sabido que ele tocava sanfona de ouvido. Principalmente música caipira, valsa e xote. Fez o teste e passou, mas na carteira era registrado como ajudante geral. “Para não pagar mais, eles me deixaram assim”, revelou. Inconformado, após oito anos de trabalho, pediu as contas. Quatro dias depois da demissão, foi admitido, finalmente, com o tão sonhado registro de técnico afinador na fábrica de pianos Zimmermann, no bairro do Imirim. Ganhando mais, permaneceu por lá 26 anos antes de se aposentar. “Além de tudo tinha a vantagem de trabalhar com reforma de pianos de todos os tipos: alemães, ingleses , piano de corda reta, corda cruzada e o piano gaiola, que na máquina tem uns arames fixados. Este é uma relíquia…Ali aprendi quase tudo o que sei”, falou.
Depois de se aposentar, Jesus começou a prestar serviço em uma loja que aluga pianos, além de atender clientes particulares, estúdios, salas de concerto e várias casas de espetáculos de São Paulo e do interior do Estado. “Dá dinheiro?”, perguntei.
“Dá para comer, né?”, disse Jesus afirmando afinar uma média de 12 a 15 instrumentos por mês, gastando em torno de meia hora com cada um, quando não há maiores problemas. “No ano passado afinei 232 pianos”, falou ele que anota tudo em um caderno e cobra cerca de R$ 280 por instrumento. “Isto se for só a afinação, se tiver troca de peças fica mais caro”, revela o profissional que já achou até ninho de ratos dentro de alguns instrumentos. “Teve um piano de um japonês, em Iguape, que não tocava. Quando abri, o rato tinha comido todos os rabinhos de porco do instrumento”, disse Jesus referindo-se a uma peça, também chamada de “correinha”, feita de seda com couro e indispensável para o bom funcionamento do piano.
Artistas Famosos
“Já vi e afinei pianos para muitos artistas famosos: Eudóxia de Barros, Benito de Paula, João Carlos Martins e aquele menino que é muito bom pianista, mas no começo era bem enjoadinho, o André Mehmari. Agora ele me respeita e confia, mas antes vinha com a chave dele de afinar e ficava em cima de mim, enquanto eu fazia o meu serviço”, contando ainda que atende o apresentador Jô Soares no estúdio da Rede Globo e em seu apartamento, na avenida Higienópolis. “Já fui umas três vezes lá. Ele tem um piano Petrof de cauda inteira, que é bonzinho, mas demora para afinar, rapaz. Nunca vi ele tocar. Quem toca é mais o Osmar, do sexteto dele.”. Jesus disse ainda que, após realizar o serviço para o apresentador, sempre é chamado para uma rápida conversa. “Ele pergunta como ficou o piano, coisa e tal, mas eu queria mesmo que ele me entrevistasse no programa um dia, se Deus quiser”, revelou.
Realizado, a única coisa que o incomoda na profissão são algumas abastadas “senhoras de idade” que insistem em dizer que o piano não está bom após o serviço ser realizado. “Rapaz, teve uma que teimou e teimou, que eu quase poquei (quebrei) a corda de tanto que ela achava que estava baixa a afinação. E olhe, nunca quebrei uma corda. Fui embora e disse para ela arrumar outro afinador e que não precisava nem me pagar. “Rapaz, precisa é ter paciência com cliente. Afinar é fácil, mas tem gente enjoada. O negócio é que eu quero continuar afinando piano ainda por muito tempo. Se Deus quiser.”
“Ah, sr. Jesus. Ele há de querer”, respondi.
Assista este vídeo e conheça as ferramentas que Jesus carrega em sua maleta para afinar pianos.
Assista Jesus tocando na sanfona uma música de sua autoria, na lavanderia de sua casa.